Memória reincidente

Há longos anos que o genérico de fecho de emissão da Antenne 2 me enternece. Com desenhos de Jean-Michel Folon (1934-2005) e música de Michel Colombier (1939-2004). Memória reincidente. Folhas soltas. Salpicos numa liquidez pasmada. Uma leveza de espírito que enfia a cabeça nas nuvens.
Uma obra-prima nunca está acabada. Inspira e inspira. Sucede com a música Emmanuel, de Michel Colombier. Gosto da versão de Toots Thielemans (1922-2016), um dos melhores tocadores de harmónica de boca do século XX.
Sessenta e um anos deste mundo. O triplo da idade em que me encantei com o genérico da Antenne 2. Agradeço a amizade. Um dia havemos de voar juntos como os homenzinhos de Folon.
Consolo tóxico

Na publicidade dos anos sessenta, os cigarros faziam bem à saúde e o fumador era um homem de sucesso. Nos anos oitenta, o fumador é um contrariado compensado pelo tabaco. Nos anos 2 000, o tabaco é um veneno e o fumador, um cadáver em potência. Atendendo à censura vigente, não é curial colocar estes quatro anúncios da marca Hamlet. Mas o eclipse do mal nunca fez bem ao bem. São dezenas os anúncios desta campanha cujo conceito remonta aos anos sessenta e se prolongou até aos anos noventa. Retenho quatro curtas “histórias sem palavras” que evidenciam que o prazer pode não provir da virtude.
A sério

L’UNESCO lance une campagne mondiale pour interroger notre perception de la normalité. Le film de 2’20” s’appuie sur une succession de faits marquants sur la situation dans le monde avant et pendant la pandémie de la Covid-19. Ensemble, ces faits remettent en question nos idées préconçues sur ce qui est “normal”, et suggère que nous avons toléré l’inacceptable depuis trop longtemps. Il est temps d’un vrai changement. Et tout commence par l’éducation, la science, la culture et l’information (UNESCO).
Uma pessoa que diz coisas sérias não ri! O sério é sisudo e o riso, tonto. Imagine alguém a comunicar assuntos sérios às gargalhadas! O sério não ri, assim é desde o barro genético. O anúncio Le Prochain Normal, da UNESCO, aborda assuntos graves da humanidade. O que consideramos normal? Perguntas sérias, muito sérias. Até o formato do anúncio é sacrificial. Como rir num mundo tão sério? O riso é um acto de humor nas suas origens e um acto sério nas suas consequências.
Agasalho

Andamos a agasalhar demasiado as pessoas. Com regras, normas, regimentos, procedimentos, guias, planificações… Agasalhar demasiado não faz bem à saúde. Pode provocar febre, moleza, sufoco, obstrução mental e quebra de apetite.
Gosto de encontros improváveis. Por exemplo, James Taylor e Yo-Yo-Ma. Também gosto de interpretações originais de composições clássicas repisadas.
O consumo da violência
A violência sempre acompanhou o homem. Diz-se que é bíblica. Uma égua do apocalipse. Ambivalente, provoca atração e repulsa. Não desejamos ser nem carrascos nem vítimas, mas assistimos ao espectáculo. A violência é ubíqua: aparece nos ecrãs, nas estradas, nas manifestações, nos atentados, nos tiroteios, na escola, no desporto e, até, dentro de casa. Ambivalentes e ambíguos, proibimos um anúncio com uma menina sentada numa ferrovia mas facilitamos o acesso às armas. Nos ecrãs, convivemos mais facilmente com a violência do que com o tabaco: nos livros e nas séries do Lucky Luke, a palhinha não substitui a pistola mas o cigarro. Maná ecránico, a publicidade encena e parodia a violência, em princípio gratuita, mas, presumivelmente, com custos.
Apetece “virar o bico ao prego”. Abraçar a contradição. Nos anos sessenta, apreciava-se os filmes violentos. As pessoas riam com as cenas violentas dos filmes Péplum (e.g., Hércules), de terror (e.g., O Exorcista, 1973), de guerra (e.g., O dia mais longo, 1962) ou western (e.g., Trinitá, cowboy insolente, 1970; o filme é italiano, bem como os actores Terence Hill e Bud Spencer). No entanto, nenhum dos meus amigos se tornou serial killer. Autores como Georg F. W. Hegel, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Georges Bataille ou Lewis A. Coser consideram a violência fundacional e funcional. Na Idade Média, acreditava-se que a contenção excessiva da violência podia desembocar numa explosão de violência. Recomenda-se a catarse, a excitação (Norbert Elias) e a homeopatia (Michel Maffesoli). A violência existe, mas coloquem um filtro, um véu ou óculos para não se ofuscar.
De boca fechada

