Avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Relatórios

O blogue Margens acaba de publicar uma análise das repercussões da Capital Europeia da Cultura em 2012 no desenvolvimento do concelho de Guimarães, volvidos dez anos, da autoria de Samuel Silva, que integrou a equipa, que coordenei, do Instituto de Ciências Sociais responsável, a seu tempo, pela avaliação dos impactos sociais e culturais do evento. Pelo interesse, oportunidade e lucidez, recomendo o artigo E tudo se transforma? (https://margens.blog/2023/04/15/e-tudo-se-transforma/).
Aproveito o ensejo para partilhar dois relatórios, em português e inglês, da avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, publicados em 2012 e 2013: intercalar (fevereiro de 2013) e final (setembro de 2013).
Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Intercalar – Fevereiro 2013 – Universidade do Minho:
Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Final – Setembro 2013 – Universidade do Minho:
Inflação, poder de compra e desigualdades sociais

O Xerfi Canal (https://www.xerficanal.com/) é uma “revista online sobre o mundo da economia, a estratégia e a gestão das empresas”. Publica diariamente um comentário temático conciso e claro, hoje, 19.01.2023, dedicado à evolução recente da relação entre a inflação, o poder de compra e os rendimentos. O foco é a França, mas estou em crer que a análise é extensível aos demais países da União Europeia, incluindo Portugal. Partilho o vídeo, em francês, seguido por uma tradução livre e algo apressada.
“Sondagem após sondagem, o poder de compra ocupa o primeiro lugar nas preocupações dos franceses. Isso não tem nada de surpreendente uma vez que há meses que os agregados domésticos evidenciam uma degradação clara da sua situação financeira e não aguardam nenhuma melhoria a curto prazo. Os dados do INSEE [equivalente francês do INE] comprovam-no. É verdade que o rendimento real dos franceses embora ameaçado não sofre uma quebra expressiva. Convém equacioná-lo por unidade de consumo de modo a contemplar o fato de, por um lado, se repartir por um número crescente de habitantes e, por outro, de a vida em comum permitir, graças a economias de escala, reduzir determinadas despesas tais como as do alojamento. A evolução da dimensão dos agregados domésticos possui também alguma importância.
Sob esta luz, a tendência resulta menos favorável: o poder de compra baixou 0,6% no ano passado, o que não é muito. Recuando um pouco no tempo, o poder de compra por unidade de consumo mantém-se acima do nível anterior à crise e, recuando ainda mais, o refluxo de 2022 não tem comparação com o registado entre 2011 e 2013. A estatística é, mais uma vez, posta à prova pela experiência da vida quotidiana e surge desfasada da realidade vivida por muitos cidadãos.
Para explicar este hiato, importa reconsiderar o fator atual que mais pesa sobre o rendimento: a descolagem dos preços no consumo. Trata-se de uma inflação geradora de desigualdades profundas. A progressão dos preços não é homogénea e incide, nos dois últimos anos, num núcleo principal, a energia, e num núcleo secundário, a alimentação. Por seu turno, os aumentos dos preços dos produtos manufaturados e dos serviços têm revelado maior contenção. Acontece que a exposição dos agregados domésticos, bastante elevada e muito concentrada, varia significativamente consoante o respetivo nível de vida, devido à estrutura do consumo acentuadamente diferenciada.
