Telemóvel: O mundo na mão

Os meus artigos mais lidos não são nem os mais bem escritos nem aqueles que têm conteúdo mais interessante; os meus artigos mais lidos são aqueles que têm um título mais apelativo e são publicados à hora, no dia e no canal certos.
Todas as sociedades cultivam as suas ameaças. Receios reais ou imaginários. Os judeus, no reinado de Don Manuel e no triunfo totalitário de Hitler. Os revisionistas, na era Estaline, e os comunistas, durante o Macarthismo. Hoje, as ameaças tendem a associar-se mais a objectos, eventualmente, técnicos. No pós-guerra, a bomba atómica era o quinto cavaleiro de Apocalipse. Nos anos sessenta, os cabos de mar perseguiam os biquínis nas praias. A televisão era a mãe de todas as alienações; o maço do tabaco, um caixão funesto em vala comum; a Internet, uma aranha pérfida à escala global; e, agora, os telemóveis, um malefício portátil generalizado.

Face aos riscos dos telemóveis, existe a convicção de que urge fazer tudo e a sensação de que nada há a fazer. Situação propícia à inutilidade histérica do Estado. Por generalização abusiva, todo cidadão é um caso particular do geral. Esboce-se um “exemplo teórico”: Fulano faleceu ao engolir um telemóvel (notícia de primeira página); conclusão: todos somos passíveis de engolir um telemóvel (prognóstico); contra-ordenação preventiva: falar com o telemóvel a menos de um metro da boca é passível de multa; campanha: o telemóvel é um comestível fatal, mantenha-o longe do tubo digestivo.
Na época balnear, pior do que o telemóvel, só o peixe-aranha. Se for ao mar, vá e volte, mas sem telemóvel: pode electrocutar os caranguejos. Estou a brincar, mas a coisa manifesta-se séria; é, literalmente, a primeira vez que “temos o mundo na mão”!
“Canta, canta, amigo canta
Vem cantar a nossa canção
Tu sozinho não és nada
Juntos temos o mundo na mão!!!”
(António Macedo. Canta, amigo canta. 1974)
Em suma, se quer sobreviver à décima primeira praga, a praga dos teleles, conduza um Nissan Rogue, com música de Conan Osíris (Telemóveis, 2019). Afigura-se-me, contudo, que a praga dos telemóveis se pauta por um medo irónico. Menos drama, menos tragédia, menos profecia; mais humor, ambivalência, reflexividade e abertura dialógica.
Caras de pau

As mulheres da minha aldeia estendiam criteriosamente a roupa lavada sobre a erva. “Corava ao sol”. Vestidos com roupa corada, corávamos também. Bastava uma palavra, uma anedota, uma imagem, um namoro, um olhar, um mau pensamento… Agora, as máquinas lavam, secam e engomam. A roupa não cora. E as pessoas, deslavam-se? Quer-me parecer que somos cada vez mais caras de pau. Reviramos a pele como quem muda de roupa. Ainda existe quem core, mas aproxima-se de uma espécie em vias de extinção. Surpreender alguém a corar releva de uma epifania , uma graça abençoada. Quase não coramos! E torna-se complicado distinguir a emoção rosada de um cosmético revigorante. Há vasos sanguíneos que caíram em desuso. Como, a seu modo, os pelos, os dentes tortos, as rugas, a transpiração ou a saliva.

Nestas coisas do pensamento, sou como um cão. Quando encontro um osso, não o largo. O que me ofusca. Na dúvida, recorri a um “grupo de foco”. Nos mundos dos participantes, as pessoas coram, coram, por exemplo, os professores e os alunos nas escolas. Até as personagens dos anime coram. Cora-se, porventura, menos no meu mundo. Rostos serenos e pálidos, a lembrar São Sebastião. A ninguém interessa corar. Um colega com vergonha é como um coxo a andar para trás. E na publicidade? Nos anúncios, não se cora. Mas quem lucra com a comunicação da vergonha?
Caras de pau ou não, eis a questão? Órfão de uma nova intuição, deixo-me embalar pela melancolia. Há melancólicos que descansam a cabeça e fitam o infinito. Não se sabe se esperam ou desesperam. Eu oiço música e escrevo. Procuro nas palavras alento para continuar.
Hei-de ir a Melgaço!

