Nascimento da Primavera

René Magritte. Le Printemps. 1965

Para celebrar o início da primavera e o aniversário do Fernando, entusiasta da guitarra, quatro músicas compostas por Andrew York.

“Sem a música, a vida seria um erra” (Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, 1889). Há quem diga que é uma prenda da vida. Como todas as dádivas, subsiste a opção de a desdenhar.

Andrew York. Lotus Eaters. 4th Antwerpen Gitaarfestival. 2014
Andrew York. Home. 2018 (com uma guitarra de Antonio de Torres)
Andrew York & Jan Depreter. Sanzen. 4th Antwerpen Gitaar Festival. 2014
Andrew York. Sunburst. Jubilation. 2009

A música soturna de Anna von Hausswolff

Orestes mata Clitemnestra (que coloca a mão no seio nu em sinal de súplica). Ânfora. Grécia. ca. 340 AC

Na mitologia grega, Electra induziu o seu irmão Orestes a assassinar a sua mãe Climnestra para vingar a morte do seu pai Agamémnon por esta arquitetada. Carl Gustav Jung propôs a noção de complexo de Electra como contrapartida do complexo de Édipo.

Partilhada pelo meu primo Bruno, a primeira música que ouvi hoje foi “‘The Mysterious Vanishing of Electra”, interpretada pela sueca Anna von Hausswolff, cantora já contemplada neste blogue (https://tendimag.com/2012/11/09/anna-von-hausswolff/). Adicionei duas músicas para aprofundar o impacto: “Liturgy of Light” e “Funeral for My Future Children”. Uma maneira bastante lúgubre de começar o dia. Quer-me parecer que o ambiente acústico só poderá melhorar.

Anna von Hausswolff. The Mysterious Vanishing of Electra. Dead Magic. 2018
Anna von Hausswolff. Liturgy of Light. Ceremony. 2012
Anna von Hausswolff. Funeral for My Future Children. Ceremony. 2012

Hino à transpiração

Madeleine Georges Charlotte Lavanture (1913-1940). Tu gagneras ton pain à la sueur de ton front. Prix de Rome, 1938

Transpirar por todas as partes, em todos os gestos, em qualquer momento e ambiente, num sortido de fisionomias, eis o fado de Adão (e Eva). Em todas as feições, usos e gostos. O anúncio “Sudar es la gloria”, da Gatorade, evidencia a propensão para a universalidade e a diversidade de uma certa tendência da publicidade. Cada espetador é convidado a reconhecer-se em alguma figura. Mas, não nos iludamos, nem sequer as exceções, neste caso os sedentários alérgicos à arte de suar, escapam ao apelo. Entranham o estranho, fazem seu o esforço dos outros, ficam sedentos por projeção.

Marca: Gatorade. Título: Sudar es la gloria. Agência: Isla. Produção: Stink São Paulo. Direção: Jones. América Latina, março 2023

Inspiração

Coca-Cola. Masterpiece. Março 2023

Eis um anúncio que concebe uma inspiração engarrafada como nunca ninguém sonhou! Um rodopio de imagens e obras de arte numa odisseia vertiginosa. Este “masterpiece” da Coca-Cola estreou esta semana, no dia 6 de março.

Figuras que ganham vida, por exemplo, saem de quadros, é um motivo com antecedentes. É o caso do filme de animação Le roi et l’oiseau, iniciado nos anos cinquenta e terminado em 1980, realizado, em França, por Paul Grimault, ou, se a memória não me engana, dos Contos fantásticos de E.T.A. Hoffmann (1776-1822).

Marca: Coca-Cola. Título: Masterpiece. Agência: Blitzworks. Produção: Academy. Direção: Henry Scholfield. USA, março 2023

“An ice-cold bottle of Coca‑Cola journeys from canvas to canvas—starting with Andy Warhol’s 1962 Coca‑Cola and continuing to a refreshingly diverse and culturally rich mix of classic and contemporary paintings before ultimately landing in the hands of an art student in need of creative inspiration—in a new global campaign titled “Masterpiece”. / The latest expression of the “Real Magic” brand platform celebrates how Coca-Coca provides uplifting refreshment in moments that matter. The campaign’s creative centerpiece is a short film set in an art museum, where students are sketching select paintings on display. As one student appears uninspired, an arm from a painting reaches across the gallery to grab the Coke bottle from Warhol’s pop-art masterpiece. From there, it’s relayed from works including JMW Turner’s “The Shipwreck”, Munch’s “The Scream” (re-colored lithograph) and Van Gogh’s “Bedroom in Arles” before finally landing with Vermeer’s “Girl with a Pearl Earring”, whose subject opens the bottle for the student in need of inspiration and refreshing upliftment. / In addition to these universally recognized paintings from the past century, the film bridges the worlds of classical and contemporary art by featuring work from emerging creators from Africa, India, the Middle East and Latin America” (Coca-Cola).

