Inchar e subir
A Old Spice desfaz-se em anúncios, mas sabe renovar. No Standoff, um homem incha e eleva-se no ar. Tenho visto seres humanos a inchar e a subir. Há dezenas de expressões populares para aludir a esta exorbitância que requer espaço e poder.
Impar como um sapo (aumenta o volume);
Como um peru armado (aumenta o volume);
Armar-se aos cágados (têm carapaça);
Armar-se aos cucos (põem o ovo em ninho alheio);
Armar-se em carapau de corrida (inflacionar o valor do peixe);
Não lhe cabe uma palha/um feijão no rabo (de tão inchado).
Marca: Old Spice. Título: Standoff. Agência: Wieden + Kennedy (Portland). USA, Junho 2016.
Momento de felicidade. “já me lembrei, já me esqueci”
A epifania é um sobressalto inesperado que abala o entendimento. Pode mudar uma vida. Estas erupções limitam-se ao entendimento? Não há relâmpagos sentimentais? Não há momentos de felicidade? Por um instante, da “chuva dissolvente” podem desprender-se gotas de contentamento. Salpicos que orvalham a vida. E a alma dança! O anúncio mostra que, apesar dos obstáculos, merecemos ser felizes. O anúncio da Mimi Foundation cumpre a promessa. Mas é um filme, naturalmente, construído. Pode não ser real, mas tem um efeito de realidade, porventura, mais real do que a realidade. Este anúncio conquistou nove leões no Festival de Cannes de 2014: um leão de ouro e oito, de prata. Uma proeza!
Anunciante: Mimi Foundation. Título: If only for a second. Agência: Leo Burnett Paris. França, Dezembro 2013.
After nearly 16 million hits on YouTube, “If only for a second” has won the hearts not only of the general public but also of the International Creativity Festival. With its nine awards (1 Golden Lion and 8 Silver Lions), our video short has turned out to be one of the most award-winning communications in the world.
The sincerity and the rightness of this campaign conceived and donated by the Leo Burnett France communications agency highlights the mission of our Foundation, which is to improve the wellbeing of patients suffering from cancer.
A project borne of a unique concept
Twenty cancer patients were invited into a studio where they had their hair styled and were made up without being able to see what was being done to them. Then they were presented with the result in front of a two-way mirror behind which, camera in hand, sat photographer Vincent Dixon. His task was to capture for eternity the moment of surprise. Why? To enable patients, if only for a second, to forget their illness and enjoy a care-free moment. Out of it has come a magnificent art book sold to raise funds for the Foundation and a moving video which has won numerous awards at the most prestigious international festivals (D&AD, Andy Award, One Show, New York Festival, …), “If only for a second” is rated among the best communication campaigns in the world. (http://www.mimi-foundation.org/en/our-multi-award-winning-video-at-the-cannes-creativity-festival-if-only-for-a-second/).
Xutos& Pontapés. Chuva Dissolvente.
As mui ricas horas
O Tendências do Imaginário dedicou dois artigos ao modo como a vida no campo é retratada na arte: a obra de Jean-François Millet (Pintar o Campesinato: Jean-François Millet) e o Luttrel Psalter
(Pintar o Campesinato: O Luttrell Psalter). Chegou a vez das Très Riches Heures du duc de Berry. “Um expoente dos livros iluminados”, que levou 77 anos a concretizar. Os autores foram os Irmãos Limbourg, entre 1412 e 1416; Barthélemy van Eyck (?), na década de 1440, e Jean Colombe, entre 1485 e 1489. O livro contempla, entre outras iluminuras, os doze meses do ano com as respectivas actividades típicas.
Sobreviveram milhares de livros de horas. Provenientes, principalmente, das oficinas de Paris e de Flandres, a sua produção resultava cara e demorada. Acontecia, como no caso do Très Riches Heures, o destinatário falecer antes da conclusão do livro. A obsessão pela salvação da alma convivia, nesses tempos, com o “amor pela imagem”. Mas não vivemos nós na era da imagem? Somos, graças a Deus, a era de tudo. Olhar para trás é capaz de fazer bem ao pescoço e à cabeça!
Durante a Idade Média e o Renascimento, o valor dos livros de horas era de tal ordem que as pessoas faziam questão de os colocar nos retratos. Um símbolo de piedade, mas também de estatuto. No célebre quadro O banqueiro e sua esposa (1514), de Quentin Massys, a esposa tem um livro de horas nas mãos.
Galeria de imagens. Les Très Riches Heures du duc de Berry. Meses do ano.
Pintar o campesinato: o Luttrell Psalter
À São.

Luttrell Psalter
Faço parte duma equipa do CECS (Centro de Estudos Comunicação e Sociedade) que está a investigar a Festa da Bugiada, de Sobrado. Uma das componentes da festa contempla várias “danças” e representações relativas à “vida no campo”. Alguns traços parecem ser muito antigos. Demandei, assim, músicas, danças, imagens e relatos medievais.
