Querido mês de Agosto. As costas também andam.

Escrever como quem brinca.
Agosto está a acabar. Não é verdade que “é em Setembro que se pode viver a sério” (Gilbert Bécaud, C’est en septembre, 1978). Em Setembro, a vida torna-se séria, sisuda.
Agosto, mês dos banhos; ninho dos deslocados; aceleração dos atrelados. Em Agosto, queima a areia, o fogo, o ar, o corpo; as romarias escaldam. Nos corredores de Setembro, não há portas para o sagrado (se se proporcionar: Gonçalves, Albertino & Gonçalves Conceição, “Uma vida entre parênteses: tempos e ritmos dos emigrantes portugueses em Paris”).
Despeço-me de Agosto com Rachmaninov. Logicamente, não sei a razão da escolha. Se fosse místico, diria que foi Rachmaninov que me escolheu. Um êxtase ou uma aparição. Quando algo assenta bem não costumo fazer muitas perguntas. Basta o milagre!
All by myself, um sucesso dos anos setenta, de Eric Carmen, inspira-se no Piano concerto nº2, de Rachmaninov. Dar as mãos é uma bênção. Bem como admitir que quando andamos, as costas também andam. All by myself. Nunca me pressenti tão só como no mês de Setembro. Mea culpa!
A corrosão electrónica

O Brasil salienta-se pela homeopatia, cultural, do grotesco. Reúne sábios e rituais notáveis. Não espanta o anúncio Anger (Raiva), do Clube de Recriação do Rio de Janeiro. Coaduna-se, aliás, com o espírito da publicidade de festivais congéneres (vídeo, cinema, documentário). Estamos habituados. Mas o Anger exorbita. Na idade electrónica, as máscaras, a nossa identidade natural, deformam-se catastroficamente, e ódio já não se estranha, entranha-se. Quanto à nossa imagem, aproxima-se de uma orgia de pixels.
A igualdade de género nos anúncios de automóveis