A fatura energética é um dos elementos inerentes ao alojamento. Para os mais desfavorecidos representa acima de 6% das suas despesas totais contra menos de 4% no topo da escala. O mesmo sucede no que respeita à despesa alimentar cujo peso diminui à medida que o nível de vida aumenta. A situação pode resumir-se da seguinte forma: a baixo nível de vida, preços altos; a nível de vida alto, preços baixos. Acresce uma amplificação conforme se seja rural ou urbano, por causa da progressão dos preços dos carburantes. Não existe, portanto, apenas um mas vários poderes de compra consoante o grau de exposição ao lote dos consumos mais inflacionistas.
Mas este não é o único fator de desigualdade. Subsiste outro mais importante associado à parte do rendimento consagrada ao consumo, logo diretamente impactada pela subida dos preços: 20% dos agregados domésticos mais modestos gastam mais de 97% dos seus rendimentos contra menos de 72% dos mais favorecidos, uma diferença de 26 pontos. Dito de outro modo, a quase integralidade do rendimento dos mais pobres é alocada às despesas quotidianas; em contrapartida, os mais favorecidos conseguem poupar cerca de 30%. O impacto é duplo. Primeiro, os franceses do topo conseguem manter o seu nível de despesas modificando a sua dosagem entre consumo e poupança; segundo, uma proporção dos seus rendimentos é parcialmente preservada pela evolução da remuneração das suas poupanças. Ocorre o contrário quando nos posicionamos no baixo da escala: quando os rendimentos não acompanham até à vírgula, ou quase, a evolução dos preços do respetivo cabaz, torna-se então necessário efetuar cortes claros nas despesas quotidianas porque não existe, ou existe muito pouca, gordura para ajustamento. Apenas um euro em cada três de despesas comprimíveis para estes; um euro em dois para os outros.
Em suma, para uma parte crescente da população rematar o fim do mês acaba por ser impossível sem recurso ao crédito renovável, também chamado crédito permanente ou revolving, modalidade de pagamento, uma espécie de reserva, geralmente associada a um cartão de crédito, cada vez mais mobilizada pelos agrupamentos domésticos para as suas compras correntes, cujas pendências estão em forte crescimento, embora partam de uma base baixa. A outra solução consiste no recurso às contas a descoberto, tendência manifesta no aumento explosivo da curva das contas correntes de débitos que já ultrapassam os 10 bilhões de euros e representam mais de 5% do conjunto dos créditos ao consumo, alcançando o nível mais alto dos últimos 20 anos. Constituem, porém, práticas onerosas que comportam um peso acrescido no orçamento dos agregados domésticos mais modestos. O sobre endividamento, que não parou de recuar desde meados dos anos 2010, corre seriamente o risco, neste contexto, de regressar em força nos próximos meses, apesar de um poder de compra, em aparência, em estado de Resistência.” (Alexandre Mirlicourtois. Un pouvoir d’achat en chute libre? La réalité des chiffres. Xerfi Canal. 19.01.2023: https://wordpress.com/post/tendimag.com/55467. Consultado em 19.01.2023.
O Príncipe e a Fábula das Abelhas

