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A razão e o coração

“Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los (…) E é tão ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus primeiros princípios, para querer consentir neles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para querer recebê-las.” (Pensamentos, 1669, póstumo; artigo XXII: I)

Christian Schloe. Equilíbrio (partilha de Almerinda Van Der Giezen)

Temos dedicado alguma atenção a fenómenos de mistura cultural, tais como a orientalização do tango, do flamengo ou do fado. Hoje, é a vez da “arabização da canção francesa”, em franca expansão. As “chansons orientales”, como lhes chamam os gauleses, trepam ao topo das tabelas de vendas.

A relação entre a razão e o coração é complicada. A canção Le Coeur et la Raison realça o respetivo confronto. Lynda Sherazade, francesa de origem argelina, é a compositora e intérprete. A reedição em 2022 do primeiro álbum, Papillon, foi disco de platina e o último, Un peu de moi, lançado em abril de 2023, ascendeu ao nono lugar da tabela de vendas.

Goste-se ou não, estes híbridos têm o condão de nos aliviar do enjoo proporcionado por uma navegação cada vez mais orientada por integralismos e maniqueísmos.

Lynda Sherazade. Le Coeur et la Raison. Un peu de moi. 2023

Le Coeur et la Raison

J’ai laissé mon cœur parler
Lui qui n’est pas facile
J’l’ai laissé faire ce qu’il voulait
Mais il fonce tout droit comme un imbécile
Oui, il s’est mis à nu
Il croit toujours au grand amour comme dans les films
Il oublie ses blessures
Il s’attend jamais au pire

Quand il aime, il est dépendant, ce fou devient accro
Quand il aime, il est aveugle, il efface tous les défauts
Quand il aime, il est égoïste, n’avance qu’en solo
Quand c’est trop tard, c’est la raison qui soigne tous les bobos

Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable

J’ai laissé la raison parler
Elle qui ne lâche rien
N’attend jamais d’être blessée
Elle, elle pense au lendemain
Agit à contre-cœur parfois
Pour éviter les erreurs
Elle connaît sa valeur
Donc elle sécurise le cœur

Elle est forte et elle fait attention à tout
Elle supporte, elle encaisse même tous les coups
Elle le sait, ouais, souvent les histoires sont sans issue
Quand elle s’emporte, le cœur est toujours là au rendez-vous

Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Il faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable

Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Oui, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison

(Lynda Sherazade)

Senxualidade

A música e a coreografia estão especialmente vocacionadas para produzir ressonâncias com intensas vibrações. Os vídeos musicais de Nathalie Cardone, francesa de mãe espanhola e pai italiano, apostam num toque de senxualidade, apropriado para uma noite deveras longa.

Nathalie Cardone. Mon Ange. Nathalie Cardone. 1999
Nathalie Cardone. Baïla si. Nathalie Cardone. 1999
Nathalie Cardone. Populaire. Nathalie Cardone. 1999

O vício de descobrir

Salvador Dali. A Descoberta da América por Cristóvão Colombo. 1959

Descobrir, descobrir, descobrir… Não-sei-quês e quase-nadas inesperados. Descobrir sem repouso. Dias sonhados e noites despertas, a fio, a escapar à sombra. Só ou acompanhado, mas a sair de si, desamarrar, derivar e perder-se. Distorcer ecos e ressonâncias. Rasgar o selo da perfeição. Descobrir e descobrir-se, exorbitar mesmo quando o corpo encolhe. E agradecer. Hoje, a tendência aponta para encobrir e desencobrir, desvendar, o que é diferente. Uma coisa é um rio turbulento, outra um pântano turvo. Descubra, descubra-se [salvo seja] e não hesite em abraçar o outro, manancial de surpresas, como a inquieta mas discreta guitarra de Juan José Robles. A música é um cúmplice infinito.

Juan José Robles. El Árbol Torcido. In-Quietud. 2019
Juan José Robles. Auroro. In-Quietud. 2019
Juan José Robles. Polka Ibérica. In-Quietud. 2019

Surf

Levantar ondas e surfar é o que está a dar. Na política como no resto.

Jack Johnson, surfista e cineasta, é sobretudo conhecido como cantor e compositor, com sete álbuns publicados (a eles haveremos de voltar). Formado em cinema, realizou, com Chris Malloy, o documentário Thicker Than Water (200) que convoca “a alma do surf (…) um poema visual [que] mostra as diversas vertentes do surf e as virtualidades da Irlanda, Índia, Austrália, Indonésia e Havaí para promover a sensação de ser surfista” ((https://surfthegreats.org/blogs/journal/5-surf-movies-you-can-stream-for-free). Estas músicas integram a banda sonora desse documentário.

