Van Gogh animado
O meu rapaz mais novo volta a desafiar-me com o trailer do tão aguardado filme Loving Vincent. Trata-se de uma obra com financiamento coletivo a partir da plataforma Kicstarter. Dedicado a Vincent Van Gogh, é o primeiro filme de animação com pintura a óleo. Doze pinturas por segundo, a cargo de uma centena de pintores especializados. Confesso que não imaginava um filme de animação com o traço de Van Gogh. Em boa hora! Uma iniciativa extraordinária da Breakthru Films, vencedora de um óscar. Assim se saltam limites. Junto o trailer acompanhado pelo behind the scenes. Página do filme: http://lovingvincent.com/.
Loving Vincent. Trailer. Breakthru Films. Directores: Dorota Kobiela & Hugh Welchan.
Loving Vincent. Behind the scenes.
Pegada
Em Junho de 2016, em Orlando (Florida), um terrorista matou 49 pessoas e feriu 53 numa discoteca frequentada pela comunidade LGBT. No anúncio Cellphones, The Brady Campaign inspira-se no cenário do atentado para denunciar a violência homofóbica. Os telemóveis insistiam em tocar e funcionar para além da morte. A focagem nos telemóveis constitui uma espécie de assombração convincente. No passado, a pegada humana era assegurada pelos filhos, pelas obras e pelas missas perpétuas. Hoje, também temos o cellphone, o smartphone, o iPhone, o tablet, o notebook e outros prodígios com nome estranho.
Anunciante: The Brady Campaing. Título: Cellphones. Agência: Brand+Aid Creative. USA, Outubro 2016.
A morte entre as mãos de uma criança
A publicidade tem picos temáticos, tais como os jogos olímpicos ou o campeonato do mundo de futebol. Acrescente-se o Halloween. Semanas antes, em Outubro, disparam os anúncios alusivos a mortos ou, eventualmente, à morte. O estilo vai do humor, amiúde negro, à sátira, passando pela paródia e pela ironia.
O anúncio Toddlers Kill, da Brady Campaign to Prevent Gun Violence, não é um rebento do Halloween, mas é sinistro, satírico e irónico, substituindo, num registo jornalístico, o slogan clássico “Guns don’t kill people, people do” por um novo slogan, absurdo: “Guns dont’kill people. Toddlers kill people”.
Anunciante: The Brady Campaign to Prevent Gun Violence. Título: Toddlers Kill. Agência: McCann Erickson (New York). Estados Unidos, Outubro 2016.
Pobres dos pobres
Aproxima-se a feira dos santos em Cerdal, no concelho de Valença. Peregrinavamos desde Melgaço. A minha perdição eram os pericos dos santos, peras pouco maiores do que cerejas. Era um dia farto para ricos e pobres. Há mais de meio século que não como pericos. Os amigos oferecem-me, de vez em quando, livros. Melhor me oferecessem pericos.
Lançado no dia internacional para a erradicação da pobreza (17 de Outubro), o anúncio 100 years of poverty, da Depaul France, ilustra as mudanças na aparência dos pobres desde 1916. O anúncio contrapõe-se à série “100 years of Beauty” / “100 years of fashion”. Repare-se no modo como contempla o crescimento recente dos novos pobres.
Marca: Depault France. Título: 100 years of poverty. Agência: Publicis Conseil. França, Outubro 2016.
Não resisto a colocar o poema “Os pobrezinhos”, de Guerra Junqueiro.
OS POBREZINHOS
Pobres de pobres são pobrezinhos
Almas sem lares, aves sem ninhos.
Passam em bandos, em alcateias,
Pelas herdades, pelas aldeias.
É em Novembro, rugem porcelas.
Deus nos acuda, nos livre delas!
Vem por desertos, por estivais,
Mantas aos ombros, grandes bornais,
Como farrapos, coisas sombrias,
Trapos levados nas ventanias.
Filhos de Cristo, filhos d’ Adão
Buscam no mundo côdeas de pão!
Há-os ceguinhos, em treva densa,
D’ olhos fechados desde nascença.
Há-os com feridas esburacadas,
Roxas de lírios, já gangrenadas.
Uns de voz rouca, grandes bordões
Quem sabe lá se serão ladrões!
Outros humildes, riso magoado,
Lembram Jesus que ande disfarçado.
Enjeitadinhos, rotos, sem pão,
Tremem maleitas d’ olhos no chão
Campos e vinhas! hortas com flores!
Ai, que ditosos os lavradores!
Olha fumegam tectos e lares
Fumo tão lindo! branco, nos ares!
Batem às portas, erguem-se as mães,
Choram meninos, ladram os cães.
Rezam e cantam, levam a esmola,
Vinho no bucho, pão na sacola.
