Aula imaterial 4. Maneirismo e Surrealismo. Sonhar o pesadelo

Luttrell Psalter

Esta aula é polivalente. Destina-se aos alunos de Sociologia e Semiótica da Arte, do mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, mas também, como exemplo de uma pesquisa documental extensiva, aos alunos de Práticas de Investigação Social, do mestrado em Sociologia.

A aula é conversada. O que não agrada. As aulas conversadas desconversam muito. Não têm coluna vertebral. Em suma, não têm ponta por onde se lhe pegue. Só dá para tocar, ponto aqui, ponto ali. Ouvi dizer que o próprio mundo não tem nem coluna vertebral, nem ponta por onde se lhe pegue. Esta aula está saturada de informação, designadamente, visual. Gosto destas aulas; os alunos não.

Na aula precedente, visitámos o barroco: nos séculos XVII e XVIII e na atualidade. Resulta legítimo falar em barroco nos nossos dias? Não se confina a um período histórico preciso? Para Eugenio d’Ors, o barroco  é um eon (palavra grega), uma forma que percorre a humanidade, atualizando-se em cada contexto particular. “Uma certa constante humana”, com vida ora secreta, ora discreta, ora ostensiva. Reconhece-se o barroco no período helenístico, na Contra-Reforma e no mundo contemporâneo (D’Ors, Eugenio, Du Baroque, Paris, Gallimard, 1935). A sugestão de Eugenio d’Ors estende-se, logicamente, ao grotesco, ao trágico e ao clássico.

Assinalei, na última aula, Michel Maffesoli como especialista da “barroquinização actual do mundo”. Cumpre acrescentar Omar Calabrese: A Idade Neobarroca. Pode descarregar.

Vamos comparar duas correntes de arte separadas por mais de três séculos: o maneirismo (1520-1600) e o surrealismo (desde inícios dos anos 1920).

Sou admirador de François Rabelais. Também de Mikhail Bakhtin, que estudou François Rabelais. Um par admirável. Aproveito para disponibilizar o pdf do livro de Mikhail Bakhtin, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1968;  redigido em 1940), e o livro de Wolgang Kayser, O grotesco (1957), duas sumidades da teoria do grotesco: o primeiro encara-o como rebaixamento e o segundo, como estranhamento. Ambos os livros são úteis para esta aula.

Antes de prosseguir,  importa uma breve introdução ao maneirismo. Recomendo o artigo Maneirismo, da página História das Artes (https://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-renascentista/maneirismo/).

Às voltas com François Rabelais, deparei com o livro Les Songes Drolatiques de Pantagruel. Publicado em 1565, contém 120 gravuras, da autoria de François Desprez (1530-1587). Como o título indica, as gravuras inspiram-se nas personagens fantásticas do livro Pantagruel. Convido-vos a descarregar esta relíquia. Merece ser folheada. Descarregar!

São excêntricas as figuras disformes e híbridas concebidas por Desprez. Mas não são completamente originais. Deixando de lado os grotescos (ver Desgravitar- Sem Conta, Peso e Medida: https://tendimag.com/2012/02/12/desgravitar-sem-conta-peso-e-medida/), sessenta anos antes, Hieronymus Bosch pintou os quadros Juízo Final (1482), São João Evangelista na Ilha de Patmos (1485), As Tentações de Santo Antão (cerca de 1500), o Jardim das Delícias (1503-1504) e O Carro de Feno (1500-1516). São pinturas que albergam uma turbulência de monstros e híbridos, ilustrada pela galeria de imagens Pesadelos de Bosch. Por acréscimo, pode ver o documentário Genios de la Pintura Hieronymus Bosch El Bosco (Lara Lowe, 2000).

Os pesadelos de Bosch

Documentário Genios de la Pintura. Hieronymus Bosch El Bosco. 2000.

Genios de la Pintura. Hieronymus Bosch El Bosco, Produção: Lara Lowe. Cromwell. 2000.

Sessenta anos, numa escala de longa duração, é pouco tempo. Pode-se recuar mais. Por exemplo, aos séculos XII e seguintes. Nesse tempo, multiplicaram-se os livros de horas e os livros de salmos para apoio à oração. Nas iluminuras das margens das páginas (marginália), exorbitavam os monstros e os híbridos (as droleries). Vamos espreitar dois livros de salmos: o Luttrell (1325-1340) e o Rutland (c. 1260).

A descoberta do livro de salmos de Luttrell aproximou-se de uma epifania. Pesquei as páginas uma a uma. Compilei-as como quem colecciona cromos. Procedi à montagem, respeitando a ordem original. Reconstitui o livro até à página 32. Apresento o conjunto na seguinte animação em PowerPoint. Pode descarregar e abrir. Não perca! A reconstituição do Luttrell Psalter exigiu mais tempo e perícia do que a escrita de um artigo intergaláctico.

