RespirAr-te
Acabei de dar uma aula sobre a relação entre o maneirismo e o surrealismo. Chegado a casa, vejo, como costume, uma selecção de vídeos “frescos”. Deparo-me com o videoclip Respirare, do grupo italiano Subsonica. Não podia vir mais a propósito esta agradável surpresa. Respirare é um vídeo marcado pela criatividade e pela intertextualidade. Convoca várias obras de arte, mormente surrealistas. O mundo gira, naturalmente, mas qual é o eixo?
Grupo: Subsonica. Título: Respirare. Direcção: Donato Sasone. Director de fotografia: Davide De Martis “DeFuntis”. Itália, Novembro 2018.
O prazer dos mortos
Desde há alguns anos, a Mercedes alterou radicalmente a orientação da publicidade: onde vigorava a sobriedade e a segurança, vinga agora a irreverência e o humor. No anúncio The Last Wish, ir para o cemitério num mercedes é antecipar o paraíso. Existem vários anúncios congéneres. Retomo dois: A um morto nada se recusa, da Funalcoitão, e Staying Alive, da Kenwood.
Título: The Last Wish. Escola: Filmakademie Baden-Württemberg. Direcção: Raphael Ghobadloo. Alemanha, 2018.
Funalcoitão. Tema: A um morto nada se recusa. Agência: BAR. Direcção criativa: Diogo Anahory e José Carlos Bomtempo. Portugal, 2014.
Marca: Kenwood. Título: Staying Alive. Itália, 2008.
Lágrimas do Paraíso
Um anúncio brilhante não precisa de palavras nem sequer da nossa cooperação. Está muito além. Quem se lembra de colher lágrimas no paraíso para as beber na terra? Graças a uma cebola que faz chorar o divino. Sublime!
O anúncio Tears in Heaven, da Tears Dry Gin, tem a marca da agência alemã Filmakademie Baden-Wuerttemberg, uma escola do inimaginável.
Marca: Tears Dry. Título: Tears in Heaven. Agência: Filmakademie Baden-Württemberg. Direcção: Bernd Fass. Alemanha, 2018.
Resistência e impotência
“De todos os fenômenos religiosos, mesmo os considerando apenas de fora, é a oração que apresenta imediatamente a impressão de vida, riqueza e complexidade. Ela possui uma história maravilhosa: parte de baixo, e ascende gradualmente até as cimeiras da vida religiosa. Infinitamente flexível, assume as formas mais variadas, alternadamente adorativas e vinculativas, humildes e ameaçadoras, secas e abundantes em imagens, imutáveis e variáveis, mecânicas e mentais. Preenche os papéis mais diversos: aqui é um pedido brutal, lá uma ordem, noutro lugar um contrato, um ato de fé, uma confissão, uma súplica, um elogio, um Hosana. Às vezes, uma mesma espécie de orações tem passado sucessivamente por todas as vicissitudes: quase vazia na origem, encontra-se um dia cheia de sentidos; em outro, quase sublime no início, se reduz gradualmente a um salmo mecânico (Marcel Mauss, La Prière, 1909, traduzido por Mauro Guilherme Pinheiro Koury)”.
As orações podem ser de revolta e desespero. A canção The Great Gig In The Sky, dos Pink Floyd, versa sobre a resistência e a impotência perante o “destino da vida”.
The song began life as a Richard Wright chord progression, known variously as “The Mortality Sequence” or “The Religion Song”. During 1972 it was performed live as a simple organ instrumental, accompanied by spoken-word samples from the Bible and snippets of speeches by Malcolm Muggeridge, a British writer known for his conservative religious views (The Great Gig In The Sky. Wikipaedia, acedido em 28/11/2018).
Para um descrente de Deus, do Homem e do Diabo, nestes dias, já rezei muito.
Pink Floyd. The Great Gig In The Sky. The Dark Side Of The Moon. 1973.
Os óculos do Pai Natal
Estamos na estação da generosidade. Começa lá para o Halloween e acaba com o S. Brás, senão com o Carnaval. Quanto o calendário se pautava pelos trabalhos agrícolas, este era, com escassas colheitas, um período de alguma miséria, logo de partilha. As sociedades camponesas quase desapareceram, mas continuamos a trocar prendas. O Pai Natal continua incansável a cruzar a noite com o seu trenó de renas. Mas acontece confundir-se para desconcerto das crianças e dos adultos. O Pai Natal não envelhece, mas está a perder a visão. Baralha os pedidos. Precisa de usar óculos. A Générale d’Optique oferece os óculos. A ele e a mais 25 000 pessoas. Mas o Pai Natal não tem óculos? Uma pesquisa relâmpago sugere que quando é uma pessoa, como no anúncio, costuma usar óculos. Sucede o contrário quando é um desenho. Não percebo.
