Desorientação
Os contrapoderes andam agitados, incisivos e imaginativos. Das pulgas fazem elefantes. Com a arte da comichão e do coçar.
Distinguem-se várias propensões, umas, por exemplo, apostadas na correção e no resgate, outras na transgressão e na renovação. Para onde oscilamos? Coexistindo, algumas tendência podem dominar as demais. A dominação torna-se hegemónica quando os dominados adotam a linguagem dos dominantes. Em que estado estamos? Enfim, poderão os contrapoderes aspirar à hegemonia?

Convido, a despropósito, ao confronto de algumas músicas de duas bandas britânicas com registos divergentes: energia, senão entusiasmo, dos Orchestral Manoeuvres In The Dark, dos anos 1980, e apelo, senão súplica, dos London Grammar, dos anos 2010.
Imagem: René Magritte. Reprodução proíbida. 1937
Tecnocracia e (in)consistência política
No momento preciso em que as notas de dez e vinte euros caíam nas minhas mãos, tive a sensação física de que a tecnocracia de Bruxelas tomava o poder, e que o simples gesto de pegar nessas notas assinava o meu consentimento (Alain-Gérard Slama, Chroniques des peurs ordinaires : Journal de l’année 2002, 2003).
Um último apontamento sobre o “ideal tipo” de tecnocracia, assunto que, por sinal, pouco me entusiasma.

A ação tecnocrata preza, por princípio, o consenso entre os decisores. Importa que os objetivos e os métodos sejam incontroversos. A ausência de consenso interno insinua-se como uma pedra na engrenagem. Por isso os tecnocratas dispensam tanto tempo, energia e recursos em negociações preparatórias de “decisões conjuntas”. Não é descabido conjeturar que a dificuldade em alcançar consensos justifica a dualidade e a inconsistência das políticas tecnocráticas.
Extremam-se, por exemplo, as medidas para salvar o próximo do consumo do tabaco ativo ou passivo. Este empenho esmorece, porém, quando estão em causa outros vícios e dependências, não menos adversos à “saúde” individual e coletiva, tais como a droga, o álcool ou o jogo. É desconcertante este desconcerto!
Os sinos da consciência
O nu desapareceu praticamente da publicidade. O grotesco resiste. Os anúncios de consciencialização e sensibilização social proliferam. Oferecem-se como uma marca distintiva da nossa era. Visam interpelar e mobilizar os cidadãos, pelo pensamento, pelo sentimento e pela imagem, para problemas, causas e movimento de uma extrema diversidade quanto às origens, modalidades e finalidades. Segue uma mistura de exemplos recentes.
Inflação, poder de compra e desigualdades sociais

