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Albert Bartholomé, o escultor da dor sensual

01. Albert Bartholomé. Baigneuse recroquevillée. Bronze dourado.

Somos pequeninos. E tanto amamos e sofremos.

Estou a reescrever o capítulo “Mortos Interativos, para o livro A Morte na Arte, e a preparar uma conversa (“Coisas do outro mundo: esculturas tumulares e visões noturnas”) para o dia 21 de outubro, na Casa da Cultura, em Melgaço, no âmbito do programa da Noite dos Medos que culmina no sábado, 29 de outubro. Nas minhas viagens internáuticas deparei-me em vários cemitérios com obras de um mesmo escultor: Albert Bartholomé. O que me permite retomar uma prática que tenho descuidado nos últimos tempos: a apresentação de obras e autores menos conhecidos que estimo dignos de apreço e reconhecimento por parte dos amigos do Tendências do Imaginário. Assim sucedeu com artistas mais antigos, tais como Jamnitzer, Stoer, Braccelli, Bronzino, Desprez, Callot ou Corradini, e mais recentes, tais como Nussbaum, Portinari, Vigeland, Folon ou António Pedro.

Albert Bartholomé (1848-1928), francês, foi pintor até aos 39 anos (figuras 3 a 8). A morte prematura da esposa, a aristocrata Prospérie de Fleury, grávida, em 1877, altera a sua vida. Abandona a pintura, mas, a conselho de Edgar Degas, converte-se à escultura, sobretudo funerária. Numa das primeiras obras, o túmulo da esposa (figuras 9 e 10), debruça-se sobre o corpo feminino num último adeus, um instante eterno que firma uma ligação e um compromisso sofridos [contraiu um segundo matrimónio em 1901 (figura 40)].

09. Albert Bartholomé. Por Charles Giron. 1901.

Escultor conceituado, Albert Bartholomé obteve o grande prémio de escultura da Exposição Universal de 1900. Boa parte das suas esculturas são imagens de dor, nuas, de uma nudez pura e sensível, senão sensual. De certa forma, um Degas da escultura, mas com as pregas vaporosas do bailado da vida a serem substituídas pelas curvas lisas do recolhimento e do silêncio da morte.

Figuras 9 e 10. Escultura do túmulo da esposa, frente à igreja de Bouillant, perto de Crépy-en-Vallois. França.

O Monumento aos Mortos no Cemitério do Père Lachaise, inaugurado em 1899, é a sua obra mais monumental. Apelidava-a de Porta do Além. Curvados mas inconformados em vida, os seres humanos acabam por se erguer à entrada da “porta da noite eterna”. Na parte inferior, um casal jaz, inseparável, sob o olhar do “espírito da vida e da luz” (figuras 11 a 16).

Figuras 11 a 16: Albert Bartholomé. Momumento aos Mortos. Cemitério do Père Lachaise.

Notáveis são também as carpideiras (pleureuses, mournings), designadamente a Douleur do cemitério de Montmartre. Inconsoláveis e reservadas, com o corpo parcialmente coberto por um manto e a cara tapada pelas mãos, resultam alheadas e mergulhadas numa espécie de limbo. Distinguem-se, não obstante, das carpideiras habituais, vultos fechados, focados no luto e na lamentação, quase incorpóreos, que lembram “fantasmas de vivos” (figuras 17 a 21).

Figuras 17 a 21. Exemplos de carpideiras.

Todas estas esculturas parecem inscrever-se num limiar, mas as de Bertholomé situam-se menos entre dois mundos, dos vivos e dos mortos, e mais num e noutro mundos, associadas e expostas a ambos (figuras 22 a 25).

Figuras 22 a 25. Albert Bartholomé. Esculturas seminuas de lamento e dor.

Particularmente impressionantes e inspiradoras manifestam-se as esculturas com nus integrais. Mulheres com rosto oculto por véus, pelas mãos ou pela posição, maioritariamente dobradas e encolhidas, em posição de autoproteção mas vulneráveis, aproximam-se de uma posição fetal. Convocam Eros e Thanatos, numa implosão de dor (figuras 26 a 35).