Marca: Générale d’Optique. Título: Un Noël presque parfait. Agência: La Chose. Direcção: Hugues de la Brosse. França, Novembro de 2018.
Oração II
Reza-se de joelhos e de pé, de cabeça baixa ou erguida, de pé atrás ou à frente, de olhos fechados ou abertos, de cor ou de improviso, em silêncio ou não. Nem sequer é fácil saber quando se está ou não a rezar (Marcel Mauss, “La prière”, 1909). Nina Simone, Don’t Let me Be Misunderstood, ao vivo.
Nina Simone. Don’t Let Me Be Misunderstood. 1964. Live 1968.
Oração
Porque gostas, Senhor, de quem gosto? (AG).
Não sei rezar! Peço emprestada uma oração: a Prece de Fernando Pessoa (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática. 1966) declamada por Maria Bethânia.
Prece, poema de Fernando Pessoa declamado por Maria Bethânia. Pintura: Cimabue, Crucifixo (detalhe), 1268-71.
Prece, de Fernando Pessoa. Letra.
Senhor, que és o Céu e a Terra, que és a Vida e a Morte
O Sol és Tu e a Lua és Tu e o Vento és Tu, também
Onde nada está, Tu habitas
Onde tudo está – (o Teu templo) – eis o Teu corpo
Dá-me alma para Te servir e alma para Te amar.
Dá-me vista para Te ver sempre no Céu e na Terra
Ouvidos para Te ouvir no Vento e no Mar
E mãos para trabalhar em Teu nome.
Torna-me puro como a Água e alto como o Céu
Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos
Nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos
Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos
E Te servir como a um pai.
Minha vida seja digna da Tua presença
Meu corpo seja digno da Terra, Tua cama
Minha alma possa aparecer diante de Ti
como um filho que volta ao lar
Torna-me grande como o Sol
para que eu Te possa adorar em mim
Torna-me puro como a Lua
para que eu Te possa rezar em mim
E torna-me claro como o Dia
para que eu Te possa ver sempre em mim
Senhor, protege-me e ampara-me
Dá-me que eu me sinta Teu
As virtudes do funil

01. Unknown, Inuentio sanctae Crucis, Illumination from the Passionary of Weissenau (Weißenauer Passionale) (1170-1200), Codex Bodmer 127, fol. 53v.
Com menos anos do que dedos nas mãos, pasmava na feira a ver o vendedor de banha da cobra. Numas bancas, alguns recipientes de vidro com uma espécie de massa longa (mafaldine) a que chamava “bicha solitária”. O seu vozeirão dava exemplos dos pavores que estes parasitas provocavam nos intestinos. Para alimentar o monstro, as vítimas sentiam fome e definhavam a olhos vistos. Para grandes males, pequenos remédios. Bastam dois frascos com uma poção milagrosa para matar o bicho e a fome. Duas pessoas apressam-se a comprar, secundadas por parte da assistência. Naquele tempo, eram mais as pessoas com fome do que com fastio. Talvez fosse da bicha solitária. Este é um dos esquemas básicos da publicidade. Criar necessidades, pelo imaginário mas com fio de terra. Como diria Karl Marx, a oferta produz a procura. Não digo que os anúncios actuais são herdeiros dos charlatões das feiras, mas também não desdigo.
Marca: SodaScream. Título: It’s time for a change. Estados Unidos, Novembro 2018.
Afirmam que existe uma nova ilha composta por lixo. Os oceanos e os rios estão atafulhados de lixo, os lugares onde as pessoas residem, também. Como combater a catástrofe? O anúncio It’s time for a change, da SodaStream, sugere deixar de beber água engarrafada em embalagens de plástico e passar a beber soda. Com mais de 6 milhões de visualizações no site da marca, o anúncio está a alcançar um enorme sucesso.
Como vamos beber a soda? Com palhinhas ou copos de plástico? São o problema. Com copos de madeira ou de papel? São desflorestadores. Com copos de vidro? São de reciclagem rápida, mas requerem detergentes. Tecnologicamente avançada, a nossa sociedade tem a poção mágica para quase tudo. Se existe, digitaliza-se! Por que não beber soda em copos virtuais! A digitalização é amiga do ambiente, apenas polui os neurónios.

03. David Teniers the Younger.The Temptation of Saint Anthony (detail) (c 1650).
Restam duas soluções. A primeira consiste em beber soda diretamente da fonte. Sem copo, nem palhinha. Na aldeia, para beber às escondidas, sorvia-se o vinho da torneira da pipa. Outra solução: não beber nem água engarrafada nem soda. Beber água da chuva, graças a um funil. Aos primeiros pingos, funil à boca e ergue-se a face. Regressado o sol, o funil, assente na cabeça, serve, agora, de chapéu. Esta solução já foi patenteada há, pelo menos, oito séculos (Figura 01).
