Michel Foucault e a Nave dos Loucos
Acontece-me querer mostrar mas não (d)escrever. Um subterfúgio é recorrer a um texto alheio. Sobre o tema da Nave dos Loucos, o primeiro capítulo (Stultifera navis) da História da Loucura na Idade Clássica, de Michel Foucault, vem a talhe de foice. Seleccionei três longos excertos ilustrados com imagens provenientes de quatro fontes de finais do séc. XV: Stultifera Navis (1494), de Sebastian Brant; Navicula stulterum mulierum (1498), de Josse Bade; La Nef des Folles (c. 1500), de Jehan Drouyn; e a pintura de Hieronymus Bosch (c. 1500).
“Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar, através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão” (Foucault, História da Loucura, pág. 7).
“Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.
É esta presença, e algumas de suas figuras essenciais, que é preciso agora recordar de um modo bem rápido.
Comecemos pela mais simples dessas figuras, e também a mais simbólica.
Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” (Foucault, História da Loucura, pp. 12-13).
“Compreende-se melhor agora a curiosa sobrecarga que afeta a navegação dos loucos e que lhe dá sem dúvida seu prestígio. Por um lado, não se deve reduzir a parte de uma eficácia prática incontestável: confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida.
Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca.
Esta navegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem absoluta. Num certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma geografia semi-real, semiimaginária, a situação liminar do louco no horizonte das preocupações do homem medieval — situação simbólica e realizada ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas da cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência.
A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem.
E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo parentesco imaginário que se pode traçar ao longo de toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que, da noite dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu” (Foucault, História da Loucura, pp. 15-17).
Referência bibliográfica:
Foucault, Michel (1978), História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo, Editora Perspectiva, 1ª ed. 1961.
Filmes do Homem – Melgaço
FILMES DO HOMEM – Festival de Documentário de Melgaço é um evento organizado pela Câmara Municipal de Melgaço e pela Associação AO NORTE. Trata-se de uma iniciativa bem concebida e bem programada, que estreia este fim-de-semana.
Segue o endereço da página do evento (http://filmesdohomem.pt/index.php), bem como do e-book com o catálogo (http://filmesdohomem.pt/doc/Filmes-do-Homem-Ebook.pdf).
Consumidor masoquista
Valha-me Santo Antão! Parece uma tentação dos demónios. Está a pegar a figura do consumidor masoquista? Algum estudo internacional, com patrocinadores de topo, universidades de alto ranking, centros de investigação de excelência, supervisão de prémios Nobel, assessoria de imprensa e direcção de um génio desconhecido, descobriu que, na publicidade, o que importa não é convencer, seduzir, comover, envolver ou chocar, mas agredir. Depois da dor, vem o alívio! Não vem?
Marca: Acierto.com. Titulo: Koala. Agência: Remo. Direcção: Marco de Aguilar. Espanha, Julho 2014.
Patinhar na água
“As drogas são substâncias capazes de produzir alterações nas sensações físicas, psíquicas e emocionais”. Há quem sustente que o poder tem efeitos semelhantes.