O Luttrell Psalter (cerca de 1325-1335), encomendado por Sir Geoffrey Luttrell, sobressai entre os livros iluminados medievais pela criatividade e pela originalidade. Ao longo das 309 páginas em pergaminho, sucedem-se imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana, sobretudo, agrícola.
Fiz, há algum tempo, uma apresentação com uma selecção de páginas do Luttrell Psalter. Foi difícil encontrá-las e combiná-las em forma de livro. Para fazer download (13,4Mb) da apresentação (imagem e música), carregar no seguinte endereço:
Acrescento uma galeria de imagens do Luttrell Psalter dedicadas à vida campestre.
Lama, excrementos e porcos

Hieronymus Bosch. Temptations of St. Anthony. Detail. Ca. 1510-1520. The Nelson-Atkins Museum of Art. Kansas City.
Acontece desejar esquecer-me. De mim, claro! Rumo a um grau zero de reflexividade. Com o esplendor da técnica, há tanta mezinha para alívio da consciência interior. Mas é sonho impossível! Há sempre quem se lembre que existo, faço, penso, sinto e quero. Apetece mandar estes despertadores da subjectividade alheia chafurdar no charco da Dança do Cego, da Bugiada de Sobrado, em Valongo. Ou pegar “porcos bravos” no redondel de lama de Covas, em Vila Nova de Cerveira; de Romarigães, em Paredes de Coura (https://www.youtube.com/watch?v=3DPqOsEFfQY); ou de S. Julião, em Valença (https://www.youtube.com/watch?v=geibjf60xOE). Temo, porém, que, adubados e enlameados, revigorem o assédio e a impertinência.
Dança do Cego. S. João de Sobrado / Bugiada. Valongo.
Apanha do porco. Covas. Vila Nova de Cerveira.
Nos momentos sedentos de paz interior, costumo trautear uma canção, pouco conhecida, dos Doors: The mosquito (1972)!
The Doors. The mosquito. Álbum: Full Circle. 1972.
Sombras

Alexey Bednij
Por causa dos milagres que os apóstolos faziam, as pessoas colocavam os doentes nas ruas, em camas e esteiras. Faziam isso para que, quando Pedro passasse, pelo menos a sua sombra cobrisse alguns deles. Multidões vinham das cidades vizinhas de Jerusalém trazendo os seus doentes e os que eram dominados por espíritos maus, e todos eram curados. (Acto dos Apóstolos, capítulo 5, versículos 15 e 16).
Perguntei ao meu rapaz, que anda nas engenharias, se era possível tocar a sombra dos outros. “Não, a sombra não é um concreto. Mais, quando pensas que estás a tocar a sombra de outra pessoa é a tua própria sombra que estás a tocar”. O meu rapaz é assim: um quase engenheiro que pensa. Mas a minha vocação são as “ciências moles”. Não diz a Bíblia que o apóstolo cura os enfermos com a sua sombra? Se o milagre se faz pela sombra, não pode o toque da sombra ser erótico? Doutor Freud, o toque na sombra alheia é susceptível de provocar prazer?
Ando a escrever um artigo pontuável. Um artigo “duro” e tenso, que me vai envenenar os próximos dias. Resta-me espalhar disparates no Tendências do Imaginário. Seguem um anúncio em que a sombra se revolta, L’ombre, da Chanel (1993), e duas canções de Mike Oldfield, Shadow on the Wall e Moonlight Shadow, ambas do álbum Crises (1983).
Marca: Chanel. Título: L’ombre. Produção: Pac. Direcção: Jean-Paul Goude. França, 1993.
Mike Oldfield. Shadow on the Wall. Crises. 1983.
Mike Oldfield. Moonlight Shadow. Crises. 1983.
Noite de S. João
Noite de S. João, a mais popular e envolvente das festas de Braga. No dia 14, participei numa mesa redonda sobre o S. João de Braga (ver Figura 1). Ontem, apresentei uma comunicação num seminário sobre a Festa de S. João do Sobrado. Confesso que o meu apetite pelos eventos académicos vai esmorecendo. Gaiolas cinzentas com cartão perfurado. O génio de Bernini tanto quis elevar a torre sineira da Igreja de S. Pedro, em Roma, que as paredes começaram a ceder. Desgastam-se pilares seculares e projectam-se castelos de areia, versão digital! Pelos vistos, a tradição mora, agora, no futuro, de braço dado com o vazio identitário. Até dói o pensamento. Somos todos filhos de Prometeu. Roubamos o fogo aos deuses para acender as fogueiras de S. João. Refiro-me, naturalmente, à Academia de Polícia 2: A primeira missão (1985).
Ocorreu-me a canção “Se fores ao São João”, do álbum Tamborileiro (1979), da Brigada Victor Jara. Não desfazendo, uma das minhas canções preferidas da Brigada Victor Jara é “Manolo Mio”, do álbum Eito Fora (1977). Venha a música, siga a festa!
Obscenidade

Pink Floyd. Atom Heart Mother. 1970.
Há fenómenos que parecem talhados para ilustrar processos semióticos, por exemplo, a sacralização do profano e a profanação do sagrado. O anúncio The Bicky Beef Miracle, da Bicky, destaca-se como um caso exemplar.