Os funis de Hieronymus Bosch
O Dia dos Mortos e o combate aos mosquitos
« Puisque je doute, je pense, puisque je pense, j’existe » (René Descartes, Discours de la méthode, 1637).
O pensamento por associação em cadeia é contundente. A conjunção logo é um golpe de misericórdia da razão. O que liga o México à marca de repelentes Off?
México, logo Dia de los Muertos, logo gente festiva “que reaviva os mortos”, logo cemitério, logo flores, logo floreiras, logo água estagnada, logo reprodução de mosquitos, logo enfermidades, logo o interesse de plantas que afastam os mosquitos, logo os produtos da Off, marca de repelentes da S.C. Johnson.
Anúncio interessante e criativo, com um colorido humano fantástico em tempo de festa com fundo fúnebre.
Marca: Off. Título: Ramo repelente. Agência: BBDO Argentina. México, Novembro 2018.
O tempo que resta
O desencanto com as novas tecnologias está a ganhar expressão. Muitos anúncios recorrem a encenações que, paradoxalmente, geram um efeito acrescido de realidade. São mais reais do que o real. O anúncio El Tiempo Que Nos Queda, da Ruavieja, dá-nos a ver um filme sob forma de reportagem. O desencanto com as novas tecnologias está a aumentar. Está em jogo a amizade e o amor. As novas tecnologias podem sobreaquecer-nos, mas é um sobreaquecimento que arrefece. Ao abraço virtual falta-lhe o corpo a corpo: o calor humano. O tempo não é infinito, não temos todo o tempo do mundo. O tempo que dedicamos a uma actividade falta a outras actividades.
“É uma contradição, não há lugar para dúvida. A gente afirma que os seus seres mais queridos são o mais importante. Mas a distribuição do seu tempo não mostra isso. Isto tem a ver com o modo como funciona o nosso cérebro. Estamos programados para evitar pensar no tempo que nos resta para viver. Temos, assim, a sensação de que sempre teremos a oportunidade de fazer as coisas que nos fazem felizes” (anúncio El Tiempo Que Nos Queda).
Marca: Ruavieja. Título: El Tiempo Que Nos Queda. Agência: Leo Burnett España. Direcção: Feliz Fernandez de Castro. Espanha, Novembro 2018.
Assenta bem uma dose de contradição. “As novas tecnologias podem sobreaquecer-nos, mas é um sobreaquecimento que arrefece. Ao abraço virtual falta-lhe o corpo a corpo: o calor humano”. Quem conheceu o desenraizamento sabe que o ser humano é um devorador de símbolos. Uma lembrança, um objecto, uma voz, uma fotografia, não é preciso muito para nos sobreaquecer. A imagem propicia calor humano. Os abraços virtuais multiplicam e aceleram o contacto entre pessoas distantes. É uma das vantagens da emigração actual. O corpo não é apenas carne.
Tese e antítese dá Um Dia de Domingo, de Gal Costa.
Music video by Gal Costa performing Um Dia De Domingo. (C) 2013 Universal Music Ltda.
O nariz
O nariz é um órgão injustiçado. Abaixo dos olhos (ai os olhos!), acima dos lábios (ai os lábios!), o nariz (ui o nariz!) fica entre as orelhas (ui as orelhas!). O nariz é um órgão simbolicamente menosprezado. Não fosse Cleópatra e a humanidade nunca teria um nose turning. Graças ao anúncio da companhia de seguros Geico, deparamo-nos com narizes músicos, o que já se previa. Abusando da imaginação, as trompetas de Jericó foram, na realidade, narizes. No anúncio, o avô adormecido toca com o nariz o Flight of the Bumblebee, de Rimsky-Korsakov (ver https://tendimag.com/2018/06/12/chuva-dissolvente/). Mas que tem este concerto nasal a ver com uma companhia de seguros? Assim como os cirugiões seguram as mãos, urge meter no seguro o nariz do avô e do cão.
Marca: Geico. Título: Grandpa´s Nose Solo. Estados Unidos, Outubro 2018.
O anúncio Grandpa’s Nose Solo lembra a ópera O Nariz (1928), de Dmitri Shostakovich, inspirada no conto homónimo de Nicolai Gogol, publicado em 1836. Na Metamorfose (1915), de Franz Kafka, Gregor Samsa acorda transformado em insecto. Na ópera de Shostakovich, o Major Kovaliov acorda sem nariz. Para não tentar a desgraça, convém desligar os pesadelos ao acordar.
Dmitri Shostakovich. The giant tap-dancing noses scene. The Nose (1928). The Royal Opera.