Archive | Janeiro 2020

Bateria. Jenkins.

Karl Jenkins

Estou com as pilhas gastas. Acabei um artigo e comecei um prefácio. Somei quatro júris nas duas últimas semanas. Guardo, com zelo, uma trintena de trabalhos práticos para corrigir e tenho, graças ao Senhor, muito que plataformar. Não me queixo, tudo isto é deveras estimulante! Na gíria académica, são amendoins. Mas, para recarregar as baterias, preciso de alguma música que me dê energia. Por exemplo, Palladio, Concerto Grosso para Orquestra de Cordas (1996), de Karl Jenkins, com duas irmãs, pouco compenetradas, no violino. Para complementar, um ramalhete de notas infernais, o Dies Irae Requiem (2008), também de Karl Jenkins. De ficar boquiaberto. E, assim, deste jeito, um nada basta e, até, sobra.

Karl Jenkins. Palladio, Concerto Grosso para Orquestra de Cordas (1996). Orquestra Filarmónica de Monte-Carlo. Intérpretes: Camille Bertholet e Julie Bertholet. 2016.
Karl Jenkins. Dies Irae Requiem, 2008. The Celebrating Karl Jenkins Concert at the Wales. 2009.

Os sentidos na interação social

Na Digressão sobre a sociologia dos sentidos (1927), Georg Simmel aborda o modo como os sentidos participam na interacção humana. É um texto notável, a ler e reler sem vontade de bocejar. Um desequilíbrio nos sentidos pode afectar a normalidade social. No anúncio Overheard, da Eargo, o excesso de audição do pai perturba a família, que se descobre exposta a uma intrusão descontrolada.

Marca: Eargo. Título: Overheard. Agência: Huge. Estados Unidos, Janeiro 2020.

A valsa dos valores


Os valores sociais mudam. Muito ou pouco, por vezes, apenas de fachada. Mas mudam. Bernard Cathelat fala em rosa-dos-ventos dos estilos de vida (Styles de vie, 1985). Vários autores estudaram empiricamente as dinâmicas dos valores sociais, por exemplo, Ronald Inglehart (The Silent Revolution, 1977), Pierre Bourdieu (La Distinction, 1979), Alain Girard e Jean Stoetzel (Les valeurs du temps présent, 1983) ou Pascale Weil (A quoi rêvent les années 90 ?, 1993). Os valores axiais estão sempre presentes na sociedade, mas, tal como as teclas de um piano, ora os castigamos, ora os acariciamos. O efeito, o som, é diferente. Assim como o vento agita as folhas, o tempo altera os valores. Parece sentir-se uma aragem nos valores da partilha, da comunhão e da amizade. Os anúncios Quel millionnaire serez-vous, do Euromillions, e Max et Romain, da Bouygues, oferecem-se como indícios. Somam-se a outros com idêntica orientação. Duvido que o murmúrio resulte num ciclone. A partilha, a comunhão e a amizade integram a rosa-dos-ventos dos valores sociais. A nossa sociedade aposta neles? Com que intensidade? A nossa sociedade pós-moderna é moderna, de uma modernidade pintalgada por pirilampos românticos. A partilha, a comunhão e a amizade são pirilampos numa sociedade apostada no progresso, no sucesso, na burocracia, na técnica, na competição, no controlo, na quantofrenia, na prevenção, na aparência, no individualismo, no egoísmo, na ganância e no amor ao poder. Don Quixote e Sancho Pança e Romeu e Julieta não são nossos estandartes. Não é esta a opinião dos visionários da torre gótica da sabedoria. As luzes dos pirilampos podem ofuscar quem vive no pensamento. E, no entanto, o mundo comove-se. Basta viver para sentir. Sentir a experiência do mundo da vida. Não sou herdeiro da scholé, da distância académica à urgência e à necessidade, em suma, da distância à realidade. Parafraseando Goya, a distância à realidade produz monstros. Não são os valores da partilha, da comunhão e da amizade importantes? Sem dúvida, mas não são os mais característicos da nossa sociedade. Nós somos a sociedade dos direitos e o amor é torto.

O anúncio Quel millionnaire serez-vous é falado e em francês. Não é o nosso forte. Passo a resumir. Um grupo de amigos espanta-se com o valor do prémio do “euromilhões”. Que faria cada um caso ganhasse? O último a pronunciar-se garante que o partilharia com os amigos, ou seja, com eles. Descrédito geral. Retira do bolso o bilhete… vencedor. “É vosso!”

Marca: Euromillions. Título: Quel millionnaire serez-vous ?. Agência: Romance. Direcção: Katia Lewkowicz. França, Janeiro 2020.
Marca: Bouygues Telecom. Título: Max et Romain. Agência: BETC. Direcção: Martin Werner. França, Janeiro 2020.