O Xerfi Canal (https://www.xerficanal.com/) é uma “revista online sobre o mundo da economia, a estratégia e a gestão das empresas”. Publica diariamente um comentário temático conciso e claro, hoje, 19.01.2023, dedicado à evolução recente da relação entre a inflação, o poder de compra e os rendimentos. O foco é a França, mas estou em crer que a análise é extensível aos demais países da União Europeia, incluindo Portugal. Partilho o vídeo, em francês, seguido por uma tradução livre e algo apressada.
“Sondagem após sondagem, o poder de compra ocupa o primeiro lugar nas preocupações dos franceses. Isso não tem nada de surpreendente uma vez que há meses que os agregados domésticos evidenciam uma degradação clara da sua situação financeira e não aguardam nenhuma melhoria a curto prazo. Os dados do INSEE [equivalente francês do INE] comprovam-no. É verdade que o rendimento real dos franceses embora ameaçado não sofre uma quebra expressiva. Convém equacioná-lo por unidade de consumo de modo a contemplar o fato de, por um lado, se repartir por um número crescente de habitantes e, por outro, de a vida em comum permitir, graças a economias de escala, reduzir determinadas despesas tais como as do alojamento. A evolução da dimensão dos agregados domésticos possui também alguma importância.
Sob esta luz, a tendência resulta menos favorável: o poder de compra baixou 0,6% no ano passado, o que não é muito. Recuando um pouco no tempo, o poder de compra por unidade de consumo mantém-se acima do nível anterior à crise e, recuando ainda mais, o refluxo de 2022 não tem comparação com o registado entre 2011 e 2013. A estatística é, mais uma vez, posta à prova pela experiência da vida quotidiana e surge desfasada da realidade vivida por muitos cidadãos.
Para explicar este hiato, importa reconsiderar o fator atual que mais pesa sobre o rendimento: a descolagem dos preços no consumo. Trata-se de uma inflação geradora de desigualdades profundas. A progressão dos preços não é homogénea e incide, nos dois últimos anos, num núcleo principal, a energia, e num núcleo secundário, a alimentação. Por seu turno, os aumentos dos preços dos produtos manufaturados e dos serviços têm revelado maior contenção. Acontece que a exposição dos agregados domésticos, bastante elevada e muito concentrada, varia significativamente consoante o respetivo nível de vida, devido à estrutura do consumo acentuadamente diferenciada.
A fatura energética é um dos elementos inerentes ao alojamento. Para os mais desfavorecidos representa acima de 6% das suas despesas totais contra menos de 4% no topo da escala. O mesmo sucede no que respeita à despesa alimentar cujo peso diminui à medida que o nível de vida aumenta. A situação pode resumir-se da seguinte forma: a baixo nível de vida, preços altos; a nível de vida alto, preços baixos. Acresce uma amplificação conforme se seja rural ou urbano, por causa da progressão dos preços dos carburantes. Não existe, portanto, apenas um mas vários poderes de compra consoante o grau de exposição ao lote dos consumos mais inflacionistas.
Mas este não é o único fator de desigualdade. Subsiste outro mais importante associado à parte do rendimento consagrada ao consumo, logo diretamente impactada pela subida dos preços: 20% dos agregados domésticos mais modestos gastam mais de 97% dos seus rendimentos contra menos de 72% dos mais favorecidos, uma diferença de 26 pontos. Dito de outro modo, a quase integralidade do rendimento dos mais pobres é alocada às despesas quotidianas; em contrapartida, os mais favorecidos conseguem poupar cerca de 30%. O impacto é duplo. Primeiro, os franceses do topo conseguem manter o seu nível de despesas modificando a sua dosagem entre consumo e poupança; segundo, uma proporção dos seus rendimentos é parcialmente preservada pela evolução da remuneração das suas poupanças. Ocorre o contrário quando nos posicionamos no baixo da escala: quando os rendimentos não acompanham até à vírgula, ou quase, a evolução dos preços do respetivo cabaz, torna-se então necessário efetuar cortes claros nas despesas quotidianas porque não existe, ou existe muito pouca, gordura para ajustamento. Apenas um euro em cada três de despesas comprimíveis para estes; um euro em dois para os outros.
Em suma, para uma parte crescente da população rematar o fim do mês acaba por ser impossível sem recurso ao crédito renovável, também chamado crédito permanente ou revolving, modalidade de pagamento, uma espécie de reserva, geralmente associada a um cartão de crédito, cada vez mais mobilizada pelos agrupamentos domésticos para as suas compras correntes, cujas pendências estão em forte crescimento, embora partam de uma base baixa. A outra solução consiste no recurso às contas a descoberto, tendência manifesta no aumento explosivo da curva das contas correntes de débitos que já ultrapassam os 10 bilhões de euros e representam mais de 5% do conjunto dos créditos ao consumo, alcançando o nível mais alto dos últimos 20 anos. Constituem, porém, práticas onerosas que comportam um peso acrescido no orçamento dos agregados domésticos mais modestos. O sobre endividamento, que não parou de recuar desde meados dos anos 2010, corre seriamente o risco, neste contexto, de regressar em força nos próximos meses, apesar de um poder de compra, em aparência, em estado de Resistência.” (Alexandre Mirlicourtois. Un pouvoir d’achat en chute libre? La réalité des chiffres. Xerfi Canal. 19.01.2023: https://wordpress.com/post/tendimag.com/55467. Consultado em 19.01.2023.
O Príncipe e a Fábula das Abelhas

“Pois, se bem considerado for tudo, sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à segurança e ao bem-estar” (Maquiavel. O Príncipe. 1532. Capítulo XV).

Acordei virado do avesso, os pés no lugar da cabeça, e uma insólita tentação de revisitar O Príncipe (1532), de Nicolau Maquiavel, e A Fábula das Abelhas (1714), de Bernard Mandeville. Atordoa-me um turbilhão de dúvidas e perplexidades.
O maquiavelismo é a forma mais maléfica de equacionar a política? E a missão do político ganha em ser aproximada da santidade?

Assediam-me fantasmas, pouco católicos, que subjugam as más consequências às boas intenções. Por exemplo: a perversidade apologética da honestidade; o cortejo de sentenças espetaculares antecedentes a investigações e julgamentos arrastados; o coro mediático como júri e a massa como patíbulo; os magistérios e os ministérios como mistérios previsíveis; a legislação do nojo político como nojo da legislação política; a realidade refém da aparência, a suspeição erigida em regra e a confiança em exceção; a vigilância das marionetas e a invisibilidade dos cordéis; a desgraça da política e a glória do oportunismo; a desvalorização dos cargos visando a excelência dos ocupantes; a navegação sem norte aspirando abarcar, assim, o mundo; o homem sem qualidades à espera do salvador iluminado; o povo a marinar no lume brando do populismo: e mais uma orgia de aporias e paradoxos gastos e recorrentes. Em suma, um simulacro transgénico que coteja contrários: puritanismo e irresponsabilidade, soberba e miopia, com inestimável incidência no destino da sociedade. Segue o poema A Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, merecedor de atual e redobrada consideração.
Translucidez
“Demasiada luz ofusca” (Blaise Pascal)

