Archive | Setembro 2014

Engano autêntico

Jonty Hurwitz

Jonty Hurwitz

Será que existem realidades mais reais do que o real? Os sábios dizem que sim! Quem capta essas realidades mais reais do que o real? A águia? E a águia é mais ou menos real do que o real? Para quem? Para os dois seres humanos que figuram no anúncio? E os dois seres humanos são mais ou menos reais do que o real? Para quem? Para o espectador? E o espectador é mais ou menos real do que o real? Será o anúncio um cocktail mais real do que o real? Um simulacro?

Marca: AT&T. Título: Eagle. Agência: BBDO New York. USA, 2011.

Ideias quase tuas

M.C. ESCHER, Drawing Hands, 1948

M.C. ESCHER, Drawing Hands, 1948

Gosto de ideias. De vadios e vadias. Não gosto que as atrelem a um poste de vaidade. Não me interessam as ideias de trazer ao peito. Engomadas. As ideias gostam de se amachucar. Não gosto de ideias sólidas. Prefiro vê-las esguias,  a fintar catálogos, formulários, protocolos, dicionários e citações. Gosto de ideias que dançam com o erro na corda bamba. Gosto de ideias que valem mais que o dono. Gosto das minhas ideias, sobretudo quando são quase tuas. Não gosto de ideias roubadas. Quem rouba ideias não as tem.

Este anúncio argentino estreia amanhã. Podes vê-lo hoje.

Marca: TEDxRíodelaPlata. Título: Ideas quasi tuyas. Agência: Ponce. Direção: Rosca. Argentina, Setembro 2014.

Extensões do homem

Aspirational-hero-alt-IIHIH Escrevi no artigo anterior que o que capacita pode não libertar. Acrescento, agora, que as “extensões do homem” o podem atrofiar. Como diria, McLuhan, o homem cria a ferramenta e a ferramenta recria o homem: “Nós moldamos as nossas ferramentas, e posteriormente as nossas ferramentas moldam-nos a nós” (Compreender os Meios de Comunicação – As Extensões do Homem, 1ª ed. 1964). Esta interacção é uma caixa de Pandora. O homem foi concebido de tal modo que tudo o pode estupidificar. Uma técnica inovadora de comunicação pode ser agraciada com um enorme ruído comunicativo. Atente-se, por exemplo, no efeito das novas tecnologias na comunicação face a face. Foca-se bastante este assunto, mas faltava um vídeo como este.

Marca: Vs.Magazine. Título: Aspirational. Agência: Produção: Iconoclast. Direção: Matthew Frost. USA, Setembro 2014.

A Teia

René Magritte. Au Seuil de la Liberté. 1937.

René Magritte. Au Seuil de la Liberté. 1937.

Dizem os sábios que a liberdade é um estado e a libertação, um acto. Afirmam, também, que tendemos a sentir o acto, mas não o estado. À libertação opõe-se a opressão. A liberdade aumenta com a libertação e diminui com a opressão. Na segunda metade do século XX, viveram-se momentos de libertação: a descolonização, a emancipação da mulher, a independência dos países de Leste, a queda do muro de Berlim, a fragmentação da Jugoslávia e a independência de Timor Lorosae. Nas últimas décadas, não se vislumbram sinais expressivos de libertação (a não ser que se considere a Primavera Árabe uma libertação). Ao nível global, o aumento da opressão é-nos servido diariamente na bandeja mediática. Ao nível nacional, o Estado regulador cerceia as margens de liberdade, nos actos, nas palavras e nas omissões. O seu zelo estende-se a esferas outrora consideradas privadas ou íntimas. A autonomia é condicionada pela normalização, pela programação e pelo controlo. Há quem, no início dos anos 2 000, se sinta menos livre do que há três décadas atrás. Os ímpetos libertadores dos anos sessenta enrolam-se agora numa teia sem princípio nem fim. E os computadores? E a Internet? E o tribunal de Haia? E as ONG? Na verdade, o que capacita pode não libertar.

Marca: Yves Saint Laurent. Título: Femmes Modernes. Agência: CLM & Team. França, 1973.

A arte de escolher as cadeias

H&M. Go gree. Wear blue.

La liberté c’est l’art de choisir ses chaînes” (Pascal / Nietzsche). E cada cadeia que quebramos é um novo espaço de liberdade que conquistamos. Este pensamento acompanha-me desde a adolescência. Sinto-me, porém, menos livre que outrora. Mudou a realidade? Mudou o sentimento? Tanto mandatário da liberdade, e apenas ouço o passo das formigas no chão.
Entre a liberdade e as cadeias não há soma nula. Com o tempo, perdi cadeias e liberdade. Sobra-me a liberdade de escrever para nada. Mal se começa a escrever para algo, logo os dedos ficam entalados e as palavras se encarneiram. Pensar para nada, escrever para nada, é o privilégio do espírito livre, o cúmulo da scholé, a distância à necessidade e à urgência de que fala Pierre Bourdieu.
Vêm estes apontamentos a pretexto do anúncio da H&M e a propósito da vida. O anúncio aposta num movimento sensorial, senão sensual, de dobra e abertura, de envolvimento e liberdade, com sobressaltos de sufoco e libertação. “Sê verde, veste azul”! Eis o pão nosso da liberdade responsável.

