Mudança de fase
Acabou a pasmaceira. Estava a saber tão bem! Música e arte, nada mais. E arrumar livros, sem ler. Nem sequer colocar artigos no blogue. Mas foi pausa que pouco durou! Ontem começaram as encomendas: a apresentação de um livro num encontro de empresários da diáspora previsto para a próxima sexta e o prefácio de um livro para antes de Jesus nascer.
Regressado à “atividade”, retomo o ritual dos posts, uma espécie de entremez ou corta sabores, recuperando alguma da música que escutei.
Asaf Avidan, “jovem” (nasceu em 1980) autor, compositor e cantor israelita, possui uma criatividade, uma voz e uma arte de interpretar únicas. O sucesso da carreira condiz. Aos 21 anos foi-lhe diagnosticado um linfoma. Seguem 4 canções: Bang Bang; The Labyrinth Song; My Old Pain; e Small Change Girl.
O voo dos tordos

De um recanto à saída do Instituto de Ciências Sociais, demorei-me a observar o bailado celestial de um bando de tordos. Lembrou-me, sabe-se lá por quê (apenas um Freud inspirado conseguiria explicar), a ária “Les oiseaux dans la charmille” [os pássaros no caramanchão] da ópera Les Contes d’Hoffmann (estreada em 1881) do compositor Jacques Offenbach (1819-1880).
Existem muitas coreografias e interpretações de “Les oiseaux dans la charmille”. Optei pela performance, em janeiro de 2016, da eslovaca Patricia Janečková (1998 – 2023), falecida no passado dia 1 de outubro, aos 25 anos, em Ostrava, vítima de um cancro da mama.
Para quem aprecie o grotesco, nomeadamente a vertente do estranhamento, desconcertante e corrosiva, relevada por Wolfgang Kayser (O Grotesco, 1957), nunca recomendarei o suficiente os contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822). Anexo o pdf do conto “O Homem da Areia” (do livro Noturnos, de 1817).
A razão e o coração
“Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los (…) E é tão ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus primeiros princípios, para querer consentir neles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para querer recebê-las.” (Pensamentos, 1669, póstumo; artigo XXII: I)

Temos dedicado alguma atenção a fenómenos de mistura cultural, tais como a orientalização do tango, do flamengo ou do fado. Hoje, é a vez da “arabização da canção francesa”, em franca expansão. As “chansons orientales”, como lhes chamam os gauleses, trepam ao topo das tabelas de vendas.

A relação entre a razão e o coração é complicada. A canção Le Coeur et la Raison realça o respetivo confronto. Lynda Sherazade, francesa de origem argelina, é a compositora e intérprete. A reedição em 2022 do primeiro álbum, Papillon, foi disco de platina e o último, Un peu de moi, lançado em abril de 2023, ascendeu ao nono lugar da tabela de vendas.
Goste-se ou não, estes híbridos têm o condão de nos aliviar do enjoo proporcionado por uma navegação cada vez mais orientada por integralismos e maniqueísmos.
Le Coeur et la Raison
J’ai laissé mon cœur parler
Lui qui n’est pas facile
J’l’ai laissé faire ce qu’il voulait
Mais il fonce tout droit comme un imbécile
Oui, il s’est mis à nu
Il croit toujours au grand amour comme dans les films
Il oublie ses blessures
Il s’attend jamais au pire
Quand il aime, il est dépendant, ce fou devient accro
Quand il aime, il est aveugle, il efface tous les défauts
Quand il aime, il est égoïste, n’avance qu’en solo
Quand c’est trop tard, c’est la raison qui soigne tous les bobos
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
J’ai laissé la raison parler
Elle qui ne lâche rien
N’attend jamais d’être blessée
Elle, elle pense au lendemain
Agit à contre-cœur parfois
Pour éviter les erreurs
Elle connaît sa valeur
Donc elle sécurise le cœur
Elle est forte et elle fait attention à tout
Elle supporte, elle encaisse même tous les coups
Elle le sait, ouais, souvent les histoires sont sans issue
Quand elle s’emporte, le cœur est toujours là au rendez-vous
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Il faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Oui, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
(Lynda Sherazade)
Cinderela Oriental
O Tendências o Imaginário funciona como um arquivo onde guardo textos, músicas, vídeos e imagens. À procura do anúncio Thai Love Story, deparo com um aviso frequente: vídeo indisponível. Confrontado com esta contrariedade, vejo se encontro outros links disponíveis. Alcancei, mais do que o mero anúncio, um vídeo com uma série de spots da respetiva campanha: a história, em vários episódios, de uma maria rapaz (gata borralheira) que, com recurso a um creme facial (varinha mágica), se transforma numa beldade feminina, acabando por encontrar, graças a uma tatuagem (sapatinho), o noivo verdadeiro e definitivo (príncipe). A marca tailandesa Smooth propicia, destarte, um efeito Cinderela. Há males que vêm por bem!
Beatas: Luz divina e pegada tóxica
Nem tudo o que arde purifica, nem tudo o que se apaga acaba.
Flamengo japonês
A influência da cultura oriental no Ocidente é antiga. Declaradamente assumida pelos românticos do século XIX, precede as missões dos jesuítas portugueses no Japão do século XVI. Aproximadamente a partir dos anos sessenta, a “orientalização do Ocidente” resulta cada vez mais estudada e teorizada no âmbito das Ciências Sociais.
Por seu turno, o movimento inverso, a “ocidentalização do Oriente”, acentua-se e acelera-se nas décadas mais recentes. Em várias vertentes, entre as quais a música, mormente em segmentos mais abrangentes com vocação global, como a pop e o rock. O rock coreano (K-rock) representa uma boa ilustração. Mas esta repercussão observa-se, também, embora mais discreta, em géneros mais específicos e localizados, tais como o tango, o flamengo e o fado. Reservo para este último os próximos artigos. Neste, o foco incide sobre o flamengo adaptado e interpretado em japonês por Noriko Martín. Um híbrido de espantar!
Agradeço aos ventos que, hoje, sopraram novidades, não do Sudeste vimaranense, mas do Norte galego.
Canção de embalar
Não estou em Moledo, nem o vento sopra do Norte, mas de Sudeste, vimaranense, e traz esta interpretação admirável da “canção de embalar”, de Zeca Afonso, pelo Duo Ibero-Americano que me apresso a partilhar.
O simbolismo da mala
A mala do emigrante: uma carga mínima a abarrotar de sonhos