Jack Johnson. Holes to Love. Thicker Than Water. 2003
Natural Calamity. Dark Waters & Stars. Thicker Than Water. 2003
Finley Quaye. Even After All. Thicker Than Water. 2003

Re-vira-voltas. Sílvia Pérez Cruz

Com o visual pensamos, com o acústico nos sentimos

A vida é feita de viragens. Quando regressei a Portugal nos anos oitenta, a tónica passou de estimulado para estimulante; com o advento do milénio, a vocação académica emagreceu para profissão universitária; e, recentemente, a devoção à sociologia, acompanhada pela música e pela arte, a devoção à música e à arte, acompanhada pela sociologia.

Durante a infância, a sombra da Espanha pairava por todos os cantos. O olhar para lá se estendia e a eletricidade de lá provinha. O contrabando ia e vinha. Até o apito do comboio da outra margem anunciava o tempo: consoante se ouvia mais ou menos, assim faria chuva ou sol. A televisão era a espanhola. Para assistir a um jogo de futebol com equipas portuguesas, deslocávamo-nos a Castro Laboreiro. Pelo menos, em duas novidades, o progresso chegou primeiro ao monte do que à ribeira: nas antenas e nas eólicas. Tenho raízes transfronteiriças, regadas com calda gaulesa. No entanto, o Tendências do Imaginário tem-se dedicado pouco à música destes países. Nunca é tarde para emendar. Por vias travessas, reencontrei a música de Sílvia Pérez Cruz, mui rara compositora e intérprete catalã.

“Sílvia Pérez Cruz é uma grande voz. Diria mais! É uma grande voz que sabe cantar. “Pequeño Vals Vienés” baseia-se na música que Leonard Cohen compôs (Take This Waltz, 1986) para o poema Pequeño Vals Vienés, de Federico García Lorca. Os gostos tendem a cruzar-se. São as tais afinidades electivas. Ontem. Leonard Cohen, hoje, Sílvia Pérez Cruz. Dancemos, não de lado, mas de frente” (https://tendimag.com/2016/03/29/valsa/).

Para tomar o gosto, meia dúzia de canções, dispostas por ordem cronológica.

Sílvia Pérez Cruz (c/ Temps perdut). Veinte años. Passeig Per La Memoria. 2001
Sílvia Pérez Cruz (c/ Raül Fernández). Gallo rojo, gallo negro. Granada. 2014
Sílvia Pérez Cruz. Duérmete. Domus. 2016.
Sílvia Pérez Cruz. Vestida de Nit. Vestida de Nit. 2017
Sílvia Pérez Cruz (c/ Rozalén). Amor del Bo. Matriz, 2022
Sílvia Pérez Cruz. Nombrar es imposible. Nombrar es imposible (Mov.5: Renacimiento). 2023

O trem da outra margem

Monte de Santa Tecla

“Nós somos os fillos lingüísticos das nosas criadas, as criadas que nos criaron” (Xavier Alcalá, escritor amigo de Andrés do Barro).

“O Tren”, galego; “O Tren”, castelán… O galego, todo proibido. Ou seja, tinha todo grabado. Enton paseina poñendo “O Trem”, portugués… E pasou! (Andrés do Barro sobre a aprovação de “O Tren” pela censura).

Encostado à Galiza, do Monte de Santa Tecla sopram memórias húmidas como as canções de Andrés do Barro (1947-1989) dedicadas à emigração e à separação: “O Tren”, “Teño Saudade”, “Adeus Adeus”… Andrés do Barro foi um dos primeiros músicos a cantar em galego e “O Tren” a única canção do País em língua não castelhana a conquistar o topo de vendas. Algumas composições lembram os contemporâneos Aguaviva e Patxi Andion, outras os anos sessenta e a música tradicional galega.

Seguem cinco canções de Andrés do Barro. Aconselho, ainda, o documentário “Andrés do Barro. No Bico un Cantar”, da Televisión de Galícia, emitido no dia 9 de janeiro de 2013, cujo endereço é http://www.crtvg.es/tvg/a-carta/andres-do-barro?t=1089

Andrés do Barro. Adeus Adeus. Me llamo Andrés Lapique do Barro. 1970
Andrés do Barro. Teño Saudade. O Tren. 1970
Andrés do Barro. Meu Amor. O Tren. 1970
Andrés do Barro. O Tren. O Tren. 1970. Do filme En la red de mi canción, de 1971
Andrés do Barro. Amor D.F. O Tren. 1970

Rendimentos marginais. The Slow Show

A virtude da errância, de errar perdidamente, reside em poder acertar no imprevisto, acrescentar, por ventura, um pouco de prazer ao prazer. Os Slow Show lembram-me, com ou sem razão, Roger Waters.