“Pois, se bem considerado for tudo, sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à segurança e ao bem-estar” (Maquiavel. O Príncipe. 1532. Capítulo XV).

Acordei virado do avesso, os pés no lugar da cabeça, e uma insólita tentação de revisitar O Príncipe (1532), de Nicolau Maquiavel, e A Fábula das Abelhas (1714), de Bernard Mandeville. Atordoa-me um turbilhão de dúvidas e perplexidades.
O maquiavelismo é a forma mais maléfica de equacionar a política? E a missão do político ganha em ser aproximada da santidade?

Assediam-me fantasmas, pouco católicos, que subjugam as más consequências às boas intenções. Por exemplo: a perversidade apologética da honestidade; o cortejo de sentenças espetaculares antecedentes a investigações e julgamentos arrastados; o coro mediático como júri e a massa como patíbulo; os magistérios e os ministérios como mistérios previsíveis; a legislação do nojo político como nojo da legislação política; a realidade refém da aparência, a suspeição erigida em regra e a confiança em exceção; a vigilância das marionetas e a invisibilidade dos cordéis; a desgraça da política e a glória do oportunismo; a desvalorização dos cargos visando a excelência dos ocupantes; a navegação sem norte aspirando abarcar, assim, o mundo; o homem sem qualidades à espera do salvador iluminado; o povo a marinar no lume brando do populismo: e mais uma orgia de aporias e paradoxos gastos e recorrentes. Em suma, um simulacro transgénico que coteja contrários: puritanismo e irresponsabilidade, soberba e miopia, com inestimável incidência no destino da sociedade. Segue o poema A Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, merecedor de atual e redobrada consideração.
It’s the age, stupid! Discriminação etária