Beleza oriental

O anúncio turco Giysilerin Askina, da Yumos, é uma raridade estética. Tudo é bonito, as pessoas, frescas, a paleta de cores, fantástica, e a banda sonora, que inclui uma música cantada em português. Diga o que disser, diga-o com flores.

Acrescento o anúncio da Elidor, Güç Doğamızda Var, produzido pela mesma agência: Wunderman Thompson Turkey. Comparativamente, o colorido desbota um pouco e a banda sonora é menos elaborada, o que resulta, de algum modo, compensado pelo diálogo criativo entre fragmentos, metades, do ecrã.

Dois anúncios excelentes!

Marca: Yumus. Título: Giysilerin Askina. Agência: Wunderman Thompson Turkey. Direcção: James f. Coton. Turquia, Janeiro 2020.
Marca: Elidor. Título: Güç Doğamızda Var. Agência: Wunderman Thompson Turkey. Turquia, 2018.

Liberdade sem freio

Quino. Gente en su sitio. 1986.

Numa sociedade que se diz avessa a grandes narrativas, proliferam grandes teorias omnívoras. Temos profetas! Profetas como, a seu tempo e a seu modo, Karl Marx ou Auguste Comte. Só não falam o mesmo idioma. Trata-se de um negócio intelectual interessante: vendem-nos armaduras como se fossem t-shirts (Albertino Gonçalves).

O escocês Alexander Sutherland Neill (1883-1973) foi um escritor e educador visionário. Entendia que os alunos deviam ser livres e responsáveis. Livres de aprender o que, quando e como desejassem e responsáveis do seu destino, participando ativamente nas decisões da escola. Estava convencido que a falta de liberdade e de responsabilidade é atrofiadora. À semelhança de alguns utopistas do século XIX, passou da teoria à prática, realizou a ideia. Criou uma escola pioneira; Summerhill. O livro, publicado em 1960, advoga esta Liberdade sem medo (Summerhill: A Radical Approach to Child Rearing). Curiosamente, o prefácio foi escrito por Erich Fromm, autor do livro O Medo à Liberdade (Escape from freedom, 1941).

O livro Liberdade sem Medo acertou na minha costela anarcoide. Quando leio um poema de Jacques Prévert, vejo um filme do Jacques Tati, percorro as tiras da Mafalda ou oiço o Another Brick in the Wall dos Pink Floyd, penso no Alexander S. Neill.

Uma criança, um aluno, não é uma tábua-rasa, para retomar o termo de Émile Durkheim.

“A educação tem como objetivo sobrepor ao ser individual e associal que somos ao nascer um ser inteiramente novo. Deve conduzir-nos a ultrapassar a nossa natureza inicial: é nesta condição que a criança se tornará um homem” (Émile Durkheim, Éducation et Sociologie, 1911).

A criança não é papel mata-borrão. A sua vocação não se resume ao processamento de informação. Quer-me parecer que nos últimos tempos temos cultivado essa falácia. Muito modelo, muita multiplicação.

“Uma educação capaz de desenvolver o julgamento e a vontade é perfeita, quaisquer que sejam as matérias ensinadas. Com estas qualidades, o homem sabe orientar o seu destino. Vale mais compreender do que aprender » (Gustave Le Bon. Hier et demain: pensées brèves. Paris, Flammarion, 1918).

Por falar em Jacques Tati, junto um vídeo com alguns excertos do filme Les Vacances de Monsieur Hulot (1953).

Jacques Tati. Les Vacances de Monsieur Hulot. 1953. Excertos.

Richard Wright. Uma festa no céu.

Dos quatro membros dos Pink Floyd, dois são ostensivos, David Gilmour e Roger Waters, e dois, discretos, Richard Wright e Nick Mason. A notoriedade coloca sempre o mesmo à frente dos olhos e os outros, nas costas. Neste sentido, a notoriedade enviesa e empobrece.

Richard Wright, falecido em 2008, não era apenas o teclista da banda, era compositor e vocalista. Assinou, por exemplo, cinco das dez músicas do The Dark Side of the Moon, mormente o fabuloso The Great Gig in the Sky. Produziu álbuns a solo antes e depois da separação do grupo: Wet Dream, em 1978, Identity, com Dave Harris, em 1984, e Broken China, em 1996. Retive três músicas: Reaching for the Rail, com Sinead O’Connor; Breakthrough, ao vivo, com David Gilmour, em 2002; e, para culminar, The Great Gig in the Sky (1973).

Richard Wright. Reaching for the Rail. Com Sinead O’Conner. Broken China. 1996.
Richard Wright. Breakthrough. Com David Gilmour. Broken China. 1996. Ao vivo em 2002.
Pink Floyd. The Great Gig in the Sky. Dark Side of the Moon. 1973. Compositor: Richard Wright.

A sociedade do medo. O riso e a morte.