Na Inglaterra dos sécs. XVI e XVII, durante os reinados de Isabel I e Jaime I, a bruxaria foi severamente perseguida. Para além da fogueira e da forca, havia outros recursos disciplinares. Por exemplo, the ducking stool, uma cadeira suspensa sobre a água. A mulher acusada de bruxaria era mergulhada, repetidamente, na água. Patinhava sentada. Era um método de humilhação pública. Há, no entanto, quem afiance que o uso e a interpretação podiam ser, na prática, radicalizados: se a mulher se afogar, é inocente; se não se afogar, é culpada e castigada em conformidade. Presa por ter cão…
Blogue internacional
O blogue Tendências do Imaginário atingiu, há dias, 200 000 visualizações, a uma média de 300 visualizações por dia. Podia ser melhor. A proveniência geográfica merece alguns reparos. Nos três últimos meses, 25% das visualizações provêm de Portugal, menos, porém, que o Brasil, que representa 32%. Lusófonos, os dois países somam 57% das visualizações. Seguem-se os Estados-Unidos (6%), a França (6%), a Alemanha (5%), a Espanha (5%) e a Itália (4%). Juntos, estes cinco países alcançam um valor superior ao de Portugal. Em suma, este blogue até parece internacional. Não porque esteja escrito em língua estrangeira (está quixotescamente escrito em português), tão pouco por ser apresentado num encontro além fronteira, nem sequer por ter edição internacional, mas, somente, porque é maioritariamente consultado por estrangeiros: três visionamentos em cada quatro provêm do estrangeiro, a maioria de países não lusófonos (Brasil, 32%; demais países sem incluir Portugal: 43%). Este blogue padece, contudo, de um grande defeito: não custou um único cêntimo ao contribuinte português. Num País comandado por uma elite internacional nos gestos e nacional no sustento, essa autonomia só pode ser mal augúrio, sobretudo para quem foi habituado a acreditar que quem não pede, não pode.
Máquinas desejadas
Mais um cheirinho a Old Spice. Regressa a aposta num protagonista biomecanóide. Uma figura com séculos, mas, hoje, particularmente infestante. À dita pós-modernidade associam-se duas multiplicidades: a do ser múltiplo e a do ser multiplicado. O ser multiplicado é o maná das identidades líquidas e fragmentadas: uma dúzia (pós-moderna) a agarrar o presente e apenas uma (moderna) a pagar impostos!
Comparando com o artigo anterior (http://tendimag.com/2014/07/25/pos-modernidade-vitoriana/), suspeita-se que, na pós-modernidade modernamente assistida, o que está em voga não é a carne (censurada), mas a máquina (desejada). A tragédia grega tem o coro, Pinóquio, o Grilo Falante e eu, o Demónio Céptico, demónio que me anda a tentar: “a pós-modernidade é, antes de mais, o pós-modernismo, e o pós-modernismo, um movimento intelectual profético, a grande narrativa contemporânea”.
Marca: Old Spice. Título: Soccer. Agência: Wieden+Kennedy USA. USA, Julho 2014.
Pós-modernidade vitoriana
Quem diria que a pós-modernidade era vitoriana!
A sociedade vitoriana “estava cheia de moralismos e disciplina, com preconceitos rígidos e proibições severas . Os valores vitorianos podiam classificar-se como ‘puritanos’” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Era_vitoriana).
O sexo era encarado como animalesco, e assim era tratado, com hipocrisia: a prostituição alastrava nas ruas de Londres: 1 200 prostitutas e 63 bordéis só em Whitechapel, um dos bairros mais pobres do East End de Londres.
Passado um século, no anúncio da TomTom, a modelo norte-americana Alexandria Morgan “runs strapless”. A empresa inventou um dispositivo (em forma de relógio com GPS), chamado Runner Cardio, com um medidor de pulsações que substitui as bandas para o peito. É certo que, ao visionar o anúncio, o espectador fica suspenso do bailado dos peitos. É raro encontrar-se linguagem corporal tão comunicativa. E os responsáveis, o que podem fazer? O mais avisado é censurar, ou seja, proibir. Banned forever! O diácono remédios é capaz de explicar. A bitola da censura aperta-se. O mal não está em ver, mas em imaginar. Velai por nós. Que fazer com a Madonna? E com a Lady Gaga? E com a Bjork? E com Miley Cyrus? São mamas artísticas? E as da Alexandria são apenas carnais…
Viver na pós-modernidade é um privilégio: poder financeiro ostensivo, narrativa sem falhas da tecnocracia, censura indiscreta… Sempre que leio os teóricos fico extasiado. Tanto milhão de anos para chegar aqui! Um dia destes, quando crescer, também hei-de ser pós-moderno.
Marca: TomTom. Título: Alexandria Morgan run strapless. Agência: DDB/Tribal Worldwide. Julho 2014.