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Canções frias

Klaus Nomi (1944-1983)

Gosto do Klaus Nomi, um cometa extraordinário que teve uma breve passagem pela música antes de ser vítima da sida em 1983. Quase todas as suas canções estão contempladas no Tendências do Imaginário. O que não me impede de continuar a procurar versões com melhor qualidade. Encontrei três respeitantes a outros tantos covers: The Cold Song, da ária What Power Art Thou?, da ópera King Arthur, de Henry Purcell (1691); Can’t Help Falling in Love, de Elvis Priesley; e Death, da ária Dido’s Lament, da ópera Dido and Aeneas, de Henry Purcell (1689). Com votos de frescos sentimentos!

Klaus Nomi. The Cold Song. 1981. Cover da ária What Power Art Thou?, da ópera King Arthur, de Henry Purcell, 1691.
Klaus Nomi. Can’t Hel Falling in Love. Cover de Elvis Priesley, Can’t Help Falling in Love, 1961.
Klaus Nomi. Death. Cover da ária Dido’s Lament, da ópera Dido and Aeneas, de Henry Purcell, 1689.

Massa cósmica

Barilla. Pasta is born. 2022

Há muito que não me deparava com um anúncio apostado na estetização de alimentos. Em tempos, foi moda. Este Pasta is born, dedicado às massas Barilla, não desmerece. Coloco duas versões: a primeira segundo o critério do realizador (director’s cut), a segunda adotada para o anúncio propriamente dito. Serve para partilhar uma ideia de quão diferentes podem ser.

Marca: Barilla. Título: Pasta is born again. Director’s Cut. Agência: Publicis Italy. Direção: Philippe André. Itália, maio 2022.
Marca: Barilla / Al Bronzo. Título: Past is born. Agência: Publicis (Milan). Direção: Philippe André. Itália, maio 2022.

Samba digestivo

Habituamo-nos ao protagonismo do samba na publicidade, por exemplo nos anúncios ao futebol. Mas ao trânsito digestivo!…

Marca: Dan Paris. Título: Samba. Agência: TBWA Paris. Produção: Blackmeal. França, junho 2014.
Marca: Hépar. Título: Samba. Agência: Marcel. França, fevereiro 2022.

Horae ad usum Parisiensem. Antecipação medieval do surrealismo

Grandes Heures de Jean de Berry Fol. 12v

Há muito que andava à pesca do livro Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry], concluído em 1409. Acabo de o encontrar na Biblioteca Nacional de França. Reservados às elites, luxuosamente ilustrados com gravuras fabulosas, os livros de horas multiplicam-se durante a Baixa Idade Média. Correspondem a uma viragem da relação dos cristãos com o divino: a oração, retomada várias vezes, a horas certas, ao dia, é assumida em ambiente privado com recurso à mediação de imagens. Sobreviveram milhares de livros de horas. Em Portugal, o mais célebre é o Livro de Horas de D. Manuel (entre c. 1517 e c. 1538), publicado pela Imprensa Nacional e Casa da Moeda (1983).

Com capa original de veludo violeta, com dois fechos de ouro, rubi, safira e seis pérolas, o manuscrito das Grandes Heures de Jean de Berry (300X400 mm) é composto por 126 folios (252 páginas) com calendário (f. 1-6), horas de Nossa Senhora (f. 8-42), sete salmos da penitência e litania dos santos (f. 45-52), pequenas horas da cruz (f. 53-55) e do Espírito Santo (f. 56-58), grandes horas da Paixão (f. 61-85) e do Espírito Santo (f. 86-101) e ofícios dos mortos (f. 106-123). O livro está disponível, para consulta e descarga, no seguinte endereço https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Segue uma montagem de uma das primeiras Horas de Nossa Senhora, acompanhada por uma galeria com iluminuras provenientes das margens, uma autêntica “antecipação” medieval do surrealismo do século XX (ver outros casos de “antecipação” histórica do surrealismo nos artigos: https://tendimag.com/2020/03/24/aula-imaterial-4-maneirismo-e-surrealismo-sonhar-o-pesadelo/; https://tendimag.com/2020/04/04/aula-imaterial-5-maneirismo-e-surrealismo-2-humanoides/; https://tendimag.com/2012/05/05/braccelli-a-maneira-surrealista/).

Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry]. Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Galeria: Gravuras nas margens das Grandes Heures de Jean de Berry (carregar para aumentar). Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510.

Avalanche de imagens

Netflix. Resident Evil, Official Trailer. 2022.

Estou a ver A Roda do Tempo. Queixo-me ao meu rapaz: tudo passa muito depressa. Estás desfasado. Agora não é como dantes! Parodia, em câmara lenta, as cenas do Tarkovsky, do Bergman, do Fellini, do Kurosawa, do Oliveira… Mas condescende: o primeiro episódio é o mais concentrado, inicialmente estava previsto ser desdobrado em dois. Resisto: o Senhor dos Anéis é lento! Repara, o conjunto dos livros da trilogia dos Senhores dos Anéis tem cerca de 1 230 páginas e os três filmes duram 12 horas; os 14 volumes da Roda do Tempo têm mais de 11 000 páginas e a primeira temporada dura pouco mais de 7 horas. Parece um cocktail [um shot?] de economia e estética. A juventude hoje sabe tudo!

Sinto-me ultrapassado. Estranho estas avalanches de imagens aceleradas, densas, acentuadas e cortadas. Opto por me refugiar na publicidade. Estava longe de suspeitar o que me aguardava. Nem me apetece comentar.

“For the launch of their new horror series Resident Evil this week, global streaming platform Netflix installed a terrifying live installation on the streets of Santa Monica. Created by US creative agency, Founders, part of By The Network, the activation takes place on one of Santa Monica’s busiest streets. Played out by an actor, a man infected with the T-Virus (the virus from the series) is imprisoned in a huge glass cage and over the space of four hours turns into a Zero (the frightening infected creatures from the series) before breaking free from the cage and chasing into the crowd, thirsty for blood. The TikTok film has already attracted over 15 million views, and counting” (https://www.adsofbrands.net/en/ads/netflix-resident-evil/14451).

Marca: Netflix / Resident Evil Season 1. Título: Man Infected with T-Virus | Pedestrians React. Agência: Founders, NY. Direção: DIGBY. Estados-Unidos, julho 2022.
Marca: Netflix. Título: Resident Evil | Official Trailer. Estados-Unidos, julho 2022.

Mudo para uma base de dados francesa. Espera-me uma declaração de amor pátrio precipitada num carrossel de imagens fugidias e músicas sincopadas. Tamanha velocidade ultrapassa-me!

Marca: Renault / Nouveau SUV Renault Austral. J’aime la France. Agência: Publicis Conseil. Direção: Maud Robaglia. França, março 2022.

A participação da mulher nos Farrangalheiros de Castro Laboreiro

Brilhantes, os meus colegas publicam em revistas com revisão por pares e fatores de impacto. Preguiçoso, vou vertendo o que escrevo neste blogue. Alimento a ilusão que talvez alcance mais leitores.

Há mais de dois anos que não arrisco uma comunicação em público. O Congresso Internacional Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade (Braga, 4-5-6 Maio de 2022) foi uma tentação a que não resisti. A investigação em curso dedicada aos Farrangalheiros, uma tradição carnavalesca de Castro Laboreiro, foi um pretexto. Estava um pouco inseguro pela falta de treino. Ademais, trata-se de uma autoria partilhada, com o Daniel Maciel e a Margarida Codesso, formato que não sou vezeiro. Para partilhar a minha parte, passeia-a escrito.

Por princípio, nunca escrevo uma comunicação antes de a proferir. Receio que o fantasma do texto me tolha a fluência e a espontaneidade, ingredientes do discurso que muito prezo. Felizmente, depressa ignorei o texto e acabei por ultrapassar, para inquietação da moderadora, a escassa dúzia de minutos que me estava reservada. Incontinente verbal, como de costume.

Bem organizado, o Congresso versa sobre um tema oportuno. Não obstante, estranhei a quase ausência de público no auditório. Um punhado de gente, que não compensa o esforço de subir a um estrado arquitetado com barreiras. Pode-se atribuir o vazio à pandemia. De facto, a tendência vem-se acentuando há muito mais tempo. O declínio da interação presencial representa mais uma perda axial do mundo da cultura. Talvez tenha chegado a urgência de reagir.