Figuras 26 a 36. Albert Bartholomé. Esculturas de nus femininos.

Despojadas e expostas, contrastam com as carpideiras ocultas por mantos e véus. A escultura O Sonho (figuras 35 e 36) deita-se como um caso à parte: nua, estendida, a mulher jaz sobre uma lápide, serena, como que entregue ao destino, num despojamento e abandono absolutos e sublimes (o pormenor do colar de pérolas concorre para acentuar a nudez).

Figuras 37 a 40. Outras esculturas de Albert Bartholomé.

As esculturas de Albert Bartholomé insinuam-se como fonte de inspiração para artistas e obras posteriores. Oferecem-se como sementes que germinam em cemitérios dispersos por todo o mundo (e.g. figuras 41 a 45).

Figuras 41 a 45. Esculturas tumulares semelhantes às de Albert Bortholomé.

Este artigo proporcionou-se demasiado extenso. Menos pelo texto e mais pelas imagens. Mesmo assim, não queria terminar sem acrescentar uma música a condizer. Claude Debussy e Maurice Ravel prestam-se. Por exemplo, Clair de Lune, de Debussy. Mas para atenuar a melancolia, em vez do original, opto pela versão jazz de Kamasi Washington.

Kamasi Washington. Clair de Lune. Compositor: Claude Debussy. The Epic. 2015.

Embarque

Há precisamente um ano, na margem, o corpo à frente e a alma atrás, fui salvo por uma neurologista. Se estou neste mundo, devo-o a duas mulheres.

  • Diabo                À barca! À barca! andem já
  •                            que temos mansa maré!
  •                            Podem manobrar de ré!
  • Companheiro  Assim mesmo como está!
  • Diabo                Corre ali, seu Coisa-má
  •                            e acerta aquele atravanco
  •                            deixando livre esse banco
  •                            para a gente que virá
  •                            À barca! À barca! Seu nabo,
  •                            pois logo queremos ir!
  •                            Já é tempo de partir,
  •                            com louvores ao Diabo!
  •                            E puxa bem esse cabo,
  •                            põe logo o convés a jeito!
  • Companheiro  Será logo tudo feito!
  • (Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, SWAI-SP editora, 2015)
Carl Orff. Carmina Burana. Reie. 1935-1936. Munich String and Percussion Orchestra. Madrigal Choir Munich. Conductor: Adel Shalaby.
Manuel de Falla. Siete canciones populares españolas. Nana. 1914. Violoncelo: Brinton Averil Smith. Piano: Evelyn Chen. Rice University’s Shepherd School of Music. 2011.

Períodos de insónia

Libresse/Bodyform. Periodsonia. 2022

A menstruação revela-se como um dos principais pretextos, materiais e simbólicos, da dominação masculina. A este respeito, falta percorrer um longo e espinhoso caminho, mormente ao nível do imaginário. A Libresse, Bodyform no Reino Unido, tem ousado alguns passos. No anúncio Blood Normal (2017), é a primeira marca a assumir o vermelho do fluxo menstrual, rompendo com a tradição, sublimada, em azul ou verde: “periods are normal. Showing them should be too” (ver Coisa Ruim: https://tendimag.com/2017/10/26/coisa-ruim/). No ano seguinte, 2018, o esplêndido, desinibido e divertido anúncio Viva la Vulva empenha-se na valorização estética da genitália feminina (ver Vulvas e Pirilaus: https://tendimag.com/2018/12/04/vulvas-e-pirilaus/).

O anúncio #Periodsomnia, uma peça de “arte digital” impressionante, prossegue a campanha, “que visa erradicar tabus e vergonha em torno das experiências íntimas das mulheres”, agora com incidência empática nas consequências quotidianas da menstruação, designadamente ao nível da qualidade do sono: “Uma nova pesquisa conduzida pela Libresse revela que, em média, as mulheres perdem 5 meses de sono ao longo da vida devido ao desconforto, à ansiedade e ao medo noturnos durante o período”. Trata-se de mais um caso de uma iniciativa de sensibilização motivada por um interesse próprio bem interpretado. Registe-se, por último, a tendência para o recurso a dados estatísticos para sustentar as mensagens de consciencialização.