Acontece, de 29 de Julho a 4 de Agosto, em Melgaço, uma nova edição dos Filmes do Homem, que já não se chamam Filmes do Homem mas MDOC – Melgaço International Documentary Film Festival. Uma castração simbólica politicamente correcta. Tenho gosto e orgulho em participar, desde o início, nesta iniciativa que extravasa, ao nível da cultura e da arte, o festival e o concelho de Melgaço.
Segue:
- O vídeo de promoção;
- O programa;
- O catálogo;
- Um excerto do catálogo com um texto da minha autoria sobre Prado, a minha freguesia natal.



A Bela e o Velho

Músico velho: Victor Borge, 80 anos, mais célebre pelas peças de humor do que pelas teclas de piano. Música bela, Esther Abrami, francesa, uma promessa no domínio do violino.
O robot emocionado

As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas (Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, 1928)
Perante o anúncio Robot, da Cinemark Hoyts, não hesito em repetir-me: por que motivo no mundo das imagens, sobretudo no que respeita à comunicação emocional, se observa uma propensão para o recurso a máquinas, animais, desenhos animados ou bebés? A repetição parece perda de tempo, mas talvez não seja. Repetir não é pensar o mesmo, repetir é voltar a pensar, ou seja, repensar. Na arte, por exemplo, o papel da repetição é desmedido e criativo.
O espectáculo mediático global tem particular apetência por duas formas estilísticas: o fetiche e a alegoria. Por pouco, escrevia “fetichismo alegórico”.
Por que nos acontece adorar mais a fotografia do que o fotografado? A relíquia do que o santo? Ou, recordando, Freud, a lingerie do que a mulher? No domínio dos símbolos, somos perversos. Os caminhos que nos comovem são desvios obscuros.
O robot do anúncio tem uma paleta expressiva ínfima. Uma espécie de “expressionismo minimalista” ao jeito dos Emoticons.
A par do fetichismo e da alegoria, a focagem afirma-se como uma forma de abordar a realidade. Por aproximação, como no microscópio; por desbaste marginal, como na floresta amazónica. Elimina-se tudo aquilo que, para além da pauta, faz ruído. O rosto humano irradia, a cada instante, uma infinidade de significações; a cabeça de um robot, muito poucas. Importa, pelos vistos, reduzir, ou especializar, os estímulos e convergir para o alvo.
A focagem da parte, em vez do todo, lembra as ruínas. Um pormenor que enferma, à primeira vista, de uma orfandade de sentido. Falta o resto, quase tudo. Mas, paradoxalmente, enquanto partes à deriva, os pormenores afirmam-se como oásis semióticos, mananciais inesgotáveis de sentido. As ruínas falam, por vezes, mais do que o todo. Sentimo-nos desapossados quando uma ruína é restaurada. Na ruína, cavalgam os nossos fantasmas, na obra redonda, acabada, perfeita, pastam, em visita guiada, os olhos de um boi pasmado.
PS: Não tenho nada contra os robots, tão pouco contra os seus fabricantes e utilizadores. Por sinal, o meu rapaz mais novo está a construir um robot. Dispenso, contudo, que façam de nós robots. Quando termino um texto mais refratário, gosto de o trocar por música. Por exemplo, o Al lis full of love, da Bjork ou o cover, não do The robots, mas do The model (1978), dos Kraftwerk, pelo Balanescu Quartet, ao vivo, em Praga, no ano 2017.
Vozes

As músicas Flamma Flamma – The Fire Requiem (1994) e Was Hast Du Mit Meinem Herz Getan (Orrori Dell’ Amore, 1995), compostas pelo belga Nicholas Lens, surpreendem: vozes mágicas, estranhas, excessivas, do outro mundo. Acrescento o teaser da ópera, também de Nicholas Lens, Shell Shok – A Requiem of War (2014), em memória da Primeira Grande Guerra. Meus amores, meus horrores!
Simplesmente só

