Libera
“O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos de uma criança” (António Gedeão).
Desorientação
Os contrapoderes andam agitados, incisivos e imaginativos. Das pulgas fazem elefantes. Com a arte da comichão e do coçar.
Distinguem-se várias propensões, umas, por exemplo, apostadas na correção e no resgate, outras na transgressão e na renovação. Para onde oscilamos? Coexistindo, algumas tendência podem dominar as demais. A dominação torna-se hegemónica quando os dominados adotam a linguagem dos dominantes. Em que estado estamos? Enfim, poderão os contrapoderes aspirar à hegemonia?

Convido, a despropósito, ao confronto de algumas músicas de duas bandas britânicas com registos divergentes: energia, senão entusiasmo, dos Orchestral Manoeuvres In The Dark, dos anos 1980, e apelo, senão súplica, dos London Grammar, dos anos 2010.
Imagem: René Magritte. Reprodução proíbida. 1937
A Arte do Ruído na Viragem do Milénio
Para ensinar algo às pessoas, convém misturar o que elas conhecem com o que elas ignoram (Pablo Picasso)
Qualquer ruído escutado durante muito tempo torna-se uma voz (Victor Hugo)
A procura da primeira música matinal encalhou no álbum The seduction of Claude Debussy (1999), o quinto e último dos Art of Noise. Música eletrónica com declamação e ópera à mistura. Por que não? Aspiração e inspiração à solta. Trata-se de um álbum com uma sonoridade diferente dos precedentes Who’s Afraid of the Art of Noise? (1984), In Visible Silence (1986), In No Sense? Nonsense! (1987) e Below the Waste (1989). Conceptual, mistura trechos do compositor impressionista francês com bateria, baixo, ópera, hip hop, jazz, récitas, ruídos digitalizados e a voz da alta mezzo-soprano Sally Bradshaw.
Vanguardistas, os Art of Noise constituíram um grupo britânico de synth-pop que foi fundado em 1983 pelo engenheiro/produtor Gary Langan e pelo programador JJ Jeczalik, acompanhados pela teclista/arranjadora Anne Dudley, pelo produtor Trevor Horn e pelo jornalista de música Paulo Morley. Foram pioneiros no uso intensivo e criativo do Fairlight, instrumento musical eletrónico de origem australiana que permite o processamento computadorizado e a interpretação de amostras de sons através de um teclado semelhante ao de um piano (o vídeo com a canção Born On A Sunday ilustra, de algum modo, este procedimento). “Beat Box”, “Moments in Love”, “It’s All About Me”, “Close (to the Edit)” e os covers “Video Killed the Radio Star”, “Peter Gunn” e “Kiss” conquistaram os primeiros lugares nas tabelas de vendas. Várias composições integram filmes tais como O Diário de Bridget Jones, Os Anjos de Charlie: Potência Máxima ou A Minha Madrasta É Um Extraterrestre.
Reincidências

Tenho hesitado em colocar algumas músicas do álbum homónimo dos Deep Purple (1969). Menos célebre que os seguintes Deep Purple in Rock (1970) ou Machine Head (1972), não desmerece. Com trejeitos de rock sinfónico, aproxima-se da sonoridade, então corrente, de bandas como os Moody Blues ou os Pink Floyd. Algumas faixas surpreendem.
Os Deep Purple marcaram os anos setenta. Como não me movem as circunstâncias, nem encaro a idade ou a história como aperfeiçoamento, os anos setenta não possuem, à partida, nem menos nem mais valor que os 2020. Uma vez embarcado na máquina do tempo, tanto me seduzem progressos como regressos. Não me importo, portanto, de reincidir. Hoje, proporcionou-se começar o dia com a canção “Lalena” dos Deep Purple (um cover do original de Donovan).
Tempo para tudo

Ter todo o tempo do mundo pode ser bom!
Ter tempo para tudo talvez não seja pior! Até para tentar tempos alheios. Se os Slow Show lembram Roger Waters, os Elbow lembram Peter Gabriel.
Rendimentos marginais. The Slow Show

A virtude da errância, de errar perdidamente, reside em poder acertar no imprevisto, acrescentar, por ventura, um pouco de prazer ao prazer. Os Slow Show lembram-me, com ou sem razão, Roger Waters.
Ninfas

“A zona mais erótica é a imaginação” (Vivienne Westwood)
Acabei de ser entrevistado sobre “o nu na sociedade contemporânea”. A ver o que dá! Para quem tiver curiosidade, a transmissão ocorrerá no programa A Voz do Cidadão, da RTP1, sábado às 14 horas. Proporcionou-se uma breve alusão, como exemplo do erotismo pretensamente artístico no cinema dos anos setenta, ao realizador, fotógrafo e escritor David Hamilton. Filmes, tais como Laura, les ombres de l’été (1979) e Bilitis (1977), obtiveram, a seu tempo, um sucesso apreciável, sendo, inclusivamente, estimados obras de culto. A sua lente, “esfumada”, convoca, a raiar a obsessão, mulheres adolescentes, “ninfas”.
Nascido em Londres em 1933, suicidou-se, supostamente, em 2016 em Paris. Até aos últimos anos de vida, foi alvo de várias acusações de abusos sexuais. Filmes, livros e fotografias foram, aliás, proibidos em alguns países.
“Autodidacta, iniciou a sua carreira de fotógrafo já depois dos 30 anos, trabalhando para revistas de moda – e vendo o seu trabalho chegar a publicações como a Vogue ou a Photo.