Um grupo de alunos do curso da licenciatura em Sociologia apresentou um trabalho dedicado à Desigualdade de Género na Publicidade Automóvel* (DGPA). Os protagonismos e os papéis de género mudaram nos anúncios de automóveis das últimas décadas? É um privilégio aprender com os alunos. Vou replicar estudo alargando-o a um conjunto de anúncios recentes da Fiat.
No anúncio “Dolce Vita” (5/7/2019), do Fiat 500, cabe ao homem conduzir. Mas, curiosamente, o homem quase não aparece. Os protagonistas, devidamente estetizados, são o carro e a mulher. O condutor, masculino, resume-se a um acessório residual.
No anúncio “Driven by dreams since 1899” (5/3/2019), do Fiat 500, a mulher é condutora, protagonista e utilizadora. Acompanha-a uma segunda mulher. Os homens aparecem por vias travessas: um como “sedutor não-verbal” e os outros dois como “emplastros”.
A intertextualidade reina na publicidade. Proponho um exercício. No anúncio Driven by dreams, temos os seguintes apontamentos:
- Relevância da música;
- A protagonista não para de “dançar”;
- Dois carros parados lado a lado num semáforo;
- Comunicação não-verbal entre os dois condutores, homem e mulher; um quase assédio.
- Aparição, do nada, de dois homens no banco de trás (Let Shaggy e Sting).
Observe-se, agora, o anúncio italiano Staying Alive (2008), da Kenwood:
Relevância da música;
A protagonista não para de “dançar”;
Dois carros parados lado a lado num semáforo;
Comunicação não-verbal entre os dois condutores, homem e mulher; um quase assédio.
Aparição, do nada, de um morto (vivo) no banco de trás (Let Shaggy e Sting).
Há coincidências! Certo é que o anúncio Driven by dreams, do Fiat 500, incorre em discriminação de género: valoriza a mulher em detrimento do homem. Mas não faltam formas de assegurar a igualdade de género na publicidade.
Uma forma, corrente, de respeitar a igualdade de género consiste em não incluir nem homens nem mulheres. O anúncio do Fiat Toro 2020 é um bom exemplo. Recorda o provérbio segundo o qual, para escândalo do Padre António Vieira, “os peixes grandes comem os pequenos”. Ressalvando a filosofia, nenhuma sombra de presença humana, masculina ou feminina.
Um modo de igualar homens e mulheres nos anúncios de automóveis consiste em compensar os símbolos e os desempenhos de género: agora conduz o homem, logo conduz a mulher, com protagonismos idênticos. É o caso do anúncio Quality Time, do Mercedes-Benz SL-Class.
Estas tentativas arriscam-se a conter falhas e vícios susceptíveis de a imparcialidade de género. Assim o entende o grupo de alunos:
“Neste vídeo publicitário, do automóvel de classe SL da marca Mercedes-Benz de 2017, tem duração de 1 minuto e 44 segundos e pode dividir-se em dois momentos, aquele que acontece de dia, até o sol se por, e aquele que é gravado de noite. No primeiro momento, o protagonista e única pessoa presente em cena é um homem e o automóvel seleccionado é de cor azul. O homem entra no automóvel e inicia uma longa viagem, por extensas estradas que passam por zonas naturais, onde não há casas, ou seja, zonas não urbanas, e que presenteiam a quem vê o vídeo paisagens encantadoras. Esta cena termina com o amanhecer, o homem está dentro do automóvel que se encontra parado, num lugar onde é possível observar o pôr-do-sol.
O segundo momento é protagonizado por uma mulher, que também é única a viajar no automóvel que desta vez é da cor branca. Este momento ocorre à noite e, ao contrário da viagem protagonizada pelo homem, esta viagem acontece numa zona citadina. São captadas algumas cenas com o carro em movimento, até que este chega a uma zona alta e estaciona para apreciar a paisagem nocturna da cidade.
Todo o momento protagonizado pelo homem consome 1 minuto e 11 segundos dos totais 1 minuto e 44 segundos do vídeo. O momento protagonizado pela mulher dura somente 33 segundos. Esta é talvez a principal diferença entre as cenas em que as personagens principais são, respectivamente, um homem e uma mulher. Outra diferença que poder ser realçada é a troca de cores do veículo. Quando é o homem a conduzir, o automóvel é azul. Quando é a mulher a conduzir, este é branco. Para além disto, as cenas onde está inserido o homem foram gravadas de dia, num local natural, sem grande intervenção do homem, tirando a própria estrada onde este viaja, e as cenas onde a mulher é a condutora foram gravadas numa cidade, durante a noite” (DGPA, págs. 26-27).
Mas é concebível um anúncio aproximar-se milimetricamente da igualdade de género, mediante a aposta na simetria rigorosa dos papéis e dos desempenhos masculinos e femininos. É o caso do anúncio Instinct de Séduction, do Renault Clio.
Recorro, novamente, à generosidade do comentário dos alunos:
“Nesta publicidade, o slogan é perfeitamente capaz de traduzir todo o conteúdo que nela está implícito (“Instinct de séduction”- Instinto de sedução). São utilizados dois automóveis iguais, mas de cores diferentes, apelando à participação do género feminino e masculino. A mulher conduz o automóvel vermelho e o homem conduz o automóvel branco. Durante a campanha, é possível verificar que o objectivo da mesma é criar um charme e uma conexão entre os dois géneros, é importante criar um elo de ligação através dos olhares que trocam. No momento em que os automóveis se cruzam, o nível de aceleração dos automóveis acompanham-se não existindo relações de superioridade. Assim, homem e mulher estão ao mesmo nível, possuindo ambos a capacidade de fazer jus a um automóvel moderno, actual e único. A imagem feminina em momento algum se mostra receosa ou com pouca confiança. A assertividade e a certeza do que está a fazer não abrem margem para duvidar das suas habilidades” (DGPA, pág. 19).
Em suma, um pequeno sobressalto mental: quais destes seis anúncios nos incentivam a equacionar as relações de género na vida quotidiana?
*Cristiana Maria Faria Leitão; Daniela Filipa Borges Oliveira; Duarte Machado Gonçalves Abreu; Luísa Maria Cunha Ribeiro; Maria Carolina Silva Carvalho, Desigualdade de Género na Publicidade Automóvel, Relatório da Unidade Curricular de Projecto e Prática em Sociologia. Tutor: Joel Felizes. Licenciatura em Sociologia. Universidade do Minho. Janeiro 2019.
Quando o corpo incomoda a alma
Avoir un corps, c’est la grande menace pour l’esprit (Marcel Proust, Le temps retrouvé, NRF, 1927).