Marca: Libresse. Título: #Periodsomnia. Agência: AMV BBDO, London. Direção: Kim Gehrig. Reino Unido, julho 2022.

És boa como um melão! Rugas, beleza e maturidade

Anonymous, Marcia Painting Self-Portrait Using Mirror (detail), in Giovanni Boccaccio’s De Mulieribus Claris, c. 1403. Bibliothèque Nationale de France.

A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa minoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude [ousa saber]! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (Immanuel Kant).

O anúncio espanhol Espejito, espejito: ¿quién es la más bella?, da empresa Frutas Bruñó, surpreende. Pela excelência, pela forma e pelo conteúdo. Começa por contrapor o adágio da maturidade consolidada ao estereótipo da frescura superficial, mas nos últimos segundos somos instados, abruptamente, a reconsiderar: o anúncio não incide nem sobre o envelhecimento nem sobre a beleza mas sobre o melão, produto cujas rugas evidenciam qualidade. As mulheres e a beleza funcionam apenas como um pretexto ou uma alavanca. O alvo e a estrela é o melão. Sobram, entretanto, algumas dúvidas:

Por quê tantas mulheres e nenhum homem? Porque o melão tem forma de ovo? Não parece. Porque o binómio maturidade e beleza se conjuga sobretudo no feminino? Por quê o acento no corpo, com tempero de espírito, em vez da tónica no espírito, com tempero do corpo? Na verdade, o melão não deixa de ser uma coisa que, nos antípodas do cachimbo, enferma conotações intelectuais perversas.

Certo é que, ao visionar primeiro a versão inglesa, estranhei que o anúncio não fosse latino. Em particular, espanhol. Será que na publicidade subsiste uma “marca” ou um “toque” nacional? Por exemplo, uma pitada de salero? Registo, de qualquer modo, uma nova associação socio culinária: à feijoada das classes populares, à salada das novas classes médias e ao caviar das classes altas, acrescento o melão da excelsa maturidade feminina. Vislumbro, também, um novo elogio: “És boa como um melão!”

Este anúncio é “una reflexión sobre el paso del tiempo y la #madurez en una sociedad que suele asociar belleza con juventud. / Nosotros, en cambio, pensamos que la #belleza es un concepto mucho más grande. / De la misma forma que conseguir un melón perfecto requiere tiempo y que su corteza llena de estrías esconde un interior sabroso, creemos en la belleza de la experiencia, de lo aprendido y ganado con la madurez, y de todo lo que va más allá de la mirada superficial sobre las cosas y las personas” (Agencia Kids).

Marca: Frutas Bruñó. Título: Espejito, espejito: ¿quién es la más bella?. Agência: Kids. Direção: Alfonso Gavilán. Espanha, junho 2022.

Transfiguração

O anúncio Flip, da B&Q, é exotérico e surpreendente. Baralha o olhar. Uma mulher inteira-se que está grávida e o mundo transfigura-se. Porque de transfiguração se trata! A religião cristã sempre se debateu com um desafio: apostada na catequese e na mediação com o divino através da imagem, como lograr dar visibilidade ao invisível? A publicidade confronta-se com outro problema: como expressar um pico hiperbólico de emoção?

Marca: B&Q. Título: Flip. Agência: Uncommon, London. Direção: Oscar Hudson. Reino Unido, maio 2022.

No que respeita à transfiguração, a resposta mais corrente parece ser, desde os evangelhos até aos anime, a suspensão da gravidade (ver A civilização da leveza), que neste anúncio se desdobra, em termos de relação com o espaço, em decomposição, à Tarkovsky, desorientação, à Escher, e transição, à Michel Gondry.