O facto de eleger como “objecto” da sua câmara jovens adolescentes, ninfas virginais que fotografava em poses sensuais e eróticas, sempre com um filtro brumoso e em décors que deviam algo ao imaginário hippie, entre camas e prados floridos, elevaram-no a ícone da fotografia mundial. Passou inclusivamente a falar-se de um “estilo hamiltoniano” para classificar esta estética fotográfica – que Hamilton viria também a explorar no cinema, realizando meia dúzia de filmes entre 1975 e 1983, o mais citado dos quais é Bilitis (1977).
Simultaneamente, houve quem se indignasse e o acusasse de pornografia – e países como a África do Sul, por exemplo, censuraram os seus álbuns. As suas fotografias foram muitas vezes colocadas no centro do debate sobre as fronteiras entre a arte e a pornografia. (Público. Ípsilon. “Morreu David Hamilton, o polémico fotógrafo das “ninfas””, 26 de Novembro de 2016: https://www.publico.pt/2016/11/26/culturaipsilon/noticia/morreu-david-hamilton-o-polemico-fotografo-das-ninfas-1752784)
Recordo ter assistido ao filme Bilitis, em Montparnasse, na companhia de um amigo, por sinal, jesuíta! Provavelmente, poucos terão ouvido falar de David Hamilton e ainda menos visto os seus filmes. Em contrapartida, a música do filme, composta por Francis Lai, creio ser bastante conhecida. Seguem um trailer e a banda sonora do filme Bilitis.
A Caverna dos Fantasmas de Estimação. The Cinematic Orchestra
Numa poltrona ampla, perto de uma lareira abençoada, pode-se viajar, no inverno, até ao infinito (Hippolyte Laroche)
Há anos que não me expunha assim, tão fora de casa e tão fora de mim. Deixei o mundo penetrar até aos ossos e a expressão soltar-se. Como desfecho, sinto-me massajado, amassado e moído. Surpreendo-me, por drástica que tenha sido a vacina, a desejar o torpor cálido da caverna. Com a visita desta frente nórdica, frio apenas tolero o da música, compassada, suave, minimalista… Etérea!

Por exemplo, a trompete do norueguês Nils Petter Molvær. Ao procurar nos discos, tropecei nos The Cinematic Orchestra. Afins, também servem. Talvez não sejam do agrado de todos, mas não me inibo em partilhar coisas que colidem com o gosto alheio, apenas não partilho aquelas de que não gosto. Acontece colocar música a pensar numa única pessoa, que, porventura, não vejo há uma eternidade e decerto não voltarei a ver. O suficiente. Fantasmas de estimação!
Identidade, alteridade e virtualidade

A publicidade pode ser instrutiva. Acontece com os anúncios “New Dawn”, da Hyundai, e “Un-Australia”, da Meat & Livestock Australia, que ilustram duas noções elementares das ciências sociais, que passo a resumir.

O valor de uma palavra provém do carácter distintivo dos seus usos virtuais. Simplificando, uma palavra vale quando permite dizer algo que as outras palavras não conseguem (a partir de F. Saussure, Cours de Linguistique Générale, 1916).
A identidade não remete para uma essência mas decorre da relação com os outros, com a alteridade. Simplificando, somos o que somos menos pelas semelhanças e mais pelas diferenças (a partir de C. Lévi-Strauss, L’ Identité, 1977).
O Príncipe e a Fábula das Abelhas

“Pois, se bem considerado for tudo, sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à segurança e ao bem-estar” (Maquiavel. O Príncipe. 1532. Capítulo XV).

Acordei virado do avesso, os pés no lugar da cabeça, e uma insólita tentação de revisitar O Príncipe (1532), de Nicolau Maquiavel, e A Fábula das Abelhas (1714), de Bernard Mandeville. Atordoa-me um turbilhão de dúvidas e perplexidades.
O maquiavelismo é a forma mais maléfica de equacionar a política? E a missão do político ganha em ser aproximada da santidade?

Assediam-me fantasmas, pouco católicos, que subjugam as más consequências às boas intenções. Por exemplo: a perversidade apologética da honestidade; o cortejo de sentenças espetaculares antecedentes a investigações e julgamentos arrastados; o coro mediático como júri e a massa como patíbulo; os magistérios e os ministérios como mistérios previsíveis; a legislação do nojo político como nojo da legislação política; a realidade refém da aparência, a suspeição erigida em regra e a confiança em exceção; a vigilância das marionetas e a invisibilidade dos cordéis; a desgraça da política e a glória do oportunismo; a desvalorização dos cargos visando a excelência dos ocupantes; a navegação sem norte aspirando abarcar, assim, o mundo; o homem sem qualidades à espera do salvador iluminado; o povo a marinar no lume brando do populismo: e mais uma orgia de aporias e paradoxos gastos e recorrentes. Em suma, um simulacro transgénico que coteja contrários: puritanismo e irresponsabilidade, soberba e miopia, com inestimável incidência no destino da sociedade. Segue o poema A Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, merecedor de atual e redobrada consideração.