O corpo fala. Não se cala. E grita! Dores, avisos, urgências e avarias; a alma não sossega. A quem tem o purgatório em vida, apetece-lhe cegar os sentidos, pontapear o mundo e puxar o paraíso pelos cabelos.
A Bíblia permite várias interpretações. No Génesis, Adão e Eva andavam nus. Mal comeram a maçã, procuraram folhas de figueira para se resguardar. Foi nesse preparo que Deus os encontrou. O primeiro castigo não foi o trabalho, nem o parto, mas o corpo! Acontece zangar-me com o corpo. E não adianto nada.
A canção Child in Time, dos Deep Purple, vem, já tardava, a talhe de foice.
Etta James

Há vozes que vêm de longe e passam sem bater à porta. Não se ouvem nem se vêem nos circos actuais da cultura e do entretenimento. No entanto, quando, por acaso, as escutamos, rasga-se uma fenda no glaciar da memória. Etta James, quem se lembra de Etta James?
Sociologia e música

As minhas férias são uma espécie de Halloween da música. Ouço vivos, mortos e mortos vivos. Até imagino a sociologia a dançar com a música.
O Tendências do Imaginário tem sido parcimonioso em relação a Mozart. Contempla apenas o Piano Concerto nº 23. Hoje, acrescento o Piano Concerto nº 21. A pensar em Norbert Elias, sociólogo que lhe dedicou um livro: Mozart – Sociologia de um Génio (1991).
Max Weber, que tocava piano, escreveu vários ensaios sobre música. Alguns estão reunidos no livro Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música (São Paulo, Edusp, 1995). Theodor W. Adorno é, provavelmente, o sociólogo que mais abordou a música. A música marca o seu início de carreira, enveredando mais tarde pela sociologia. Tem ensaios sobre Schoenberg, seu amigo, e um livro dedicado ao seu antigo professor de música: Alban Berg: Master of the Smallest Link (1968). Entre os demais livros sobre a música, assinalo: Filosofia da Nova Música (1949), Mahler – Uma fisionomia musical (1960); Night Music: Essays on Music 1928–1962 (1964); e Introdução à Sociologia da Música, São Paulo, Editora Unesp, 2017. Além de escrever sobre a música, Adorno também escreveu música. Compôs vários estudos e peças para piano ou violino. Segue o Movimento 4, dos Estudos para Quarteto de Cordas (1920).
O rabo do diabo

Vós, que sois os ministros do nosso bem, livrai-nos de todo o mal! Da violência, do sexo, do álcool, do tabaco, da droga, da obesidade, dos maus pensamentos, do chupa-chupa e do sorvete. Um rosário de imagens feridas de prazer nefasto. Uma mesa mais pesada do que a mesa dos sete pecados mortais de Hieronymus Bosch. Quer-me parecer que a árvore do mal mais do que da ciência é do prazer. Deus não condenou Adão e Eva à ignorância mas ao sacrifício. Mais Eva do que Adão. Filhos de Adão, Filhas de Eva é o título de um livro João de Pina Cabral (1989). Somos todos filhos de Eva.
Galeria: Mal-aventurados
01. Sem para-quedas. 02. Crucificada. 03. Amor letal. 04. Fumo infernal. 05. O bafo do diabo. 06. Chupa-chupa malévolo. 07. Lambidela mórbida. 08. Pela boca… 09. Ceci n´est pas une drogue 10. A epidemia da obesidade. 11. Encarcerada. 12. De volante em volante.
Pensei acompanhar este rosário de doze imagens com um requiem, funesto, ou com uma valsa, vital: o Lux aeterna (Requiem for a Dream), de Clint Mansell (https://www.youtube.com/watch?v=CZMuDbaXbC8); ou Sylvia, Intermezzo and Slow Waltz, de Leo Delibes (https://www.youtube.com/watch?v=rmOdU0o8Ke8). Como somos todos belas pessoas, escolhi Beautiful People, de Marilyn Manson.
Género e publicidade