Uma vez assente a poeira, gostaria de revisitar uma bolha mediática que, pela mão de políticos e da comunicação social, absorveu e preocupou os portugueses.
Jovem de 21 anos sai da faculdade para o Governo e vai ganhar quatro mil euros (Título de artigo, 08 nov, 2022: https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2022/11/08/jovem-de-21-anos-sai-da-faculdade-para-o-governo-e-vai-ganhar-quatro-mil-euros/307102/).
Aponta-se o dedo, mediático, a uma “anomalia”: suspeita-se de entorse político. Até que ponto é admissível um jovem de 21 anos ir para o governo ganhar quatro mil euros? Inverto a pergunta: por que é que não é possível? Por causa da idade, por ter 21 anos? Este é o nó da discórdia, os outros argumentos convocados ou são meros corolários ou falácias. Assumir que um jovem de 21 anos não deve ir para o governo ganhar 4 000 euros, brutos, é um preconceito entranhado que se traduz numa discriminação abusiva baseada na idade. E, no entanto, quanta obra notável da história da humanidade empreendida por pessoas com menos de 21 anos na música, na arte e na literatura, na ciência e na técnica, na economia, na política e na guerra! Tal como não existe raça ou género, também não existe idade que diminua, à partida, um ser humano. Esta penalização pela idade, por mais espontânea que seja, nem sempre é bem-intencionada. Neste caso, o denunciante é tão suspeito quanto o denunciado.
A experiência profissional oferece-se, de algum modo, como um corolário da idade, um avatar preconceituoso, logo nem sempre justificado, que dificulta o acesso dos mais jovens à vida ativa. Configura um preconceito considerar mais garantia para a assessoria de um órgão do governo a experiência profissional, seja ela qual for, em detrimento das experiências política e de gestão associativa, sejam elas quais forem.
Em suma, discriminação e preconceito de braço dado.
Jovem de 21 anos sai da faculdade para o Governo e vai ganhar quatro mil euros
(…) Um jovem de 21 anos que acabou recentemente o curso de Direito foi contratado para ser adjunto da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, sem ter qualquer experiência profissional.
Tiago Alberto Cunha vai ganhar cerca de quatro mil euros brutos por mês.
Segundo a nota biográfica publicada em Diário da República, Tiago acabou o curso de Direito no ano passado, na Universidade do Porto, e este ano ingressou no mestrado na Universidade de Lisboa, na mesma área.
Nas últimas autárquicas foi candidato à Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia pelo Partido Socialista, não tendo no entanto sido eleito. Ocupava o 32.º lugar da lista.
Entre 2020 e 2021, o agora adjunto de Mariana Vieira da Silva foi secretário-geral do Conselho Nacional de Estudantes de Direito (CNED).
Faz também parte da Assmblei de Freguesia de Vilar de Andorinho, em Vila Nova de Gaia.”
Comprar nada como investimento

O anúncio The burger that could be, da McDonald ‘s Spain é um bom exemplo de um elevado sentido de oportunidade e da boa arte de a saber aproveitar. Trata-se de uma campanha que adota um estratagema que está a abrir caminho: convocar, ao mesmo tempo, o ecrã e a vida, interpelar tanto o espetador como o ator, numa mobilização em torno de uma causa emotiva emocionante e inclusiva emergente. Mais um caso de uma iniciativa de consciencialização interessada.
Maternidade. O cordão umbilical e o ursinho de peluche

“Na UE, as mulheres recebem em média 14,1% menos por hora do que os homens. Isso equivale a quase dois meses de salário. É por isso que a Comissão Europeia marca o dia 10 de novembro como um dia simbólico para aumentar a conscientização de que as trabalhadoras na Europa ainda ganham, em média, menos do que seus colegas do sexo masculino (Comissão Europeia – Dia de igualdade salarial: https://ec.europa.eu/info/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/equal-pay-day_en; acedido em 11-08-2022).
Entretanto têm ocorrido alguns progressos no cuidar das crianças. O ursinho de peluche Ector, detetor de fumo de tabaco, parece ser um deles. Aproveito para acrescentar a canção Woman, de John Lennon.
A relação com a pobreza. Uma questão de palavras