Antes de acrescentar o rascunho da comunicação, um reparo prévio. A investigação ainda se encontra numa fase inicial. São muitas as inconsistências e as falhas de informação. A ossatura é demasiado tosca, oca e mole. E, sobretudo, passível de emenda, especialmente os nomes e as designações. Motivo reforçado para a expor à crítica alheia.

Em Janeiro de 2021, foi publicado no Tendências do Imaginário, um artigo, com outro teor, dedicado ao tema dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro. Pode aceder a partir da seguinte ligação: https://wordpress.com/post/tendimag.com/48685.

A participação da mulher nos Farrangalheiros de Castro Laboreiro
Autores: Albertino Gonçalves / Daniel Maciel / Margarida Codesso

Melgaço é um concelho que adquiriu, no último meio século, uma rara notoriedade. A autarquia e a sociedade civil não desperdiçam uma oportunidade, tornando a mais ínfima potencialidade num trunfo apreciável. Parece que se inspiram na fábula da ferradura e das cerejas. Acontece com o património histórico, paisagístico e cultural, com o desporto na natureza, a gastronomia, o alvarinho e o fumeiro. Ainda recentemente, de um paralelepípedo granítico, o marco nº 1 da fronteira portuguesa, nasceu um recanto místico; e um apertado rio apressado, o Laboreiro, ascendeu a santuário europeu para a prática do Kayak e do Canyoning.
Nesta lógica de valorização do património cultural endógeno, deu-se início em 2017 ao estudo e revitalização das práticas de entrudo. Um dos focos incide na tradição dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro, uma festividade carnavalesca do tempo dos bisavós, entretanto abandonada e agora em vias de ser retomada.
Na primeira metade do século XX, Castro Laboreiro era um território de montanha, com uma extensa linha de fronteira com a Galiza e extremamente pobre. Testemunham-no, por exemplo, Leite Vasconcelos, Rocha Peixoto e Miguel Torga. A maioria da população mudava de residência: passava o inverno, no vale, nas inverneiras, e o verão, no planalto, nas brandas. Os homens migravam cerca de seis meses, partindo no outono para a Espanha, o Douro ou as Beiras, sobretudo como pedreiros, regressando na primavera. Durante o inverno, a população de Castro Laboreiro era composta quase exclusivamente por mulheres. Homens, muito poucos, sobretudo velhos e crianças. A economia assentava na agricultura, reduzida praticamente à batata e ao centeio, na pecuária, mormente no pastoreio, no comércio local e transfronteiriço, no contrabando e nas migrações.
Pouco antes da deslocação para as brandas, festejava-se o “Entroido. Nalguns lugares, o Entroido incluía a figura dos farrangalheiros, com as mulheres a assumir, em trajo próprio, o protagonismo, protagonismo este que, embora propiciado pela ausência dos homens, se oferece como uma característica marcante e específica. Habitualmente, na vizinha Galiza ou em Trás-os-Montes, o destaque carnavalesco recai sobre os homens, principalmente jovens. Não se trata, é certo, de um caso único, existem outros exemplos noutros horizontes. Representa, contudo, um caso bastante interessante e raro.
Em que consiste o Entroido dos farrangalheiros em Castro Laboreiro? Dois ou três lugares contíguos juntavam-se, desdobrando-se a freguesia por vários grupos, que competiam e rivalizavam entre si.
Durante o dia, de sábado a terça, esfarrapados e farrangalheiros, assim se chamavam as mulheres trajadas, desfilavam pela freguesia e concentravam-se num ou noutro local, normalmente, numa eira. Havia várias categorias de atores.
Em primeiro lugar, os esfarrapados, homens ou mulheres travestidas (o único momento em que vestiam calças). Os esfarrapados andavam de lugar em lugar, de caminho em caminho, de eira em eira. Apareciam inesperadamente, provocavam a desordem e a confusão, “faziam coisas estúpidas”, no dizer das informantes. Achocalhavam, multiplicavam as provocações de gracejo. Vestidos com roupas velhas, esfarrapadas, daí o nome, cobriam o rosto com máscaras ou panos com orifícios. Tão cedo apareciam como desapareciam, a lembrar tempestades de verão.