Andrei Tarkovsky. O Espelho. Excerto. 1975.
M.C. Escher. Relatividade. 1953.
Marca: Motorola. Título: Experience. Agência: Cutwater. Direção: Michel Gondry. USA, 2007.

A participação da mulher nos Farrangalheiros de Castro Laboreiro

Brilhantes, os meus colegas publicam em revistas com revisão por pares e fatores de impacto. Preguiçoso, vou vertendo o que escrevo neste blogue. Alimento a ilusão que talvez alcance mais leitores.

Há mais de dois anos que não arrisco uma comunicação em público. O Congresso Internacional Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade (Braga, 4-5-6 Maio de 2022) foi uma tentação a que não resisti. A investigação em curso dedicada aos Farrangalheiros, uma tradição carnavalesca de Castro Laboreiro, foi um pretexto. Estava um pouco inseguro pela falta de treino. Ademais, trata-se de uma autoria partilhada, com o Daniel Maciel e a Margarida Codesso, formato que não sou vezeiro. Para partilhar a minha parte, passeia-a escrito.

Por princípio, nunca escrevo uma comunicação antes de a proferir. Receio que o fantasma do texto me tolha a fluência e a espontaneidade, ingredientes do discurso que muito prezo. Felizmente, depressa ignorei o texto e acabei por ultrapassar, para inquietação da moderadora, a escassa dúzia de minutos que me estava reservada. Incontinente verbal, como de costume.

Bem organizado, o Congresso versa sobre um tema oportuno. Não obstante, estranhei a quase ausência de público no auditório. Um punhado de gente, que não compensa o esforço de subir a um estrado arquitetado com barreiras. Pode-se atribuir o vazio à pandemia. De facto, a tendência vem-se acentuando há muito mais tempo. O declínio da interação presencial representa mais uma perda axial do mundo da cultura. Talvez tenha chegado a urgência de reagir.

Antes de acrescentar o rascunho da comunicação, um reparo prévio. A investigação ainda se encontra numa fase inicial. São muitas as inconsistências e as falhas de informação. A ossatura é demasiado tosca, oca e mole. E, sobretudo, passível de emenda, especialmente os nomes e as designações. Motivo reforçado para a expor à crítica alheia.

Em Janeiro de 2021, foi publicado no Tendências do Imaginário, um artigo, com outro teor, dedicado ao tema dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro. Pode aceder a partir da seguinte ligação: https://wordpress.com/post/tendimag.com/48685.

A participação da mulher nos Farrangalheiros de Castro Laboreiro
Autores: Albertino Gonçalves / Daniel Maciel / Margarida Codesso