Lista de obras de arte contempladas no anúncio:

00:14 Divine Idyll  –  Aket, 2022
00:24 Large Coca-cola  –  Andy Warhol, 1962
00:30 The Shipwreck  –  Joseph Mallord William Turner, 1805
00:38 Falling in Library  –  Vikram Kushwah, 2012
00:43 The Blow Dryer  –  Fatma Ramadan, 2021
00:45 Scream  –  Munch, Edvard, 1895
00:48 You Can’t Curse Me  –  Wonder Buhle 2022
00:56 The Bedroom (Bedroom in Arles)  –  V. van Gogh, 1889
01:04 Artemision Bronze  –  Unknown (Greek), 460BC
01:11 Natural Encounters  –  Stefania Tejada, 2020
01:22 Drum Bridge and Setting Sun Hill  –  Hiroshige, 1857
01:29 Girl with a Pearl Earring  –  Johannes Vermeer, 1665

Balada da Terra Moída

Em 2020, os dias repetiam-se como lesmas. Ora ecrã, ora espelho, ora ambos, gestos submersos destinados ao esquecimento. Ao transferir ficheiros para uma pen, surpreende-me o texto “Prado subjetivo: metamorfoses de uma freguesia modernizada”. Adormecido no “vale dos caídos”, reli-o como pela primeira vez. Tocou-me tamanha obra estranha. Encantamento da memória e desencanto do mundo. Um excesso de objetividade subjetivada, e vice-versa. Entre ecos e ressonâncias, pareceu-me, contudo, uma alegoria de tantas aldeias inquietas.

Segue o referido texto, “Prado subjetivo: metamorfose de uma freguesia modernizada”, capítulo do livro Quem Somos os que Aqui Estamos: Prado e Remoães (c. Álvaro Domingues). Editado pela União de Freguesias de Prado e Remoães, 1920, pp. 8-17.

Tempo para tudo

Ter todo o tempo do mundo pode ser bom!

Rui Veloso. Todo o tempo do mundo. Avenidas. 1998

Ter tempo para tudo talvez não seja pior! Até para tentar tempos alheios. Se os Slow Show lembram Roger Waters, os Elbow lembram Peter Gabriel.

Elbow. Starlings. The Seldom Seen Kid. 2008
Elbow. Grounds for Divorce. The Seldom Seen Kid. 2008. Live at British Summer Time in Hyde Park, London on 8th July 2017
Elbow. One Day Like This. The Seldom Seen Kid. 2008. Live at British Summer Time in Hyde Park, London on 8th July 2017

Rendimentos marginais. The Slow Show

A virtude da errância, de errar perdidamente, reside em poder acertar no imprevisto, acrescentar, por ventura, um pouco de prazer ao prazer. Os Slow Show lembram-me, com ou sem razão, Roger Waters.

The Slow Show. Low (with Hallé Youth Choir). Lust and Learn. 2019
The Slow Show. Dresden. White Water. 2015. Live at Hallé St. Peter’s, Manchester, 2014
The Slow Show. Break Today. Dream Darling. 2016. Live at Haldern Pop Festival, 2015
The Slow Show. Rare Bird. STILL LIFE. 2022
The Slow Show. Blinking. STILL LIFE. 2022

As novas sereias. Encantos de espantar

Numa atmosfera eivada de exotismo e exuberância, os sentidos almofadados entregam-se ao ecrã das surpresas programadas (Albertino Gonçalves, instalação “cápsulas de emoções”, exposição Vertigens do Barroco, Mosteiro de Tibães, 2007)

Estiveram abertas até ao dia 10 de março as candidaturas para o concurso New York Festivals Advertising Awards, organizado em parceria com a BCW (Burson Cohn & Wolfe, empresa multinacional de relações públicas e comunicação, com sede em Nova York). A “chamada” desafia os candidatos a exibir algo nunca antes visto (“Show Us Something We Haven’t Seen”), capaz de impressionar e contrariar a saturação dos nova-iorquinos e dos profissionais de publicidade. Algo, ao mesmo tempo, espantoso e memorável.

“A New York Festivals (NYF) desenvolve, desde 1957, a nível mundial, uma atividade que convoca o espírito de rutura e de vanguarda caraterístico da cidade (…) A campanha de promoção reúne fotógrafos da cidade de Nova York cujas imagens expressam a vibração urbana de NYC e projetam uma luz reveladora da agitação e da atitude invulgares que alicerçam a excelência criativa em NYC” (Scott Rose, presidente, New York Festivals Competitions).