Marca: H&M. Título: Go green. Wear Blue. Produção: New Land. Direção: Gustav Johansson. Suécia, Setembro 2014.

Pinguinhas

Palais Lallemant, Bourges - Angelo & Sabot

Palais Lallemant, Bourges – Angelo & Sabot

Já que a gente não o faz, ao menos os carros! Um consolo motorizado.

Marca: Toyota. Título: Crazy. Agência: Saatchi & Saatchi Dusseldorf. Direção: Lewi. Alemanha, Setembro 2014.

Sociologia sem palavras 4. À americana

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Há Festa na Aldeia é o primeiro filme de Jacques Tati (1949). Com a festa, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. As pessoas mergulham numa metamorfose efémera. O carteiro é, neste filme, um caso extremo. Ludibriado por dois malandros, com a cumplicidade dos conterrâneos, o carteiro persegue a ilusão de ser carteiro à americana, num filme pautado pela diversidade de tempos e de ritmos sociais.
Jacques Tati promove, com subtileza, uma crítica acutilante à sociedade moderna. A última cena do vídeo é uma farpa feroz à irracionalidade da racionalidade técnica: um homem está no fundo de um poço; o carteiro envia-lhe a carta num balde; e prossegue o giro…
O filme dedica vinte minutos ao giro do carteiro à americana. A alucinação acaba com um mergulho em profunda água fria. Foi-se o “sonho americano”, resta “todo o tempo do mundo”, um tempo plural, descontraído e distraído.
Uma pequena nota: a estreia do filme foi adiada quase um ano devido aos protestos dos carteiros franceses.

Jacques Tati. Jour de Fête. França. 1949.

Pela diferença

coca-cola-fantastic-600-37067Há quem desdenhe, aristocraticamente, da publicidade. E há anúncios simplesmente fantásticos, que nos agarram pelas ideias e pelos sentidos, surpreendendo-nos. Nem tudo na vida nasceu para ser anestesiado pelo algodão etílico da homogeneização. Ainda caem folhas incómodas nas águas pasmadas do pântano simbólico. Por ironia, ou talvez não, cabe a um anúncio da Coca-Cola significá-lo com eloquência. “They make you feel different; it’s fantastic”. Acerca do tema da diferença na publicidade, recomendo o seguinte artigo de Fernando Peixoto: O Eu e o Outro no Culto da Performance. Caleidoscópio.

Marca: Coca-Cola. Título: Fantastic. Bélgica, Setembro 2014.

Sociologia sem palavras 3. Globalização

 

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O bailado do ditador com o globo terrestre, cena famosa do filme O Grande Ditador, de Charles Chaplin, é um desafio ao pensamento. Ocorre-me, por exemplo, que, graças à globalização, alguns, quase nenhuns, têm a capacidade de dar pontapés no planeta e muitos, quase todos, têm o direito de recebê-los.

Sociologia sem palavras. Episódio 3. Globalização.

Redondo vocábulo

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“Era um redondo vocábulo”, canta Zeca Afonso. Tudo se afigura redondo: gente redonda, ideias redondas, poder redondo. Como a esfera armilar. Tantas esferas armilares! Iguais umas às outras, excepto as que têm defeito. E o redondo enrola no redondo como as lagartas do pinheiro. Frases redondas, discursos redondos, oradores redondos, mais redondos e mais ocos do que uma laranja verde.

Lagartas do pinheiro.

Lagartas do pinheiro.

Este mundo não é o que parece. O mundo não é um coco, é um poema. É vontade, sonho e diferença. Não se conforma com formulários online e euros obesos. A esperança não mora numa bola de sebo. Nasce por amor, não nasce por concurso. Não é morna, nem formatada. A esperança é “uma criança que pula e avança”.

Vêm estes disparates a propósito do anúncio Coming Out, concebido para o Festival Queer Lisboa 18. Criatividade, imaginação, originalidade, qualidade. Ousadia. Por uma agência, a Fuel, reconhecidamente inovadora. Um sucesso apreciável no estrangeiro (em Portugal, “nunca se sabe”). Nem vocábulo redondo, nem esfera enferrujada, nem lagarta do pinheiro. Este é um anúncio valioso produzido por uma agência que abre caminho.

Anunciante: Queer Lisboa. Título: Coming Out. Agência: Fuel Lisboa. Direção: Fred Oliveira. Portugal, Setembro 2014.