Das entranhas de uma vaca saem caixas com hamburgers. Um milagre, admitem o padre e o bispo. Promove-se uma procissão, criam-se imagens “santificadas” da vaca, substituem-se as hóstias por hamburgers aparecidos no ânus do animal. Em suma, assiste-se a uma escalada na sacralização do profano. Por outro lado, reconhecer um milagre num hamburger evacuado, promover uma procissão a uma vaca equiparada a uma santidade e substituir a hóstia pela caixa de hamburger, tudo isto releva de uma profanação do sagrado. Um delírio grotesco com escatologia acintosa. Vale a pena afrontar o público e enojar o espectador?
Esta dialética entre sagrado e profano é corrente no mundo publicitário. Mas também floresce no quotidiano mais banal. Uma anedota, memória da infância, mostra os extremos a que pode conduzir a profanação humorística do sagrado.
A missa estava inusitadamente concorrida. O padre conta as hóstias. Não chegavam. Ordena ao sacristão:
– Vai ao curral, colhe bosta seca, corta às rodelas, pinta-as de branco e traz-mas.
O sacristão assim fez. A missa começa. E a comunhão decorre sem falhas. Entretanto, o Manuel, entre pragas e caretas, mastigava. A mulher, a seu lado, admoestou-o:
– Comporte-se que é o corpo de Cristo!
O Manuel murmurou:
– Foi-me logo calhar a parte do cú.
O processo é similar ao do anúncio da Bicky: sacralização do profano (a bosta) e profanação do sagrado (a hóstia associada ao traseiro).
O anúncio comporta riscos, como, por exemplo, associar o Hamburger Bicky aos intestinos miraculosos de um bovino. A ousadia afasta ou cativa os consumidores? A obscenidade e a escatologia compensam? Polémicas à parte, o anúncio apresenta uma história bem contada com um cocktail de símbolos explosivo.
Jens Mortier, fundador e director criativo da agência mortierbrigade, esclarece:
However, we’re not creating these attention-grabbing campaigns solely as gimmicks or for a quick laugh; the incredible results of our work with Bicky so far shows that we are really striking a note with burger lovers”.
Spike van der Werf, director de Marketing & Inovação da Bicky, prossegue:
“Bicky can be anything, except virtuous. We save the good taste for our 100 per cent Angus burgers. When it comes to our brand communications, we want to create content that act as an adrenaline shot to the heart of our customers. Mortierbrigade is exactly the right partner to help us to tell stories that don’t smell like advertising and, instead, become part of the cultural conversation. This collaboration with Lionel Goldstein fits our brand perfectly well” (http://www.lbbonline.com/news/what-beefy-miracle-is-hiding-in-this-holy-cows-anus/).
Marca: Bicky. Título: The Bicky Beef Miracle. Agência: mortierbrigade. Direcção: Lionel Goldstein. Bélgica, Junho 2016.
Vaca por vaca, prefiro a vaca dos Pink Floyd. Atom Heart Mother (1970) não é dos álbuns mais famosos dos Pink Floyd. E depois? Segue a última faixa do lado A: Remergence.
Que diria Kant?
“Há muito tempo que os museus deitam mão do marketing e da publicidade. E alguns, como a Tate Gallery of Liverpool, fazem-no com arte” (ver https://tendimag.com/2012/06/20/publicitar-arte/). Pois também há quem defenda que os anúncios publicitários podem ser arte (https://www.youtube.com/watch?v=B7F8L15gWPc). A publicidade, arte? Eis uma questão que ainda não saiu do adro. Alguns anúncios suscitam-me prazer, mormente estético. Olhar puro? Olhar bárbaro? Que diria o Kant? Entretanto, segue um mosaico de anúncios?
Argentu. Art of Advertisin. 2013. Amostra de excertos de anúncios.
Vim para te dizer que vou embora!
Gosto de Serge Gainsbourg, uma espécie de sósia: torto, cavernoso e molesto. Gosto do Paul Verlaine, compositor de palavras, convocado em Je suis venu pour te dire que je m’en vais (1971). Gosto de Jacques Prévert, das “folhas mortas”, e da Chanson de Prévert (1961), de Serge Gainsbourg. Gostava de ir embora, mas o governo decretou um limbo profissional: entre a idade a que teria reforma e aquela que não sei se terei. Em tempo de crise, o envelhecimento também tem limites. Responsabilidades? Os governos já se pronunciaram: Portugal tem funcionários e os portugueses fazem compras. “Vou pedir contas ao mundo além naquele coreto”. Lá vai um! Lá vão dois! Três bancos a voar. Um pago eu, o outro pagas tu, o outro paga quem puder (paráfrase de José Afonso. Avenida de Angola. Traz outro amigo também. 1970).
Serge Gainsbourg. Je suis venu te dire que je m’en vais. Vu de l’extérieur. 1971.
Serge Gainsbourg. La Chanson de Prévert. L’étonnant Serge Gainsbourg. 1961.