O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que acaba por exprimir apenas o seu desejo de dormir (Guy Debord, La société du Spectacle. 1967).

Há uma eternidade que não ria tanto com um anúncio. Aberta e espontaneamente. Uma empresa de electricidade malaia ridiculariza as novas tecnologias da realidade virtual. Importa rir.

A sociedade actual menospreza o riso. Aposta, em contrapartida, no medo, na catequese da ameaça, a modos como a santa inquisição, o nazismo, o estalinismo e outros guardadores de homens. Receamos tudo, até a água que bebemos e o ar que respiramos. Novos pastores, novos rebanhos, novos lobos, novos fantasmas, novos cavaleiros do Apocalipse.

Quino. Hombres de Bolsillo. Editorial. Lumen. 1977

Morre-se um pouco todos os dias. Nada escapa, tudo prejudica, tudo mata. Perdi a conta aos catastrofismos políticos e mediáticos a que sobrevivi. Acrescento uma bandeira à procissão: a vida precede a morte, viver pode matar! Mas, apesar da proliferação de infortúnios, só se morre uma vez. Parece que estamos pendurados num rosário de mortes. Se tudo mata, o riso ressuscita! É o que interessa. Convém reconhecer que os nossos pastores, ao contrário dos inquisidores, não nos conduzem a uma vala comum, satisfazem-se com o comboio fantasma. Não tenho emenda. Este comentário não faz jus ao anúncio. No meio de tanto humor, atravessou-se um espantalho.

Marca: TNB CNY 2020. Título: Reality Not Virtual. Produção: Reservoir World. Direcção: Quek shio Chuan. Malásia, Janeiro 2020.

David Gilmour. A guitarra e o saxofone.

David Gilmour.

David Gilmour e Roger Waters são diferentes. Talvez por esse motivo funcionaram bem juntos. Dos discos a solo de David Gilmour, escolhi três músicas: Love On The Air, do álbum About Face, de 1984, e Smile, do álbum On An Island, de 2006. A terceira música é um extra: David Gilmour toca um solo, não de guitarra, mas de saxofone (Red Sky At Night, On An Island, ao vivo, The Island World Tour 2007).

David Gilmour. Love On The Air. About Face. 1984.
David Gilmour. Smile. On An Island. 2006.
David Gilmour. Red Sky At Night. On An Island. 2006. The Island World Tour 2007

Roger Waters. O pranto da contestação.

Roger Waters. Álbuns.

Tenho-me sentido pobre. Falta-me tempo. O que me ocupa é autofágico. Consome e não produz.  Os membros dos Pink Floyd produziram discos a solo: Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright… São discos menos conhecidos, longe do sucesso dos Pink Floyd. Roger Waters publicou vários discos, incluindo uma espécie de ópera: Ça Ira, de 2005. As músicas que seguem pertencem aos discos Radio K.A.O.S., estreado em 1987, após a saída dos Pink Floyd, e Amused To Death, lançado, mais tarde, em 1992. Quando voltar a estar sem tempo, será a vez  de David Gilmour.

Roger Waters. The Tide is Turning. Radio K.A.O.S., 1987.
Roger Waters. Amused to death. Amused to death. 1992.

A beleza como obrigação

A Dove proclama o que todos sabem: existe uma escravatura do corpo a par de uma compulsão estética. Nunca a beleza reinou tanto como na era da emancipação. O corpo é meu; faço dele o que entendo; deve agradar. Tanta dedicação ao corpo só nas odaliscas, nas cortesãs e nos castrati. A plasticidade do corpo é um desafio e uma responsabilidade. Requer cuidado, desde as unhas dos pés até às unhas das mãos, passando pelas intimidades. A totalidade do corpo pode ser alvo do cuidado estético. Esta tendência alastra-se a toda a população, incluindo os homens. Cuidar do corpo é uma tarefa sisífica e minuciosa: nenhum pelo, nenhuma borbulha, nenhuma verruga, nenhuma branca, nenhuma mancha, nenhuma ruga, nenhuma secura… Muita arte preventiva e reparadora. Muita aparência. Muita cosmética. A Dove parece remar contra a corrente, mas a favor do mercado. Enquanto a receita render, simulará quebrar o espelho do século. Mas a visão de um anúncio da Dove pode conviver com a marcação para fazer as unhas, o ginásio, a massagem adelgaçante, esticar o cabelo, a limpeza de pele, a terapia aromática e a depilação dos sovacos, queira a Dove ou não. A Dove não está fora do jogo; joga com as regras. O espelho da beleza, a reflexividade estética, é de tal ordem que não existem rainhas feias impossíveis de embelezar. A publicidade da Dove não é estranha. Estranho é não ser seguida por outras marcas.

Marca: Dove. Título: Purpose. Agência: Ogilvy London. Direcção: Lisette Donkersloot. Reino Unido, Janeiro 2020.