“Conhece-se a ave pelo seu ninho. E pelas palavras o espírito” (Provérbio turco).
Sério e crítico, este texto desvia-se do meu estilo atual. Prefiro propor jovialmente a contrapor categoricamente. Pertenço, porém, a um fórum de cidadania pela erradicação da pobreza e as circunstâncias assim o ditaram. Não se trata, porém, de um olhar sobranceiro e distanciado. A crítica é autocrítica: a linguagem visada é também a minha. O argumento resume-se a uma meia verdade que aspira apenas a despertar alguma reflexão. [Para uma caraterização da figura do crítico, recomendo a leitura do capítulo “Vestir a personagem” do livro A construção da Personagem, de Constantin Stanilavski (1ª edição em 1949, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 35-48), autor que, embora da área do teatro, marcou profundamente a minha formação como sociólogo].
Na parte final do artigo, junto o pdf do referido capítulo, Vestir a Personagem, do livro A Construção da Personagem, de Constantin Stanislavski . Para compensar a austeridade do meu texto, acrescento o filme The Kid, de Charles Chaplin, estreado em 1921. Por último, assumindo o texto como de domínio público, com permissão para descarga e partilha, disponibilizo o respetivo pdf.
As palavras são importantes. Pedem atenção, sobretudo quando designam uma instituição ou um movimento. O valor de uma palavra não se resume à intenção inicial, abrange, também, as interpretações e os usos que suscita, as suas ressonâncias semânticas e práticas. As palavras não dizem apenas a posição de quem as assume, sugerem ou denunciam a sua disposição. E têm efeitos, alguns inesperados e indesejados. Convém cuidar das palavras. Uma simples palavra pode condensar toda uma postura, todo um programa. Recorde-se que as grandes querelas religiosas, políticas, filosóficas e estéticas da história da humanidade gravitaram em torno de “duas ou três” palavras.
Habituámo-nos a expressões tais como anti-pobreza, combate à pobreza e luta contra a pobreza. Quais são os pressupostos inerentes e as consequências plausíveis? O que dizemos quando as pronunciamos e o que fazemos quando as dizemos?

A noção de “luta” implica um protagonista e um antagonista. Neste caso, o alvo é a pobreza. Como a definir e delimitar, dar-lhe corpo e sentido? Pobreza é um substantivo demasiado amplo. Originalmente, aludia à pobreza do solo. Hoje, pode até incluir a pobreza de espírito. Remete para uma privação. Do ponto de vista económico e político, para uma carência de bens (e.g. alimentação) e recursos (e.g. rendimentos) e, eventualmente, para a exclusão social. Embora exista uma aceção absoluta, a “pobreza” é normalmente assumida como uma situação relativa. É-se pobre em comparação com os demais, os ricos e os remediados, abaixo de um determinado patamar, o “limiar de pobreza”, que varia no tempo e de sociedade para sociedade. Se considerarmos, como o convenciona a União Europeia, que uma família pobre é aquela cujo rendimento é inferior a “60% da mediana do rendimento por adulto equivalente de cada país”, então nunca deixará de haver pobres, quando muito pode atenuar-se a “pobreza extrema”.
Segundo os dicionários, a pobreza é um estado e uma classe: um estado a que corresponde uma classe: os pobres. Embora associadas, a pobreza enquanto estado é distinta da pobreza enquanto classe. À semelhança da saúde, em que combater a doença não significa combater os doentes, lutar contra a pobreza não implica lutar contra os pobres. Na melhor das hipóteses, “lutar contra a pobreza” pode até presumir “lutar pelos pobres contra a pobreza”.
A pobreza como classe não constitui um grupo. Não possui textura nem espessura, tão pouco identidade, afinidades e comportamentos próprios. É uma categoria construída a partir de variáveis, indicadores e índices estatísticos. Só assim pode, por exemplo, sustentar-se que, em Portugal, “18,4% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2020, mais 2,2 pontos percentuais (p.p.) do que em 2019” (https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=473574196&DESTAQUESmodo=2). As pessoas são rotuladas e medidas, individual, abstrata e isoladamente. O conjunto é heterogéneo, fragmentado e descosido, compondo uma manta de condições, culturas e estilos de vida. O que há de comum entre uma pessoa nascida num bairro social e um novo pobre? Entre imigrantes provenientes de Cabo Verde, de Marrocos, da Ucrânia, da Roménia ou do Brasil? Entre um jovem desempregado urbano e um idoso isolado rural? Entre as diversas etnias? Apetece exagerar defendendo que, não obstante reduzirem-se a um quinto da população, não se desenham menos diferenças entre os pobres do que entre os remediados. Na gíria académica, a perceção da pobreza como uma massa consubstancia dialética a menos e reificação a mais. Este misto de atomização e confusão favorece o risco de desnorte e inadequação na compreensão e nas iniciativas referentes aos mundos da pobreza.