Mulheres, trajadas a preceito, eventualmente acompanhadas por animais, compunham a segunda categoria, porventura a mais emblemática: os farrangalheiros. Com um garruço, um pano bordado a tapar o rosto, blusa, lenços, piúcas, socos… e um saiote vermelho, peça quotidiana de roupa interior, usada entre a saia branca de linho ou a combinação e a saia preta. Que mulheres? Como não é de estranhar, apenas as solteiras, mas, segundo alguns testemunhos, o uso do traje e a participação no Entroido podiam estender-se, em condições semelhantes, às mulheres casadas que, cito, “tinham o homem no eido”. Ou seja, as mulheres cujo marido estava presente. O que não deixa de fazer sentido. Excluem-se apenas as mulheres simbolicamente “assexuadas”, as viúvas, nomeadamente, de vivos, tradicionalmente obrigadas a uma espécie de “clausura” ou “mortificação do sexo”, figuras praticamente intocáveis na cultura castreja. A mulher em Castro Laboreiro é digna do maior respeito, sobriedade e discrição. Por exemplo, durante um baile, o homem que quer pedir namoro a uma mulher limitava-se a dar-lhe um aperto na mão. Ofender uma mulher é um ato grave. Mesmo durante Entroido, o trato com as mulheres tem limites!
Para além dos esfarrapados e dos farrangalheiros, participam também no Entroido os velhos e as crianças. Uma última figura é incontornável: o tocador de concertina. De sábado a terça, de dia e de noite, sempre a convidar para o baile. A concertina é o instrumento emblemático dos castrejos. Já, por exemplo, na freguesia vizinha de Parada do Monte o instrumento eleito é a gaita, ao jeito celta e galego.
O protagonismo da mulher reflete-se nos rituais e na semiótica dos festejos. O uterino tende a sobrepor-se ao fálico. A pancada do chocalho cede perante o banho de água provocado pela batida da vara, de conduzir o gado, na corga que passa pela eira. E, numa espécie de inversão do rapto das sabinas, são as mulheres que arrastam os velhos para uma folia no centro do baile.
O Entroido culmina com a queima de um boneco de palha andrajoso, num local visível de longe, para ofuscar as gentes de outros lugares. Uma catarse purificadora, uma despedida, com fogueira, cânticos, gritos e bombas lançadas pelas crianças. Uma despedida cíclica do desespero e da miséria do inverno. O velho é, assim, esconjurado, afastado por um tempo, com exéquias, danças, exorcismos e estrondos.
Um último apontamento acerca do saiote vermelho. Mais do que de um cocktail, trata-se de um shot simbólico. Antes de mais, pela localização. Situa-se no baixo corporal, próximo das entranhas, dos genitais e da terra. Traduz um movimento de rebaixamento e regeneração típico do carnaval. Por outro lado, trata-se de vestuário íntimo. Exterioriza-se o interior, numa emergência do oculto e do contido igualmente típica da dinâmica carnavalesca. Confrontamo-nos, deste modo, com uma dupla inversão: de cima para baixo e de dentro para fora. Por seu turno, a cor do saiote é vermelha. Não será por acaso. O vermelho é solar, é colorido, festivo, símbolo de princípio de vida, de desejo, de sangue, de menstruação, de fecundidade, de fertilidade e esperança. O carnaval é a festa por excelência da regeneração e da fecundidade, da antecipação da abundância, da esperança e da utopia. Mas a cor vermelha não deixa de ser ambivalente. Para além de solar, insinua-se como lunar: significa o interdito, o perigo, o fruto proibido. Na realidade, o carnaval aposta na transgressão de barreiras e fronteiras, no excesso e na exorbitância.
A adesão ao ressurgimento dos Farrangalheiros tem-se revelado entusiástica e até, diremos, enternecedora. Mas já não são apenas as solteiras e as “mulheres com homens no eido” que participam. Predominam, como diriam os espanhóis, as “maiores”, rejuvenescidas. Testemunha-o a seguinte galeria de imagens.

Galeria de imagens

Congresso Internacional Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade. Braga, 4 de Maio de 2022.

Estaleiro Jazz

Jaz Hotel. Amsterdão.