Melgaço é um concelho que adquiriu, no último meio século, uma rara notoriedade. A autarquia e a sociedade civil não desperdiçam uma oportunidade, tornando a mais ínfima potencialidade num trunfo apreciável. Parece que se inspiram na fábula da ferradura e das cerejas. Acontece com o património histórico, paisagístico e cultural, com o desporto na natureza, a gastronomia, o alvarinho e o fumeiro. Ainda recentemente, de um paralelepípedo granítico, o marco nº 1 da fronteira portuguesa, nasceu um recanto místico; e um apertado rio apressado, o Laboreiro, ascendeu a santuário europeu para a prática do Kayak e do Canyoning.
Nesta lógica de valorização do património cultural endógeno, deu-se início em 2017 ao estudo e revitalização das práticas de entrudo. Um dos focos incide na tradição dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro, uma festividade carnavalesca do tempo dos bisavós, entretanto abandonada e agora em vias de ser retomada.
Na primeira metade do século XX, Castro Laboreiro era um território de montanha, com uma extensa linha de fronteira com a Galiza e extremamente pobre. Testemunham-no, por exemplo, Leite Vasconcelos, Rocha Peixoto e Miguel Torga. A maioria da população mudava de residência: passava o inverno, no vale, nas inverneiras, e o verão, no planalto, nas brandas. Os homens migravam cerca de seis meses, partindo no outono para a Espanha, o Douro ou as Beiras, sobretudo como pedreiros, regressando na primavera. Durante o inverno, a população de Castro Laboreiro era composta quase exclusivamente por mulheres. Homens, muito poucos, sobretudo velhos e crianças. A economia assentava na agricultura, reduzida praticamente à batata e ao centeio, na pecuária, mormente no pastoreio, no comércio local e transfronteiriço, no contrabando e nas migrações.
Pouco antes da deslocação para as brandas, festejava-se o “Entroido. Nalguns lugares, o Entroido incluía a figura dos farrangalheiros, com as mulheres a assumir, em trajo próprio, o protagonismo, protagonismo este que, embora propiciado pela ausência dos homens, se oferece como uma característica marcante e específica. Habitualmente, na vizinha Galiza ou em Trás-os-Montes, o destaque carnavalesco recai sobre os homens, principalmente jovens. Não se trata, é certo, de um caso único, existem outros exemplos noutros horizontes. Representa, contudo, um caso bastante interessante e raro.
Em que consiste o Entroido dos farrangalheiros em Castro Laboreiro? Dois ou três lugares contíguos juntavam-se, desdobrando-se a freguesia por vários grupos, que competiam e rivalizavam entre si.
Durante o dia, de sábado a terça, esfarrapados e farrangalheiros, assim se chamavam as mulheres trajadas, desfilavam pela freguesia e concentravam-se num ou noutro local, normalmente, numa eira. Havia várias categorias de atores.
Em primeiro lugar, os esfarrapados, homens ou mulheres travestidas (o único momento em que vestiam calças). Os esfarrapados andavam de lugar em lugar, de caminho em caminho, de eira em eira. Apareciam inesperadamente, provocavam a desordem e a confusão, “faziam coisas estúpidas”, no dizer das informantes. Achocalhavam, multiplicavam as provocações de gracejo. Vestidos com roupas velhas, esfarrapadas, daí o nome, cobriam o rosto com máscaras ou panos com orifícios. Tão cedo apareciam como desapareciam, a lembrar tempestades de verão.
Mulheres, trajadas a preceito, eventualmente acompanhadas por animais, compunham a segunda categoria, porventura a mais emblemática: os farrangalheiros. Com um garruço, um pano bordado a tapar o rosto, blusa, lenços, piúcas, socos… e um saiote vermelho, peça quotidiana de roupa interior, usada entre a saia branca de linho ou a combinação e a saia preta. Que mulheres? Como não é de estranhar, apenas as solteiras, mas, segundo alguns testemunhos, o uso do traje e a participação no Entroido podiam estender-se, em condições semelhantes, às mulheres casadas que, cito, “tinham o homem no eido”. Ou seja, as mulheres cujo marido estava presente. O que não deixa de fazer sentido. Excluem-se apenas as mulheres simbolicamente “assexuadas”, as viúvas, nomeadamente, de vivos, tradicionalmente obrigadas a uma espécie de “clausura” ou “mortificação do sexo”, figuras praticamente intocáveis na cultura castreja. A mulher em Castro Laboreiro é digna do maior respeito, sobriedade e discrição. Por exemplo, durante um baile, o homem que quer pedir namoro a uma mulher limitava-se a dar-lhe um aperto na mão. Ofender uma mulher é um ato grave. Mesmo durante Entroido, o trato com as mulheres tem limites!
Para além dos esfarrapados e dos farrangalheiros, participam também no Entroido os velhos e as crianças. Uma última figura é incontornável: o tocador de concertina. De sábado a terça, de dia e de noite, sempre a convidar para o baile. A concertina é o instrumento emblemático dos castrejos. Já, por exemplo, na freguesia vizinha de Parada do Monte o instrumento eleito é a gaita, ao jeito celta e galego.
O protagonismo da mulher reflete-se nos rituais e na semiótica dos festejos. O uterino tende a sobrepor-se ao fálico. A pancada do chocalho cede perante o banho de água provocado pela batida da vara, de conduzir o gado, na corga que passa pela eira. E, numa espécie de inversão do rapto das sabinas, são as mulheres que arrastam os velhos para uma folia no centro do baile.
O Entroido culmina com a queima de um boneco de palha andrajoso, num local visível de longe, para ofuscar as gentes de outros lugares. Uma catarse purificadora, uma despedida, com fogueira, cânticos, gritos e bombas lançadas pelas crianças. Uma despedida cíclica do desespero e da miséria do inverno. O velho é, assim, esconjurado, afastado por um tempo, com exéquias, danças, exorcismos e estrondos.
Um último apontamento acerca do saiote vermelho. Mais do que de um cocktail, trata-se de um shot simbólico. Antes de mais, pela localização. Situa-se no baixo corporal, próximo das entranhas, dos genitais e da terra. Traduz um movimento de rebaixamento e regeneração típico do carnaval. Por outro lado, trata-se de vestuário íntimo. Exterioriza-se o interior, numa emergência do oculto e do contido igualmente típica da dinâmica carnavalesca. Confrontamo-nos, deste modo, com uma dupla inversão: de cima para baixo e de dentro para fora. Por seu turno, a cor do saiote é vermelha. Não será por acaso. O vermelho é solar, é colorido, festivo, símbolo de princípio de vida, de desejo, de sangue, de menstruação, de fecundidade, de fertilidade e esperança. O carnaval é a festa por excelência da regeneração e da fecundidade, da antecipação da abundância, da esperança e da utopia. Mas a cor vermelha não deixa de ser ambivalente. Para além de solar, insinua-se como lunar: significa o interdito, o perigo, o fruto proibido. Na realidade, o carnaval aposta na transgressão de barreiras e fronteiras, no excesso e na exorbitância.
A adesão ao ressurgimento dos Farrangalheiros tem-se revelado entusiástica e até, diremos, enternecedora. Mas já não são apenas as solteiras e as “mulheres com homens no eido” que participam. Predominam, como diriam os espanhóis, as “maiores”, rejuvenescidas. Testemunha-o a seguinte galeria de imagens.