Até agora encaramos a construção da figura do antagonista da “luta”: a pobreza. Cumpre indagar como o recurso a expressões tais como anti pobreza, luta contra a pobreza ou combate à pobreza afeta a relação entre protagonistas (os sujeitos ou promotores da luta) e antagonistas (seus objetos ou destinatários). A noção de luta subentende uma separação das partes extremadas em dois lados opostos: uma “bipolaridade”. Propicia também a focalização no alvo, no segmento visado. Esta separação tende a ofuscar e a enviesar o olhar e a ação com consequências decisivas. Elenquemos alguns riscos:
a) Subestimar a interação existente entre a sociedade e os mundos da pobreza. Se é verdade que existem fatores endógenos, boa parte das causas, dos mecanismos e dos processos geradores, reprodutores e multiplicadores da pobreza residem fora dos seus próprios mundos. Pretender superar ou diminuir a pobreza sem os contemplar representa, no mínimo, uma falácia;
b) A pobreza e a sociedade envolvente não estão apenas interligadas, são interdependentes. Os mundos da pobreza contribuem para sociedade a vários títulos: demográficos, económicos, sociais, políticos, culturais e simbólicos. Menosprezar esta interdependência expõe o pensamento e a ação à parcialidade, à unidireccionalidade, à disfunção e, até, à injustiça;
c) A separação dos intervenientes e a focalização nos mundos da pobreza dificultam a transversalidade, a cooperação, o diálogo e a partilha em todas as fases: diagnóstico, planeamento, mobilização, implementação, avaliação e partilha. Acentua a propensão para agir para e sobre os pobres em vez de agir com eles;
d) A abordagem tende a pautar-se e a ser formulada pela negativa: os pobres não são definidos pelo que são mas pelo que não são, preponderantemente, não têm. Na verdade, os mundos da pobreza encerram realidades consistentes, complexas, heterogéneas e específicas, que ganham em ser equacionadas por si mesmas, de um modo neutro ou positivo. Ilustram-no estudos de autores, tais como Oscar Lewis (Os Filhos de Sanchez, Moraes Editores, 1970) ou Richard Hoggart (As utilizações da cultura, Editorial Presença, 1973), sobre as “(sub)culturas da pobreza”. Basta, porém, um mínimo de interação e convívio com a realidade da pobreza para o comprovar. Assumindo o princípio do relativismo cultural, os padrões, os rituais, as normas e os valores caraterísticos das (sub)culturas da pobreza merecem o mesmo respeito que outras (sub)culturas, por exemplo de classe, étnicas, juvenis ou urbanas. Este lapso no entendimento concorre para o desfasamento e o desperdício de recursos, dinâmicas e potencialidades;
e) Expressões como “anti-pobreza” ou “luta contra a pobreza” enfermam de um efeito de depreciação simbólica da pobreza enquanto classe, cuja carga estigmatizante se acentua no caso da expressão “erradicação da pobreza”. Ousemos colocar o outro na nossa pele: qual seria o sentimento dos professores universitários confrontados com um movimento externo, composto, digamos, por políticos e tecnocratas, que se auto propõe combater e, inclusivamente, erradicar a academia para bem, para a promoção, dos académicos?
f) Lutar contra a pobreza adquire os contornos de uma nova cruzada, tendencialmente maniqueísta, do bem contra o mal. Por mais que esta “missão” transborde de motivação e interesse, para o desígnio específico da diminuição da pobreza assevera-se mais relevante e propositada a humildade do que o empolgamento, especialmente quando alimentado por um cortejo de metáforas bélicas ancoradas num determinado imaginário histórico. A humildade sobressai como uma atitude imprescindível que expressões como combate ou luta contra a pobreza não apadrinham nem estimulam.
“O que nós fazemos pelos pobres é uma gota de água no oceano: mas se o não fizéssemos, se não deitássemos no oceano essa gota, ao oceano faltaria algo, faltar-lhe-ia essa gota” (Madre Teresa de Calcutá).
Esta desconstrução de palavras de ordem tais como anti pobreza, luta contra a pobreza, combate à pobreza e erradicação da pobreza pode revelar-se, na prática, insensata, inconsequente e infundada, fruto de uma hipersensibilidade à receção e aos usos atribuídos às palavras e às denominações. Mesmo na hipótese de lhe assistir alguma razão, não se estará, mais uma vez, a bater com a cabeça contra a parede? Estas expressões são cunhadas e consagradas pelas instituições mais poderosas e influentes do planeta. Com certeza, mas os novelos costumam desfiar-se por uma ponta. E as palavras mestres têm pés de barro. Não faltam exemplos de designações “indiscutíveis” subitamente abandonadas e menosprezadas. Nas últimas décadas, quantos batismos não se sucederam a propósito, por exemplo, da velhice, dos países menos desenvolvidos, do trabalho social ou das orientações sexuais?