Retomando o tema do recurso na publicidade a conteúdos com sonoridades musicais, segue o anúncio Built By Music, para o Jaz Hotel Amsterdam, pelos bauhouse. Uma performance excecional. Existem anúncios clássicos e grotescos. Este aproxima-se do barroco. ” ‘Built By Music’ foi premiado com Ouro na categoria ‘Melhor Operação de Marketing de Marca’ no Worldwide Hospitality Awards 2016, Paris”.

Marca: Jaz Hotel Amsterdam. Título: Built by music. Agência: bauhouse. Direção: Fabian Grobe, Clemens Wittkowski. Países Baixos, 2016.

Adolescência militante

A escassos dias das eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975, tinha 16 anos e pouco siso. Atravessava o meu cúmulo de envolvimento político. Poucos meses depois, desligava-me, para sempre, de qualquer militantismo político. A bipolaridade do costume.
Em pose híbrida, um misto de estudante e ativista, sento-me no “poleiro” do quarto que partilhava com o Álvaro, amigo com bonomia suficiente para suportar extravagâncias. Numa época em que predominavam os posters com modelos femininos e carros de corrida, a decoração é monopolizada por cartazes eleitorais. Nas costas daquele pequeno casaco, gravei, com precioso esmero, o rosto de Karl Marx!
Estudante no Liceu Sá de Miranda, estava interno no Colégio D. Diogo de Sousa, onde beneficiava de um vislumbre de tolerância especial. As autoridades entenderam por bem ignorar esta quase subversão institucional. Mas não permitiram, contudo, que o cartaz da janela estivesse virado, como inicialmente, para o exterior.
O John, outro companheiro de aventuras, enviou-me esta fotografia com um momento expressivo de uma biografia feita de altos e baixos. Naquele tempo, proporcionava-se a criação de grandes amizades. Saudades!

E a vida continua

Gustav Klimt. Hope, II. 1907-1908.

Ainda não consigo dançar estas músicas, mas falta pouco. Entretanto, dá para revigorar. Bom ano! Grandes voos e boas aterragens.

Pavlov’s Dog. Song Dance. Pampered Menial. 1975. Ao vivo: House Broken, 2015.
Focus. Hocus Pocus. Moving Waves. Ao vivo: NBC´s Midnight Special, 1973.
Creedence Clearwater Revival. I Heard It Through The Grapevine. Cosmo’s Factory. 1970. Ao vivo.
Armageddon. Buzzard. Armageddon. 1975.

Gárgulas Impúdicas (para o livro A Morte na Arte)

Estou a proceder à última revisão do livro A Morte na Arte. O texto Gárgulas Impúdicas, já corrigido, alterado e aumentado, aparece como o primeiro “capítulo” da obra. Segue, como aperitivo, já revisto. Empenhado na revisão do livro, anunciam-se poucas e piores publicações no Tendências do Imaginário.

Gárgulas Impúdicas

Observamos como elementos essenciais na mentalidade deste período [medieval] a formação e divinização de locais empíricos como palácios e catedrais góticas (com sua arquitetura repleta de representações religiosas como as torres altas, “tocando” nos céus; os vitrais, deixando penetrar a “luz de Deus” no interior da igreja; as gárgulas junto às torres, simbolizando a não-penetração do demônio a das forças maléficas dentro dos templos sagrados etc.) (Prado, Daniel Porciuncula, 2000, Uma breve introdução acerca das estruturas mentais no período medieval, Biblos, Rio Grande, 12, 115-121, p. 118).

1. Gárgula da Igreja Matriz de Caminha. Foto de Manuel Passos.

Olhar para cima e deparar-se com um rabo prestes a defecar representa uma experiência insólita mas possível. Em Portugal, existem, por exemplo, gárgulas impúdicas na Sé da Guarda, na Sé de Braga, na Matriz de Caminha, e na Igreja de Nossa S.ª da Oliveira, em Guimarães. Para orgulho local, as gárgulas de Caminha (figura 1) e Guimarães (figura 2) estão de costas viradas para Espanha:

“Em Portugal, prestam-lhes as devidas honras as já aludidas gárgulas, como o famoso “Cu da Guarda” e os seus congéneres da Sé de Braga, da Matriz de Caminha e da Matriz de Escalhão (…), do Castelo de Pinhel ou, ainda, da quimera da torre do relógio de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães (…), muitas delas ainda hoje popularmente aclamadas enquanto expressão de um certo sentimento nacional historicamente ressentido dos acometimentos dos reinos vizinhos. Voltados para Espanha (…) estes exibicionistas (termo importado da historiografia anglo-saxónica para este tipo preciso de figuras (…) seriam então uma provocação além-fronteira” (“Sem medo nem vergonha. Imagens insólitas à margem da escultura medieval”, de Joana Antunes ( Universidade de Coimbra | FLUC |CEAACP | MNMC: https://doi.org/10.14195/2184-7193_10_1).