Galeria de imagens

Congresso Internacional Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade. Braga, 4 de Maio de 2022.

Um anjo sem repouso

Roberto Chichorro. Detalhe.

Ela é ela, a mulher, um anjo livre que voa sem repouso, ano após ano.

Para brindar, uma canção inesquecível, na versão mais célebre, de Elvis Costello (She, Notting Hill, 1999), e na versão original, de Charles Aznavour (Tous les visages de l’amour, tradução em francês de She, Seven faces of woman, 1974).

Elvis Costello. She. Notting Hill. 1999.
Charles Aznavour. Tous les visages de l’amour. Trad. francesa de Charles Aznavour, She, Seven faces of woman, 1974.

Publicidade simpática

Dove. Real Soaps. Colômbia. 2022.

Escrevi pelo menos sete artigos dedicados à estratégia publicitária da Dove (para aceder aos artigos, carregar no título):

Outras tantas vezes fiquei com a sensação de que restava ainda muito para interpretar. O anúncio Real Soaps permite acrescentar um novo comentário.

                As marcas aspiram a que os potenciais consumidores se identifiquem com elas, que se revejam nos seus produtos. No anúncio Real Soaps, da Dove, a projeção resulta invertida. É a marca, Dove, que se identifica com os consumidores, ousando convocar a sua imperfeição. A Dove compraz-se a evidenciar os nossos mais ínfimos e íntimos defeitos reconhecendo-se, manifestamente, neles. Não somos convidados a identificar-nos com a marca, é a marca que se identifica connosco. Tanto é assim que os seus próprios sabonetes se querem com defeitos, assumindo-se tão imperfeitos quanto nós. A Dove não procura que nos identifiquemos imediata e diretamente com a marca; espera que apreciemos a sua identificação connosco. Trata-se de uma identificação desviada e dinâmica. O que conta não é o sujeito, a Dove, nem o destinatário, o consumidor, mas a interação e a mediação entre ambos. Trata-se de uma construção de segundo grau. Em suma, a Dove aposta na simpatia, no sentido original e etimológico do termo:

[A palavra simpatia] ” vem do Latim SIMPATHIA, “comunhão de sentimentos”, do Grego SYMPATHEIA, “capacidade de sentir o mesmo que outrem, de ser afetado pelos sentimentos alheios (positivos ou negativos)”, formada por SYN-, “junto”, mais PATHOS, “sentimento” (Origem da Palavra: https://origemdapalavra.com.br/pergunta/simpatia/).