A consulta dos resumos de apresentação das “25 maiores organizações dedicadas à luta contra a pobreza” (ver: https://www.humanrightscareers.com/issues/organizations-dedicated-to-fight-poverty/) sugere que, a contracorrente de expressões “clássicas” tais como lutar, combater e erradicar (frequentemente circunscritas à “pobreza extrema”), emergem e consolidam-se formulações alternativas tais como superar (overcome), atenuar (attenuate), apoiar (support), capacitar (empower), melhorar a qualidade de vida (improve the standard of living) e incluir. Chegou, talvez, o momento de adotar expressões mais positivas e pró-ativas (por e não contra) inspiradas num arco semântico distinto: apoio, superação, capacitação, partilha, qualidade de vida, cidadania, dignidade e inclusão social.
Alterações climáticas e crise na Idade Média

“A Grande fome de 1315-1317 na Europa (também datada entre 1315-1322) foi a primeira de uma série de crises sociais em larga escala que atingiram a Europa no início do século XIV, causando milhões de mortes por um grande número de anos, marcando assim o fim de um período anterior de prosperidade no continente durante o século XIII. Iniciando com um tempo ruim na primavera de 1315, a alteração climatológica acabou por provocar quebras universais das colheitas entre a primavera de 1315, que se acentuaram no verão de 1316 até ao verão de 1317. A Europa não se recuperou totalmente até 1322. Foi um período marcado por níveis extremos de crimes, doenças, mortes em massa e infanticídio. Houve consequências para a Igreja Católica, os Estados nacionais, a demografia do continente a sociedade europeia como um todo. A grande fome de 1315 contribuiu para potencializar as futuras calamidades do século XIV. (…) Para a maioria das pessoas não havia o suficiente para comer e a vida era relativamente curta. Atendendo aos registos respeitantes à Família Real Britânica, a melhor e mais abonada da sociedade, a expectativa de vida média em 1276 era de 35,28 anos. Entre 1301 e 1325, durante a Grande Fome, reduziu-se para 29,84 anos. Durante a peste negra, caiu para 17,33 anos (…) Na primavera de 1315, chuvas caíram chuvas acima do normal na maior parte da Europa. Na primavera e no verão, continuou chovendo e a temperatura manteve-se fria. Nestas condições, os grãos não germinavam. (…) As taxas de produção de trigo (o número de sementes que uma pessoa poderia consumir por semente plantada) estavam em queda desde 1280 (…) Numa situação de bom tempo, a taxa era de 7:1, enquanto nos anos ruins descia até 2:1, isto é, para cada semente plantada, duas sementes eram colhidas, uma para o ano que vem, e uma para alimentação. Por comparação, a agricultura moderna possui taxas de 200:1 ou mais (..,) Os alimentos para os animais não podiam ser curados, deixando de existir ração para o gado. Os preços dos alimentos começaram a subir. Os preços na Inglaterra dobraram entre a primavera e o meio do verão. O sal, a única maneira de curar e preservar a carne, era difícil de obter, porque a água não evaporava com o tempo húmido: subiu de 30 para 40 xelins. Na província da Lorena, o trigo subiu 340% e os camponeses não tinham com que pagar o pão. As reservas de grãos para emergências de longo prazo estavam confinadas aos nobres e lordes. (,,,) Na primavera de 1316, continuava chovendo sobre uma população europeia desprovida de energias e reservas para se sustentar. Todos os segmentos da sociedade, dos nobres aos camponeses, foram afetados, especialmente os camponeses, que representavam 95% da população, e não possuíam suporte social. Para prover algum alívio, o futuro foi sacrificado, matando animais de reprodução, consumindo sementes de plantação, abandonando as crianças (…) e negando alimentos aos idosos para dar hipóteses de sobrevivência às gerações jovens. As crónicas da época descrevem muitos incidentes de canibalismo. (…) O pico da fome foi atingido em 1317 quando o tempo húmido terminou. Finalmente, no verão, o tempo regressou ao padrão normal. As pessoas estavam tão enfraquecidas por doenças como pneumonia, bronquite e tuberculose, e muitas das reservas de sementes haviam sido consumidas, que apenas em 1325 os níveis de alimentos voltaram para condições relativamente normais anteriores à fome. (…) É estimado que entre 10%-25% da população de muitas cidades e vilas pereceram. Enquanto a Peste Negra (1338-1375) mataria mais em números reais, para muitos, a Grande Fome foi pior como calamidade social: a peste aniquilava uma área em alguns meses, a Grande Fome castigou durante anos, arrastando o sofrimento das pessoas que morriam lentamente de fome, enfrentavam canibalismo, infanticídio e crime descontrolado.” (A partir de Wikipedia, Grande Fome de 1315–1317: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Fome_de_1315%E2%80%931317. Acedido em 19/07/2022).

When God saw that the world was so over proud,
He sent a dearth on earth, and made it full hard.
A bushel of wheat was at four shillings or more,
Of which men might have had a quarter before….
And then they turned pale who had laughed so loud,
And they became all docile who before were so proud.
A man’s heart might bleed for to hear the cry
Of poor men who called out, “Alas! For hunger I die …!” (Poema de Eduardo II, c. 1321).
Imagem: Grandes Heures de Jean de Bérry. Séc. XIV-XV.
E se tentássemos…