Fruta da horta, caldo ou toucinho
Dão sempre os pobres a um pobrezinho.
Um que tem chagas, velho, coitado,
Quer ligaduras ou mel rosado.
Outro, promessa feita a Maria,
Deitam-lhe azeite na almotolia.
Pelos alpendres, pelos currais,
Dormem deitados como animais.
Em caravanas, em alcateias,
Vão por herdades, vão por aldeias.
Sabem cantigas, oraçõezinhas,
Contos d’ estrelas, reis e rainhas.
Choram cantando, penam rezando,
Ai, só a morte sabe até quando!
Mas no outro mundo Deus lhes prepara
Leito o mais alvo, ceia a mais rara.
Os pés doridos lhos lavarão
Santos e santas com devoção!
Para lava-los, perfumaria
Em gomil d’ouro a bacia.
E embalsamados, transfigurados,
Túnicas brancas, como em noivados,
Viverão sempre na eterna luz,
Pobres benditos, amém, Jesus!
Guerra Junqueiro
Robustez e resistência
As pick-up são especiais. São semideuses sobre rodas. Nada as molesta. Lembro um anúncio em que uma pick-up resiste à ondulação marinha. Noutro, um bebé gorila gigante brinca com uma pick-up atirando-a contra um muro. Nada! Uma terceira cai de um guindaste e atravessa o globo terrestre até aos antípodas (ver estes três anúncios no seguinte endereço: https://tendimag.com/2016/07/02/o-peso-das-coisas/). A pick-up Mitsubishi também é uma heroína. Resiste aos guerreiros mais temíveis da história. São, aliás, os perseguidores que fogem amedrontados. A palavras-chave de um anúncio a uma pick-up são robustez e resistência. Valores materialistas pouco pós-modernos.
Marca: Mitsubishi. Título: Watermopylaegrad. Agência: África São Paulo. Direcção: Vellas. Brasil, Outubro 2016.
Preservativo eletrónico
Outrora, as nossas tentações resumiam-se aos sete pecados mortais. Valia-nos a corte celestial. Agora, as tentações são objectos: cigarros, drogas, shots, coca-cola, hamburgers, batatas fritas, sal, açúcar, automóveis e telemóveis. Existem, contudo, objectos inocentes. São, aliás, objectos de salvação. Por exemplo, os preservativos em látex e os preservativos electrónicos. Em látex, protegem da procriação e da doença. Electrónicos, protegem dos acidentes de automóvel. Os santinhos, que o senhor abade nos dava na doutrina, já não são fiáveis. O Santino Safety System revela-se mais seguro. Consegue silenciar o telemóvel, a cigarra do século. Quer-me parecer que, preservativo sim, preservativo não, a pós-modernidade está cada vez mais vitoriana!
Marca: Groupama. Título: Santino Safety System. Direcção: Danielle Brunelletti. Itália, Outubro 2016.
À procura da manhã clara
Dois anúncios da Nescafé. Um mexicano. outro vietnamita. No anúncio mexicano Wake up to life: sunrise, o sol anda um tanto a quanto esquecido e atrasado. O povo procura a luz e o Nescafé substitui o galo, mudo e sombrio, como catalisador da madrugada.
Marca: Nescafé. Título: Wake up to life: sunrise. Agência: Publicis México. México, Fevereiro 2015.
No anúncio vietnamita I love Vietnam, o Nescafé é um ícone ou um hino de um povo adorável que adora um país adorável. Belas imagens.
Marca: Nescafé. Título: I love Vietnam. Agência: Publicis Ho Chi Mihn. Direcção: Mark Toia. Vietname, Outubro 2016.
O título do artigo é um verso roubado ao Canto Moço, de José Afonso.
José Afonso. Canto moço (Filhos da madrugada). Traz outro amigo também. 1970.
O morto agarra-se ao vivo
“Temos de sofrer não só da parte dos vivos como ainda da parte dos mortos. Le mort saisit le vif” (Karl Marx, Le Capital, Livre 1, Préface de la première édition, 1867).
Devo esta curta-metragem ao meu rapaz mais jovem. Em boa hora! Nos primeiros passos do blogue, limitava-me a uma base de anúncios publicitários. Sobrava tempo para outros formatos, por exemplo, curtas-metragens e vídeos musicais. Hoje, acompanho uma dúzia de bases de anúncios. “É maior o passo do que a perna”.
Borrowed Time tem a chancela da Pixar. É um colecionador de prémios. Gustavo Santaolalla, vencedor de dois oscars, compôs a música. A história não podia ser mais bem contada.
Qual é o alcance de um sentimento de culpa que não tem razão de ser? Como o ultrapassar? Como desfiar o novelo da memória? Como colar os fragmentos do espelho? Que segredam os objectos? É preciso peregrinar até ao abismo da dor? Estrear um ritual único? Bater à porta do inferno para reacender a alma? Há algo de cósmico nesta curta-metragem. Abarca o mundo e a vida com um punhado de pormenores.