Não existe pior solidão do que aquela que nasce da indiferença dos outros (Martin Gray, Le livre de la vie, 1973).
Não desgosto da solidão. Preencho-a com tudo e com nada. Bem cuidada, a solidão seduz. O meu luxo é estar só no meio da multidão. A minha solidão é uma alternativa, não é uma fatalidade. Mas a maioria das pessoas sós não consegue escapar à solidão. Um inquérito promovido, em 2014, pela Fondation France, revela o seguinte:
«Um em cada oito franceses está só: em 2014, a solidão afecta 5 milhões de pessoas, um fenómeno que se agravou sobretudo entre os mais idosos, embora já não poupe os mais jovens (…) Existe mais um milhão de franceses do que em 2010 a não ter relações sociais no âmbito das cinco redes de sociabilidade (familiar, profissional, de amigos, de afinidade ou de vizinhança) (…) Se um em cada oito franceses se encontra hoje só, um em cada três corre o risco de ficar só (https://www.lemonde.fr/societe/article/2014/07/07/la-solitude-progresse-en-france_4452108_3224.html).
Em Inglaterra, a solidão é encarada como causa de morte precoce. Em Janeiro de 2018, foi criado o Ministério da Solidão. Portugal já tem um Observatório da Solidão (Obsolidão, no ISCET). Os portugueses não se podem queixar de falta de observação.
Do Reino Unido, vem, também, o anúncio Just Another Day, da Age UK. Incisivo! Um idoso, de boa condição social, autónomo e rodeado de pessoas, vive numa solidão despojada, sem assistência robótica nem companhia à distância. Repare-se na opção do realizador pela repetição das situações e dos gestos, repetição que enfatiza o peso da rotina e da circularidade na experiência da solidão.
Gosto de, alheio às regras da boa argumentação, alinhar disparidades. A ópera Madama Butterfly (1904), de Giacomo Puccini, aborda a solidão. Butterfly é uma jovem japonesa que casa com Pinkerton, oficial da marinha norte-americana. Pinkerton parte para os Estados Unidos, onde permanece vários anos sem dar notícias. Regressa um dia, acompanhado pela esposa americana. Butterfly suicida-se. “Com honra morre quem em honra não pode viver””. O “coro à boca fechada” embala esta tragédia.
Hoje, estou mais só. O gato desapareceu há quatro dias. Sente-se a sua falta nas mais pequenas coisas. Não podia, por exemplo, trabalhar no escritório com a porta aberta. O gato cultivava uma atracção pelos papéis e pelos fios. Sempre que o expulsava, esboçava um movimento para sair, mas reconsiderava e enfiava-se, majestoso, no cesto do lixo. O ritual era sempre o mesmo: pegava no caixote com sua excelência e colocava-o no exterior. Às vezes, volvidos alguns minutos, o gato continuava a ronronar no seu berço de palha. Dedico este artigo ao meu gato.
SAD. Solidão Acompanhada à Distância.

A solidão é uma realidade em crescimento. Um inquérito realizado em França, no ano de 2014, revela o alcance e as formas da solidão no País (https://www.lemonde.fr/societe/article/2014/07/07/la-solitude-progresse-en-france_4452108_3224.html). A economia da solidão expande-se e diversifica-se, bem como as soluções propostas. O anúncio Be Together More, da Amazon, é um exemplo. Aposta na companhia à distância.
Solidão assistida

Conheço a solidão. É uma amiga nem sempre desejada. Respeito-a! Solitário, dedicava-me à leitura de um livro ou a ver televisão. Nunca dancei com um robot, mas lutei com o travesseiro. Hoje, entrego-me ao computador ou ao telemóvel. Estranha forma de companhia. Por enquanto, não há máquina que substitua o ser humano. A este falta-lhe um botão para ligar e desligar. De qualquer modo, às vezes vale a pena “estar no computador”. O anúncio B.E.N., da Société de Saint Vincent de Paul, é uma obra de arte.