“O velho mundo agoniza, o novo mundo tarda a nascer. E, nesse claro-obscuro, irrompem os monstros” (Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere).
“O rabo é o pior de esfolar”. Tenho três capítulos de livros e dois artigos para escrever nas próximas semanas. Estou condenado à brevidade e à omissão.
O italiano Giacomo Puccini (1858 – 1924) é um dos mais famosos compositores de ópera. Segue o Coro a bocca chiusa, da ópera Madama Butterflly. Optei pela interpretação da Orquestra da Universidade do Minho e do Coro de Alunos da Licenciatura em Música da Universidade do Minho, com direcção de José Maria Moreno. É um prazer rever antigos alunos.
O mundo na mão (extended version)

“Sopra, sopra, vento hibernal, não és tão desapiedado quanto a humana ingratidão” (William Shakespeare. Como vos agradar. 1623).
“ Bendita a hora que o esqueci por ser ingrato / E deitei fora as cinzas do seu retrato” (Amália Rodrigues: Só à noitinha).
Discriminação, exclusão, dominação, exploração são flagelos da humanidade. Preocupo-me, sobretudo, com a injustiça. Não poupa vivos nem mortos. “Personally, I can’t believe she’s not more well-known than she is” (https://www.youtube.com/watch?v=GOk2M6C9dck).

Estamos a falar de Odetta (1930-2008), compositora, cantora e activista social norte-americana. Talentosa, original e influente. No início dos anos setenta, cantou com Amália Rodrigues, Joan Baez e Maria Carta no Teatro Sistina, em Roma. He´s got the whole world in his hand (1957) foi uma das canções interpretadas. Acrescento duas: Hit or Miss (1970) e Another Man Done Gone (1956).
Ao original, o público preferiu o cover. Acontece! O Tendências do Imaginário sonha despertar a memória adormecida. Por um mundo maior.
Não resisto a recolocar dois anúncios com músicas de Odetta.
Cabras urbanas

„Não se aproxime de uma cabra pela frente, de um cavalo por trás ou de um idiota por qualquer dos lados“ (provérbio Judaico).
Cnsta que a natureza foi a mais beneficiada com a pandemia do coronavírus. Há mais cobras, lagartos, ratos e pássaros nas cidades. Jura-se a pés juntos que a erva nunca foi tão verde e as árvores tão altas. No quintal, os melros regalam-se com a comida dos gatos. Junto ao McDonald’s, entre a Universidade do Minho (Foto 1), o hotel Meliá (foto 2) e o INL (Instituto Ibérico Internacional de Nanotecnologia), pontifica um parque natural espontâneo, com dezenas de cabras e algumas vacas cachenas (fotos 3 e 4). As fotografias são de Conceição Gonçalves.
02. O monte das cabras, com vista para o Hotel Melià 03. Vacas em repouso 04..Vacas estremunhadas 05. No cume do monte das cabras
As cabras apoderaram-se de um monte de areia sem uso. Conquistam o cume (foto 5), dispõem-se em presépio ou cascata de S. João e afiam os cornos nos galhos remanescentes. Por ironia, este fenómeno pecuário ocorre num terreno que pertenceu ao INIA (Instituto Nacional de Investigação Agrária). Invente-se um provérbio: as sementes acabam sempre por germinar. Se não for milho, contente-se a gente com as cabras.