2. Gárgula da Sé de Braga.

Vigiam-nos um pouco por toda Europa: Espanha, França, Inglaterra, Alemanha… Com o “rabo-ao-léu”, as gárgulas de Braga, Guimarães e Caminha distinguem-se das demais. Estão invertidas, a olhar para baixo, com a cabeça encostada ao contraforte e com o rabo do lado de fora, por onde, em vez de pela boca, a água escorre. Encenam, deste modo, um mundo-às-avessas. Estas três gárgulas entram “no vasto círculo dos motivos e imagens que evocam a substituição do rosto pelo traseiro, do alto pelo baixo. 0 traseiro é o “inverso do rosto”, a “rosto as avessas”” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, 1.ª ed. 1965, São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 2008, p. 327). Além do rabo, estas gárgulas minhotas exibem os genitais, cometendo sexo oral.

“Na torre da igreja de Nossa Sr.ª da Oliveira, Guimarães (séc. XVI), podemos observar uma gárgula, posicionada à esquina (…) que representa uma figura masculina a protagonizar uma cena de felatio a si própria, numa estranha posição, de rabo virado para o exterior. E a sua representação é bem explícita, pois é bastante visível para o observador o falo erecto, que o artífice enfatizou exagerando a sua escala” (Catarina Fernandes Barreira, “Contributos para o estudo das gárgulas medievais em Portugal: desvios e transgressões discursivas?”, Lusitania Sacra. 22 (2010) 169-199, p. 190).

3. Gárgula da Igreja de Nossa S.ª da Oliveira, em Guimarães.

Não é apenas na igreja de Nossa Srª da Oliveira que nos oferece esta acrobacia sexual. Encontramo-la, também, na Matriz de Caminha, embora com um falo menos imponente. Na gárgula da Sé de Braga, a mais antiga, o falo não é visível, o que constitui uma exceção estranha nesta série de gárgulas de rabo-ao-léu, no país e no estrangeiro (figura 5). Se não se vê, ou o amputaram ou não está à vista. Não aparenta marcas de intervenção. Evidenciam-se, em contrapartida, duas bolas junto ao queixo, que mais lembram dois testículos do que outras bolas quaisquer, por exemplo, um colar de guizos. Nas gárgulas, o que parece grotesco costuma ser.

“[Na Sé de Braga], “uma gárgula peculiar (…) exibe um par de cornos, olhos muito esbugalhados e um sorriso rasgado, mas irónico e parece ter no sítio do queixo duas bolas penduradas (parecem testículos). Tem as pernas colocadas ao longo do tronco e com a ajuda das mãos, que parecem estar amarradas na zona dos pulsos, abre despudoradamente o ânus para o observador: é a primeira gárgula rabo-ao-léu do panorama nacional” ( Catarina Alexandra Martins Fernandes Barreira, Gárgulas: representações do feio e do grotesco no contexto português. Séculos XIII a XVI, Volume I, Dissertação de doutoramento em Belas Artes, Universidade Nova de Lisboa, 2010, p. 341).

4. Cachorros da Igreja de São Pedro de Cervatos. Cantábria. Espanha.

Nesta perspetiva, o pénis não aparece porque está abocanhado, indiciando, portanto, uma cena de felácio. Em suma, a igreja de N.ª Senhora da Oliveira alberga uma gárgula com um falo ostensivo, a Matriz de Caminha, uma gárgula com um falo discreto, e a Sé de Braga, uma gárgula com um falo pressuposto.