The Slow Show. Low (with Hallé Youth Choir). Lust and Learn. 2019
The Slow Show. Dresden. White Water. 2015. Live at Hallé St. Peter’s, Manchester, 2014
The Slow Show. Break Today. Dream Darling. 2016. Live at Haldern Pop Festival, 2015
The Slow Show. Rare Bird. STILL LIFE. 2022
The Slow Show. Blinking. STILL LIFE. 2022

Histórias de Amor

“Por que realizar uma obra, quando é tão belo somente sonhá-la?” (Pier Paolo Pasolini, Decameron, 1970). [Seja! Mas, em matéria de corpos, entre o calor sólido e o fascínio gasoso…]

Continuam a soprar ventos latinos. Desta vez, duas versões em francês de “histórias de um amor”, que não superam os originais hispânicos. Uma do grupo francês French Latino, pela orquestração, a outra da romena Cristina Dascalescu (canta fados portugueses), pelo vídeo.

French Latino. Historia de un amor. Guarda la Esperanza. 2009
Cristina Dascalescu. Histoire d’un amour. Com Maria Filali & Özgür Karahan. 2019

Inteligência Artificial, Machine Learning e composição musical

Pedro Costa, doutorado em Sociologia, investigador do CECS – Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, acaba de publicar o artigo A Inteligência Artificial e Seus Herdeiros no blogue Margens (https://tendimag.com/?p=55533). Um ensaio sobre a Inteligência Artificial, o Machine Learning e o futuro da criatividade, designadamente no que respeita à música. Pertinente, oportuno, bem escrito, fundamentado e criteriosamente ilustrado, trata-se de um texto raro, subtil e ousado. Aproveito para acrescentar quatro vídeos excelentes relativos a outras tantas músicas emblemáticas da relação entre o homem, a máquina e as emoções: The Robots (1978), dos Kraftwerk; Wellcome To The Machine (1975), dos Pink Floyd; All Is Full Of Love (1997), da Bjork; e How Does It Make You Feel (2001), dos Air.

Kraftwerk. The Robots. Die Mensch-Maschine. 1978. Ao vivo na Casa da Música (Porto), 20.04.2015
Pink Floyd. Wellcome To The Machine. Wish You Were Here. 1975 / Animação por Maxime Tiberghien, Sylvain Favre & Maxime Hacquard, 2019
Bjork. All Is Full Of Love. 1997. Vídeo musical realizado por Chris Cunningham, 1999
Air. How Does It Make You Feel. 10 000 Hz Legend. 2001

A Caverna dos Fantasmas de Estimação. The Cinematic Orchestra

Numa poltrona ampla, perto de uma lareira abençoada, pode-se viajar, no inverno, até ao infinito (Hippolyte Laroche)

Há anos que não me expunha assim, tão fora de casa e tão fora de mim. Deixei o mundo penetrar até aos ossos e a expressão soltar-se. Como desfecho, sinto-me massajado, amassado e moído. Surpreendo-me, por drástica que tenha sido a vacina, a desejar o torpor cálido da caverna. Com a visita desta frente nórdica, frio apenas tolero o da música, compassada, suave, minimalista… Etérea!

Por exemplo, a trompete do norueguês Nils Petter Molvær. Ao procurar nos discos, tropecei nos The Cinematic Orchestra. Afins, também servem. Talvez não sejam do agrado de todos, mas não me inibo em partilhar coisas que colidem com o gosto alheio, apenas não partilho aquelas de que não gosto. Acontece colocar música a pensar numa única pessoa, que, porventura, não vejo há uma eternidade e decerto não voltarei a ver. O suficiente. Fantasmas de estimação!

The Cinematic Orchestra – ‘To Build A Home’. Ma Fleur, 2007. Filme Step Up Revolution. 2012.
The Cinematic Orchestra – Arrival of The Birds & Transformation. Crimson Wings – Mystery of the Flamingos. 2008. Interpretado com a London Metropolitan Orchestra
The Cinematic Orchestra – Wait For Now (feat. Tawiah). Wait For Now. To Believe (Remixes), 2020
The Cinematic Orchestra – To Believe (feat. Moses Sumney). To Believe. 2019