As iluminuras do livro de salmos de Rutland também precedem as gravuras de Desprez.

Imagens do livro de salmos de Rutland

Nada nos impede de recuar mais no tempo. Sem nos atardar com os cachorros românicos (ver O triunfo sobre a morte: San Martin de Artaíz: https://tendimag.com/2017/10/05/o-triunfo-sobre-a-morte-san-martin-de-artaiz/), nem com as gárgulas góticas (ver Gárgulas impúdicas: https://tendimag.com/2014/08/10/gargulas-impudicas/), pode-se retroceder ao início da cristandade, ao século I d. C. Sobreviveram frescos fabulosos na Domus Aurea, palácio construído entre 64 e 68 d. C. pelo imperador Nero, e nas ruínas de Pompeia, cidade soterrada pelo Vesúvio em 79 d. C. Ver o artigo Domus Aurea: o sonho enterrado (https://tendimag.com/2017/11/20/domus-aurea-o-sonho-enterrado-revisto/).

É tempo de regressar a François Desprez e, desta vez, andar para a frente. A comparação das gravuras de Salvador Dali com as gravuras de François é surpreendente. Salvador Dali retoma as gravuras de François Desprez, retocando-as com figuras e símbolos sexuais.

Salvador Dali. Les Songes Drolatiques de Pantagruel. 1973.

Uma pergunta: não teria sido suficiente começar o artigo no início e acabá-lo no fim, sem tanto devaneio e interlúdio? Confinar-se, simplesmente, a Desprez e a Dali?

Poder, podia, mas não era a mesma coisa. Convoco quatro argumentos, aparentemente, falaciosos:

  1. Um bom romance policial brilha pelo enredo. Não começa com o crime e acaba logo com a solução.
  2. Informar é formar. Não se pode ter o esquema de tudo e a substância de nada.
  3. O livro L’Amour de l’art, de Pierre Bourdieu e Alain Darbel (1966), convenceu-me que a aprendizagem da arte releva mais da massagem do que da mensagem, para empregar os termos de McLuhan.
  4. A proliferação das obras gera a vertigem das imagens. Sem a vertigem das imagens, não vingaria o seguinte pensamento diabólico: o homem é infinitamente grande pelas suas obras e infinitamente pequeno nas suas possibilidades.

“Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve” (Blaise Pascal, Pensamentos, 1670).

Continuamos na próxima aula: Maneirismo e surrealismo: O capricho da imagem.

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3 responses to “Aula imaterial 4. Maneirismo e Surrealismo. Sonhar o pesadelo”

  1. smessias says :

    Bom dia professor Albertino.
    Acerca dos quadros de Bosch, nomeadamente “Os pesadelos de Bosch”.

    O senhor acredita que cada detalhe do quadro possui um significado, uma crítica ou uma mensagem? Ou muitos dos detalhes são aleatórios? Delírios de expressão artística?

    Refletindo sobre meu campo de investigação: as artes cênicas nas práticas de circo realizadas por palhaços, onde as cenas refletem parte do que é grotesco me deparo com um pensando que neste contexto a grande maioria das vezes há motivações para criticas sociais ou culturais. Palhaços discutem e sempre discutiram as minorias em seu trabalho.

    Mas também me deparo com casos de artistas que apenas quer publicidade e fazem sua arte simplesmente para mostrar o que “todos gostam”, por exemplo oque é impresso na arte de Foottit e Chocolat.

    Me interesso muito pelo grotesco e pelo surrealismo que a meu ver é um campo vasto para a imagem e a imaginação, mas não entendo se nestas obras existem ou não estas referências políticas ou sociais. Gostaria de entender o que motiva determinados artistas a expor um pensamento tão delirante e profundo que chega a beira do campo do inconsciente.

    E talvez resuma minha reflexão e pergunta em: tais artistas tinha motivações maiores ou simplesmente pintavam uma estética que não estava ligada ao mundo externo que os rodeavam?

    Por fim, espero que meu comentário esteja “legível” porque também é confuso tal como os pensamentos grotescos e surreais! 🙂

    • tendências do imaginário says :

      Acredito que cada detalhe de uma obra de arte medieval ou renascentista, como o Bosch tem, pelo menos, um sentido. Acontece um detalhe ter vários sentidos. Acontece que, entretanto, perdemos os códigos para ler esses detalhes. O que se vai descobrindo acerca das imagens dos livros de horas é impressionante. Os artistas daquele tempo eram profundamente religiosos. Tomavam muito a sério o que faziam. Falavam nas imagens com a linguagem predominante na época. E a religião permitia-lhes dizer muita coisa, incluindo o direito e o avesso. A religião era polifónica, o que não lhe retirava poder. Mas, voltando ao início, os detalhes eram carregados de sentido e as pessoas reconheciam-no. Um abraço e obrigado pelo teu comentário.

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