Maria Beatriz Rocha-Trindade, Professora Catedrática na Universidade Aberta, acaba de publicar, pela Editora Alma Letra, de Viseu, um livro notável, ímpar e oportuno, com o título Em Torno da Mobilidade. Aborda os Provérbios, Expressões Idiomáticas e Frases Consagradas que proporcionam conforto e sentido aos percursos e às experiências de vida dos migrantes. Esta sabedoria popular é acompanhada e realçada por numerosas imagens criteriosamente escolhidas.
Esta recurso ao senso comum e à linguagem quotidiana como via para a apreensão e interpretação de realidades genéricas e estruturantes revela-se uma aposta original e conseguida. Resulta uma obra generosa, agradável e instrutiva, respaldada em mais de meio século de investigação.

Primeira mulher antropóloga portuguesa, Maria Beatriz desloca-se em 1965 para Paris para prosseguir um curso de doutoramento em Sociologia. Com orientação de Alain Girard, defende a tese, sobre aimigração portuguesa em França, em 1970 na Universidade Paris V – Sorbonne. Por coincidência, também fui aluno da mesma universidade e do Professor Alain Girard. Publicada em 1973 com o título Immigrés Portugais, destaca-se como o primeiro estudo de fôlego da emigração portuguesa alicerçado numa investigação empírica sistemática e aprofundada. Desde então, não se tem cansado de inovar, mas sem se desviar da problemática das migrações, culturas e identidades. Admiro a Maria Beatriz como cientista e, em particular, como pessoa. O seu exemplo de vitalidade oferece-se como um amparo nos meus momentos de descrença e esmorecimento. Conhecemo-nos em 1983 num encontro organizado na Universidade do Minho a pedido da Secretaria de Estado da Emigração: o Seminário Portugal e os Portugueses – Raízes e Horizontes.
Em pleno verão, dezenas de lusodescendentes provenientes de todo o mundo estagiaram em Braga durante várias semanas. Nasceu, nestas circunstâncias, uma amizade, daquelas que, mesmo com poucos convívios, nascem para crescer.

A mala, na mão, às costas ou pousada, representa um símbolo maior da figura do emigrante. Uma arca, “brasileira”, e uma mala de cartão, “francesa”, sobressaem no Espaço Memória e Fronteira, em Melgaço, como objetos que falam aos visitantes, frequentemente num registo que frisa a intimidade.
Imagem: Espaço Memória e Fronteira. Melgaço
Seguem o vídeo do lançamento do livro Em torno da Mobilidade, em Tavira, no dia 5 de novembro, bem como o pdf do capítulo Potencialidade Simbólica da Imagem no Quadro do Percurso Migratório (págs. 33-54), precedido pela folha de rosto, a ficha técnica e o índice do livro.
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