“80% of women are unhappy with what they see in the mirror and try to hide parts of their skin such as freckles, wrinkles and stretch marks. At Dove we made a tribute to skin through the iconic soap bar that we always see as smooth and perfect, this time revealing those factory details such as cracks and slits, that, just like the marks on the skin, make part of real beauty” (Dove. Real Soaps. 2022).

Marca: Dove. Título: Real Soaps. Agência: MullenLowe SSP3. Direção: Alejandro Ranchez. Colômbia, março 2022.

Estética de género

Gustav Klimt. Retrato de Adele Bloch-Bauer. 1907.

A Dove preza a valorização estética das belezas menos belas (vídeo 1). Seria equilibrado incluir, nesta equação cosmética, os homens? Não são, a priori, elegíveis? O milagre é apenas feminino? Na verdade, existe uma linha masculina de produtos Dove. Numa amostra de cinquenta anúncios Dove, uma meia dúzia contempla homens. Quais são os tópicos? A notícia da gravidez (vídeo 2), a feminização da masculinidade (vídeo 3), um pintor de mulheres (vídeo 4), momentos paternos (vídeo 5)… Não há beleza masculina alternativa? A beleza dos “feios, porcos e maus”? O valor da beleza conjuga-se, sobretudo, no feminino. A igualdade é fatalmente desigual. Acontece-me ficar confuso: todas as mulheres são belas, umas mais que outras, mas aquelas que são menos belas são as mais belas de todas. A Dove não desconhece o poder da beleza, relativiza-o.

Marca: Dove. Título: It’ on Us. Agência: LOLA Mullen Lowe Madrid. Direção: Lourens Van Rensburg. Espanha, março 2021.
Marca: Dove. Título: First Fatherhood moments. Estados-Unidos, junho 2015.
Marca: Dove. Título: Slow. Agência: Ogilvy & Mather (Brasil). Direção: Carlão Busatto. Brasil, 2013.
Marca: Dove. Título: Real Beauty Sketches. Agência: Ogilvy (São Paulo). Direção: John x Carey. Brasil, 2013.
Marca: Dove. Título: Calls for dads. Estados-Unidos, 2014.

Gravidez e carreira profissional

Paula Rego. Pregnant Rabbit Telling Her Parents.1982.

Uma primeira leitura do anúncio A Career-Limiting Move separou-me os fusíveis. Nossa Senhora das Candeias! Só a repetição até à última letra acendeu a inteligência. Afinal, o significado deste stop motion é óbvio:

Anna Mantzaris directs a funny and important stop motion piece for Global Women New Zealand, in time for International Women’s Day 2021. Anna uses her signature style with humour and imperfect characters, to raise awareness of the “Motherhood Penalty” that significantly impacts women in the workplace in New Zealand. The short shows there is almost nothing a woman can do in the workplace that is more career-limiting than having a baby (http://www.passion-pictures.com/uk/animation-studios/project/global-women/).

Como pode uma mulher condenar a carreira profissional? Cortar a gravata ao patrão? Criar o caos no escritório? Surripiar uma bolacha ao patrão e regurgitá-la? Nem pensar! Fatal, mesmo, é engravidar. Talvez cortar o equivalente simbólico da gravata.

Anunciante: Global Women. Título: A Career-Limiting Move. Agência: Saatchi & Saatchi NZ. Direção Anna Mantzaris. Nova-Zelândia, março 2021.