A campanha de promoção do festival é composta por três posters e um vídeo.

Anunciante: New York Festivals Advertising Awards. Título: Show us something we haven’t seen. Agência: BCW (Burson Cohn & Wolfe). Direção: Henry DaCosta. USA, fevereiro 2023

“Como nunca ninguém viu” é o título de um artigo que publiquei em 2011 (in Moisés de Lemos Martins et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Ed., pp. 139-165). Corresponde à conferência “A construção do impossível: o espaço nos anúncios publicitários”, apresentada no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação, em Braga, em setembro de 2009.

 “‘Ver como ninguém viu’, porventura mais do que ver “o nunca visto”, eis a tentação ou, melhor, a proposta que percorre a publicidade atual” (Como nunca ninguém viu, p. 142).

O texto procura argumentar e ilustrar esta intuição. O vídeo “A construção do impossível”, com duração de 20 minutos, acrescenta uma seleção de anúncios ilustrativos. Segue uma primeira versão do texto, não paginada mas com imagens a cores (a versão editada, com imagens a preto e branco, está acessível no seguinte endereço do livro: https://hdl.handle.net/1822/29165), bem como o vídeo complementar. Constam entre os meus trabalhos preferidos, concebidos, aliás, durante um período de deriva da desmotivação da cidade académica para a exploração de trilhos menos consagrados. Menos pontos no currículo e mais realização pessoal. A criação do blogue Tendências do Imaginário, em 2011, constitui um marco e um bom exemplo.

A aposta no assombro, especialmente no nunca visto, cruza-se com duas tendências que atravessam a publicidade. A difícil captação da atenção e influência dos públicos justifica duas rotações: dos produtos para as marcas e do desejo para a adesão. À distinção invejável sobrepõem-se a identificação projetada e a estranheza fácil de entranhar. O foco desliza, assim, por exemplo, do belo e do funcional para o surpreendente e o insólito, que tocam, impregnam e envolvem. Uma espécie de rotinização ou homeopatia do anómalo.

Albertino Gonçalves. A Construção do Impossível. Conferência no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação (Braga, setembro 2009)

Os sinos da consciência

O nu desapareceu praticamente da publicidade. O grotesco resiste. Os anúncios de consciencialização e sensibilização social proliferam. Oferecem-se como uma marca distintiva da nossa era. Visam interpelar e mobilizar os cidadãos, pelo pensamento, pelo sentimento e pela imagem, para problemas, causas e movimento de uma extrema diversidade quanto às origens, modalidades e finalidades. Segue uma mistura de exemplos recentes.

Anunciante: Disasters Emergency Committee. Título: Never Alone. Agência: Don’t Panic (Londres). Direção: Rick Dodds. Reino Unido, fevereiro 2023
Anunciante: My Black is beautiful. Título: Unbecoming. Agência: Cartwright. Direção: DAYDAY. USA, março 2023
Anunciante: CONAF/Gobierno de Chile. Título: Campaña de prevención de incendios. Agência: McCann Santiago. Chile, fevereiro 2023
Marca: Nescafé. Título: Jars. Agência: Courage Inc Toronto. Direção: Omri Cohen. Canadá, fevereiro 2023
Anunciante: Gouvernement du Québec. Título: Escape the control. Agência: Lg2. Direção: Nicolas Brassard. Canadá, fevereiro 2023
Anunciante: HandsAway & Consentis. Título: Décoder les femmes. Agência: TBWA (Paris). França, março 2023
Anunciante: NHS. Título: Ribbon dancer. Agência: M&c Saatchi (london). Direção: SI&AD. Reino Unido, fevereiro 2023

A persistência do grotesco

Bruno Aveillan. Chanel

O nu varreu-se praticamente da publicidade. Há mais de uma década. Primeiro, o mais vulgar; logo, o mais artístico (vídeos 3 e 4). O grotesco ainda resiste (vídeos 1 e 2). Confinado, não costuma dar-se mal com regimes de disciplina, controlo e vigilância.

Marca: Liquid Death Iced Tea. Título: Your Grandma’s Energy Drink. Agência: In-house. USA, dezembro 2022
Marca: Kleenex. Título: Anthem. Agência: FCB. USA, maio 2022
Marca: Gaz de France. Título: Dolce Vita. Agência: Australie. Produção: Quad. Direção: Bruno Aveillan. França, 2002.
Marca: Chanel. Título: Chanel J12 White. Com Charlotte Siepora. Produção: Quad. França, 2013