De 20 a 24 de junho decorreu em Cannes o maior festival internacional de publicidade. A agência DDB México conquistou um Leão de Ouro, correspondente ao primeiro lugar na categoria Creative Data Grand Prix, com o anúncio Data Tienda, e um Leão de Bronze, com o anúncio Tik Tok Teachers, na categoria Social & Influencers.
No anúncio Data Tienda, a We Capital diagnostica um problema de exclusão social na sociedade mexicana: as mulheres que não recorrem ao crédito registado (através de cartões de crédito ou de instituições financeiras) não têm acesso a empréstimos devido à falta de historial. Não obstante, possuem uma longa prática de recurso ao crédito mas fora do circuito bancário. Compram a fiado com pagamento regular, por exemplo, a lojistas. A We Capital criou uma base de dados que contempla estas “operações financeiras” até ao presente ignoradas.
“A We Capital venceu o Creative Data Grand Prix deste ano com “Data Tienda”, um anúncio sobre inclusão financeira que visa ajudar as mulheres mexicanas a aceder ao crédito. É um caso de um novo pensamento para resolver velhos problemas.
A grande maioria das mulheres no México (83%) não tem histórico de crédito, o que afasta oportunidades de iniciar negócios ou obter independência financeira por meio de pedidos de empréstimos. As mulheres não possuem cartões de crédito tradicionais ou outros registros, mas recorrem a empréstimos em lojas locais.
Criado com a DDB México, o anúncio apresenta uma iniciativa da We Capital. A empresa internacional de investimentos lançou o Data Tienda, um centro de informações financeiras, que recolhe informações de crédito de milhões de mulheres mexicanas através das contas de lojistas locais” (Rafael Canton e Jess Zafarris, An Ad About Giving Women in Mexico Access to Credit Wins Creative Data Grand Prix: https://www.adweek.com/agencies/data-tienda-wecapital-creative-data-grand-prix-cannes-2022/#. Acedido em 28/06/2022).
O anúncio Tienda aborda uma desigualdade de acesso a bens e serviços, o crédito, decorrente de uma exclusão de acesso à comunicação e à informação. A exclusão da informação é decisiva numa nova era histórica que Alain Touraine (La Société post-industrielle, 1969) e Daniel Bell (The Coming of Post Industrial Society, 1973) classificaram, há meio século, como uma “sociedade da informação”.
De exclusão social trata também o anúncio Tik Tok Teachers. Existe um excessivo desconhecimento das línguas gestuais, um défice de literacia no que respeita à comunicação entre surdos e ouvintes na sociedade atual. Federación Mexicana de Sordos decidiu aproveitar as potencialidades da plataforma Tik Tok para promover um extenso dicionário de língua gestual criado e animado pelos próprios utilizadores (acima de ” 3.4 milhões de professores ao vivo” em poucos dias).
“Enseñar lengua de señas a la población mexicana en general es la mejor forma de incluir a más de 8 millones de sordos en la sociedad, pero con solo 10 profesores en todo el país, es una tarea casi imposible. / Por eso el día nacional del sordo, lanzamos: TikTok Teachers. Un reto totalmente orgánico con el que pasamos de 10 profesores a 3.4 millones de profesores en vivo, nos convertimos en tendencia durante 4 días y creamos el primer diccionario de lengua de señas en TikTok que reúne en un solo hashtag las 1.300 palabras que conforman el diccionario original” (Tik Tok Teachers: https://www.youtube.com/watch?v=BoGrmumvouU&t=5s. Acedido em 28/06/2022).
“Não temos petróleo, mas temos ideias” foi o slogan adotado em França no rescaldo da crise petrolífera de 1973. Uma ideia consistiu na introdução da mudança anual da hora com o objetivo de baixar o consumo de energia. Mão é apenas por causa do petróleo que fazem falta ideias. Revelam-se, também, decisivas para promover a inclusão social. Afortunadamente, existem muitas. Algumas tornaram-se célebres, como os “Restaurantes do Coração”, criados pelo ator cómico Coluche em França em 1985. Hoje, os “Restos du Coeur” congregam, no país, 11 delegações regionais e perto de 2 000 centros de atividades.
Sem ideias criativas, as boas intenções, e respetivos dispositivos e recursos, correm o risco de redundar em insucesso e desperdício. Para uma intervenção de inclusão social consequente, importa:
- Conhecer
- os promotores e suas motivações
- as populações alvo, as suas condições e estilos de vida;
- o que está em jogo, os falsos pretextos e as perversidades;
- as dificuldades e os obstáculos previsíveis;
- Envolver
- apostar em pontes, plataformas e parcerias;
- trabalhar menos para (os excluídos) e mais com (eles);
- aproveitar as dinâmicas existentes, sobretudo endógenas.
- Potenciar
- oportunidades;
- vontades;
- a inovação e a criatividade;
- os recursos, mormente os media e as novas tecnologias.
Para intervir, não basta querer, convém conhecer, envolver e potenciar. E evitar soluções palacianas e a tentação de “levar a corte à aldeia”. Importa, por último, sondar, sinalizar e disseminar as iniciativas exemplares, de modo a replicá-las e inspirar outras afins. E se tentássemos… incluir.
P.S. Não esquecer a avaliação, a partilha e a disseminação, caso se justifique.