Borrowed Time. Pixar. Andrew Coats & Lou Hamou-Lhadj. 2015 (?)
O bailado dos pepinos
Este anúncio da Hungarian Dance Academy é delicioso, com alguma malícia à mistura. Lembra os contos de fadas. Uma bailarina esforça-se para abrir, enquanto dança, um frasco de pepinos. Não consegue. Uma desilusão. Há falta de homens no bailado! Para aceder ao anúncio, carregar na imagem.
Anunciante: Hungarian Dance Academy. Título: Ballet needs boys. Agência: Leo Burnett Budapest. Direcção: Milos Ili, Imre Juhasz. Hungria, 2004.
O Galo e a Morte
Uma mulher diz a outra que teve um situação de emergência médica: “O galo rondou esta casa, deu várias voltas, mas foi cantar a outro sítio”. Por sinal, alguém faleceu na mesma noite.
O galo é um símbolo solar. Anuncia a aurora e a luz. É também um símbolo de valentia. Na mitologia grega, o galo, consagrado a Hermes, é um psicopompo, “função tradicionalmente atribuída a Hermes no mito grego, pois ele, além de mensageiro dos deuses, era o deus que acompanhava as almas dos mortos, sendo capaz de transitar entre as polaridades (não somente a morte e a vida, mas também a noite e o dia, o céu e a terra)” (Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Edição Eletrônica © 2003 Andrew Samuels/Rubedo, p. 88). Além desta função de transição entre as polaridades (as trevas e a luz; a morte e a vida), o galo encerra um lado lunar.
O galo de Barcelos é o primeiro exemplo que ocorre. Cozinhado e ressuscitado, o galo é protagonista de uma lenda marcada pela morte. Segue o galo da Negação de São Pedro antes da crucificação de Cristo. A associação do galo à morte existe na crença popular. No Brasil, em Espanha e em Portugal, acredita-se que o canto do galo fora de horas (antes ou à meia-noite) é mau augúrio: alguém da casa, ou vizinho, vai morrer. O galo agrega-se, assim, aos animais anunciantes da morte: o mocho, a borboleta negra, o morcego, o cão, o gato… Um conto brasileiro inicia com um galo a matar uma criança. A mãe pede a outro filho para matar o galo e o abandonar em água corrente. O filho não segue a recomendação. Ele e três amigos matam o galo, cozinham-no e morrem antes de o provar. (http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/830891).

Figura 2: Meister E. S., Ars moriendi. Circa 1450.
As gravuras de Mestre E. S. constam entre as muitas imagens dedicadas à Ars moriendi (Arte de morrer) nos séculos XV e XVI. Testemunham uma mudança de atitude perante a morte. Observa-se uma antecipação do julgamento final. A prova deixa de esperar pelo fim dos tempos para se concentrar no momento de morrer. Continua a envolver um combate cósmico. De um lado, as forças celestiais, do outro, as forças demoníacas. As pessoas presentes não conseguem ver estas forças. Apenas o moribundo (atente-se no alheamento do grupo de três pessoas na Figura 1).
“O moribundo está recostado, rodeado pelos seus amigos e parentes. Seguem-se os rituais bem conhecidos. Mas sucede algo que perturba a simplicidade da cerimónia e que os assistentes não vêem; um espectáculo reservado apenas ao moribundo, que, por acréscimo, o contempla com um pouco de inquietação e muita indiferença. A habitação foi invadida por seres sobrenaturais que se apinham na cabeceira do jazente. De um lado, a Trindade, a Virgem e toda a corte celestial; do outro, Satanás e o exército dos demónios monstruosos. A grande concentração que nos séculos XII e XIII tinha lugar no fim dos tempos ocorre, a partir de agora, no século XV, na habitação do enfermo” (Philippe Ariès, Historia de la Muerte en Ocidente, Barcelona, El Acantilado, 2000, p. 48).
As gravuras de Mestre E. S. condizem com a análise de Philippe Ariès. Defrontam-se as cortes celestial e demoníaca. Pela sua disposição, na figura 2, o moribundo está a superar a prova. A chave de S. Pedro está próxima e os demónios parecem conformados. Ao cimo do leito, destaca-se um galo. A sua presença é rara nas gravuras, pinturas e livros da Ars moriendi. Qual é o seu papel? Cantor de mortes? Psicopompo? “Luz da noite”, o galo situa-se, de facto, entre dois mundos: o céu e o inferno, a luz e as trevas, a vida e a morte. Não obstante, inclino-me a atribuir o galo a S. Pedro, o inseparável galo de S. Pedro. Mas este tipo de figuras costuma ser polissémico.