Estas gárgulas de rabo ao léu têm ar de se esborrifar para o comum dos mortais. A fazer fé na alquimia grotesca, fertilizam-nos. A cartografia simbólica do corpo humano desvaloriza o baixo (os pés), o posterior (as costas) e o interior (as entranhas). Estas gárgulas perfazem um cúmulo grotesco: baixeza traseira e incontinente.

“A orientação para baixo é própria de todas as formas da alegria popular e do realismo grotesco. Em baixo, do avesso, de trás para a frente, tal é o movimento que marca todas essas formas. Elas se precipitam todas para baixo, viram-se e colocam-se sobre a cabeça, pondo o alto no lugar do baixo, o traseiro na frente, tanto no plano do espaço real como no da metáfora” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, op. cit. p. 325).

5. Gárgula. Igreja de St Pierre de Dreux. França

O que significa tamanha vulgaridade? É costume precisar-se que estas provocações não entram nos mosteiros nem nas igrejas, permanecendo no seu exterior, que se destinam mais a quem vem do que a quem está dentro. Esta espécie de sobrecarga semiótica justifica três reparos. Primeiro, as gárgulas situam-se onde está a sua função básica: o escoamento das águas no topo das fachadas. Segundo, demoníacas e macabras, também se insinuam nos claustros, no coração dos mosteiros que o povo raramente visita em vida e nunca na morte. Terceiro, fantasmagorias congéneres, tais coma as danças macabras, com papas, imperadores, reis e bispos a dar a mão à morte, invadem as paredes, os capitéis e os órgãos dos templos e dos cemitérios dos séc. XV e XVI. Nos edifícios beneditinos, multiplicam-se os sátiros e as carrancas. O próprio diabo é presença habitual na casa do Senhor.

No desfile das gárgulas medievais, a desgraça sexual rivaliza com as ameaças escatológicas. Grotescas, as gárgulas incarnam o pecado, em ato ou em expiação. São exemplos a evitar, numa espécie de catequese pela imagem, que não hesita em convocar a credulidade, o medo e o horror. Idealizam fantasias muito reais nos seus efeitos. Há gárgulas com figuras humanas que representam frades ou freiras que caíram na tentação da carne, da luxúria e da gula. Algumas freiras vestem um manto, de tal modo subido ou aberto, que deixa a descoberto os peitos e as partes genitais. Umas juntam as mãos, em sinal de arrependimento, outras, tapam os seios, outras ainda comprazem-se a tocar e a destapar as partes impróprias.

No Mosteiro da Batalha, edifício português com maior número de gárgulas, destaca-se uma figura de mulher com manto, pé de cabra. os peitos destapados e uma criança na boca. Será uma freira que teve um filho de uma relação inaceitável, eventualmente, com uma autoridade eclesiástica? A mulher engole ou regurgita a criança? Por quê na boca? Os medievais eram imaginativos e exímios cuidadores de símbolos. O gigante Gargântua nasceu pela orelha da mãe, Gargamelle (ver https://tendimag.com/?s=partos+extravagantes). Nesses tempos, acreditava-se que as bruxas comiam crianças, incluindo os próprios filhos.

10. Gárgula no Mosteiro da Batalha.

As bruxas também usavam mantos e cobriam a cabeça. Na Idade Média, as bruxas moravam na cabeça das pessoas. E se a gárgula do Mosteiro da Batalha fosse uma freira bruxa. Seria um excesso de novidade híbrida. Vale, no mínimo, o prazer poético da imagem. Que pretendia a Igreja com tamanhos desmandos no seu próprio seio? Há quem garanta que houve períodos em que a Igreja apostou no combate aos pecados internos. Suspeitava-se que os membros do clero não resistiam ao mal. As gárgulas recebiam e amedrontavam o povo, mas perturbavam também o olhar do clero.

Michel Maffesoli fala em homeopatia do mal, senão da morte, em “reconhecer ‘o que cabe ao diabo’, saber dar-lhe bom uso, para que não sufoque o corpo social”. (Michel Maffesoli, A Parte do Diabo, Rio de Janeiro, Record, 2004 , 2004, p.16). Mikhail Bakhtin releva os interstícios do lado sombrio da criação, o da potência dionisíaca. Entretanto, imunes a hermenêuticas, as gárgulas defecam chuva, a fonte da vida, a seiva do húmus. O bem assimila e assume o mal, a “parte maldita”.