Esta breve e ligeira reflexão foi estimulada pela leitura do texto “Quando vigiado se torna vigilante”, de Pedro Rodrigues Costa, e por dois anúncios. No meu caso, os anúncios publicitários revelam-se, muitas vezes, fontes de inspiração. Os anúncios “Data Auction”, da Apple, e “Storytel’s 1954″, da agência B-Reel Stockholm, são acompanhados pelo vídeo musical ” Every Breath You Take”, dos Police.
Vivemos numa sociedade da informação, para utilizar a noção adotada, entre outros, por Alain Touraine (La Société post-industrielle, 1969) e Daniel Bell (The coming of post-industrial society, 1973). A informação ter-se-ia tornado recurso preponderante, cuja produção, posse e circulação passaria a marcar a configuração e a vida das sociedades contemporâneas. Este alcance exponenciou-se com o incremento das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação). A informação representa um poder cuja distribuição é desigual, não só em termos de posse e acessibilidade, mas também em termos de meios, modos e possibilidades de uso e mobilização. Desigualdade que parece não diminuir com o aumento da informação. Com a tendência para a generalização da vigilância, o abuso do escrutínio e o desígnio de transparência, todos passamos a vigilantes vigiados e validadores validados. Esta banalização da vigilância, caraterística dos regimes totalitários, insinua-se como uma ameaça aos regimes democráticos. Se uma sociedade totalmente transparente, sem privacidade e com escrutínio absoluto, não se assevera possível, perfila-se, não obstante, como limite para o qual propendem os totalitarismos. Constitui, aliás, sua vocação.
Anúncio quase perfeito

De qualquer ângulo, o anúncio “She/Abuelo”, da J&B Spain, é quase perfeito. Só não é perfeito porque a perfeição não existe.
Muros

Sempre os muros, mais graves quando não são percetíveis nem se esbatem com angariações de fundos.
It’s the age, stupid! Discriminação etária

Uma vez assente a poeira, gostaria de revisitar uma bolha mediática que, pela mão de políticos e da comunicação social, absorveu e preocupou os portugueses.
Jovem de 21 anos sai da faculdade para o Governo e vai ganhar quatro mil euros (Título de artigo, 08 nov, 2022: https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2022/11/08/jovem-de-21-anos-sai-da-faculdade-para-o-governo-e-vai-ganhar-quatro-mil-euros/307102/).
Aponta-se o dedo, mediático, a uma “anomalia”: suspeita-se de entorse político. Até que ponto é admissível um jovem de 21 anos ir para o governo ganhar quatro mil euros? Inverto a pergunta: por que é que não é possível? Por causa da idade, por ter 21 anos? Este é o nó da discórdia, os outros argumentos convocados ou são meros corolários ou falácias. Assumir que um jovem de 21 anos não deve ir para o governo ganhar 4 000 euros, brutos, é um preconceito entranhado que se traduz numa discriminação abusiva baseada na idade. E, no entanto, quanta obra notável da história da humanidade empreendida por pessoas com menos de 21 anos na música, na arte e na literatura, na ciência e na técnica, na economia, na política e na guerra! Tal como não existe raça ou género, também não existe idade que diminua, à partida, um ser humano. Esta penalização pela idade, por mais espontânea que seja, nem sempre é bem-intencionada. Neste caso, o denunciante é tão suspeito quanto o denunciado.
A experiência profissional oferece-se, de algum modo, como um corolário da idade, um avatar preconceituoso, logo nem sempre justificado, que dificulta o acesso dos mais jovens à vida ativa. Configura um preconceito considerar mais garantia para a assessoria de um órgão do governo a experiência profissional, seja ela qual for, em detrimento das experiências política e de gestão associativa, sejam elas quais forem.
Em suma, discriminação e preconceito de braço dado.
Jovem de 21 anos sai da faculdade para o Governo e vai ganhar quatro mil euros
(…) Um jovem de 21 anos que acabou recentemente o curso de Direito foi contratado para ser adjunto da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, sem ter qualquer experiência profissional.
Tiago Alberto Cunha vai ganhar cerca de quatro mil euros brutos por mês.
Segundo a nota biográfica publicada em Diário da República, Tiago acabou o curso de Direito no ano passado, na Universidade do Porto, e este ano ingressou no mestrado na Universidade de Lisboa, na mesma área.
Nas últimas autárquicas foi candidato à Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia pelo Partido Socialista, não tendo no entanto sido eleito. Ocupava o 32.º lugar da lista.
Entre 2020 e 2021, o agora adjunto de Mariana Vieira da Silva foi secretário-geral do Conselho Nacional de Estudantes de Direito (CNED).
Faz também parte da Assmblei de Freguesia de Vilar de Andorinho, em Vila Nova de Gaia.”