Uma jornalista pediu-me a opinião sobre o protagonismo actual da figura da mulher e das minorias, designadamente nos media. Por exemplo, o próximo filme da saga 007, cujo protagonismo é atribuído a uma mulher negra. Este é um assunto que, para evitar contratempos, costumo esquivar.
O protagonismo das mulheres não é novidade, nem nos filmes, nem nos videojogos. Recordo, por exemplo, Lara Croft. Esgotada, a fórmula da saga 007 requer uma “refundação”.
A publicidade é um barómetro das mudanças de valores. É abrangente, com ancoragem nas dinâmicas sociais. O cinema, em contrapartida, é mais lento, mais denso, mais profundo, mais complexo e possui outros desígnios.
A fazer fé na publicidade, a figura da mulher está a passar por uma fase ostensiva. Muitos anúncios falam de mulheres, incluem mulheres e promovem, explicitamente, as mulheres.
Para ilustração, escolho, entre muitos, três anúncios.
O anúncio argentino Hat-trick para la historia, da Adidas, resgata o episódio de uma futebolista que, no mundial de 1971, marcou quatro golos à selecção feminina da Inglaterra. O anúncio propõe a criação, a 21 de Agosto, do “Dia da Futebolista em Argentina”. Convém referir que já existe o Dia do Futebolista em Argentina, a 14 de Maio. A justificação é semelhante: comemora um golo da vitória da Argentina contra a Inglaterra em 1953. Existe, ainda, o Dia do Treinador de Futebol a 13 de Novembro. O Hat-trick para la historia, da Adidas, lembra o anúncio da Nike publicado no passado mês de Julho (ver vídeo 3).
Publicado há uma semana, o anúncio argentino No existen, da Sertal Fem (vídeo 2), empenha-se em rebater estereótipos de género: “não existe roupa de mulher, nem um estilo de mulher, não existem desportos de mulher (…) nem os hobbies de mulher, mas existem, isso sim, coisas que são só nossas; por isso, para o odor menstrual existe Sertal Fem”. Não existem diferenças, salvo as diferenças.
O anúncio Never stop winning, da Nike, é um hino à mulher. Uma apoteose. Retomo o vídeo e o comentário do artigo Coroa de Louros:
“O futebol já não é o que era. Nunca foi! As mulheres jogam, treinam e sonham. No futebol, como no resto, aspiram ser as melhores.
Uma equipa feminina de futebol, a selecção americana, venceu o campeonato do mundo de futebol feminino de 2019. O sentido de oportunidade da Nike e a categoria da agência Wieden + Kennedy resultaram numa campanha de publicidade que alia visão, drama e emoção. Never stop winning estreou no dia 7 de Julho, dia da vitória da selecção americana.
Acrescento dois anúncios da Nike, do mesmo teor, publicados antes da edição do campeonato do mundo de futebol feminino (7 de Junho a 7 de Julho, em França): Dream with us (12 de Maio) e Dream further (1 de Junho). Estes hinos e chamamentos da Nike são excessivos, quase sagrados” (https://tendimag.com/2019/08/12/coroa-de-louros/).
Desconheço a política relativa ao género e às minorias das marcas Nike e Adidas. O mesmo para as agências Wieden + Kennedy e VMLY&R. À partida, o que lhes interessa é a promoção da marca junto do público. Sintonizar a bússola da sensibilidade colectiva. É verdade que, após décadas de mobilização, o género e as minorias estão na crista da onda. Mas a crista não é a onda e a onda não é o mar.
A Nike é omnívora em termos de causas sociais. Afirma-se como um expoente de “responsabilidade social”. O que não a impede de assinar anúncios com algum acento na virilidade. Creio ser o caso do anúncio Couldn’t Be Less Nice (Canadá, 2017).
O anúncio Couldn’t Be Less Nice, da Nike, convoca a violência, com os estereótipos do costume: a oscilação entre simpatia e agressividade; a figura do violento bom vizinho e amigo dos animais; e a profecia do vencido de que a força está do lado do inferno. O protagonista é uma versão do Alex, o vilão (sexista) do Laranja Mecânica (1971). A própria música do anúncio convoca a banda sonora do filme. A abertura de O Barbeiro de Sevilha (1816), de Gioachino Rossini, condiz com a abertura de La Gazza Ladra (1817) e a abertura de Guillaume Tell (1829), do mesmo compositor, incluídas no filme Laranja Mecânica ( https://tendimag.com/2018/01/22/o-lado-feio/ ).
Tudo indica que este anúncio da Nike foi retirado de circulação. No Tendências do Imaginário, deixou de estar acessível. Reproduzo-o neste artigo graças ao site Culturpub. Para aceder ao anúncio, carregar na imagem. Também pode aceder neste endereço: http://www.culturepub.fr/videos/nike-couldn-t-be-less-nice/.
