O voo dos tordos

De um recanto à saída do Instituto de Ciências Sociais, demorei-me a observar o bailado celestial de um bando de tordos. Lembrou-me, sabe-se lá por quê (apenas um Freud inspirado conseguiria explicar), a ária “Les oiseaux dans la charmille” [os pássaros no caramanchão] da ópera Les Contes d’Hoffmann (estreada em 1881) do compositor Jacques Offenbach (1819-1880).
Existem muitas coreografias e interpretações de “Les oiseaux dans la charmille”. Optei pela performance, em janeiro de 2016, da eslovaca Patricia Janečková (1998 – 2023), falecida no passado dia 1 de outubro, aos 25 anos, em Ostrava, vítima de um cancro da mama.
Para quem aprecie o grotesco, nomeadamente a vertente do estranhamento, desconcertante e corrosiva, relevada por Wolfgang Kayser (O Grotesco, 1957), nunca recomendarei o suficiente os contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822). Anexo o pdf do conto “O Homem da Areia” (do livro Noturnos, de 1817).
A razão e o coração
“Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los (…) E é tão ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus primeiros princípios, para querer consentir neles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para querer recebê-las.” (Pensamentos, 1669, póstumo; artigo XXII: I)

Temos dedicado alguma atenção a fenómenos de mistura cultural, tais como a orientalização do tango, do flamengo ou do fado. Hoje, é a vez da “arabização da canção francesa”, em franca expansão. As “chansons orientales”, como lhes chamam os gauleses, trepam ao topo das tabelas de vendas.

A relação entre a razão e o coração é complicada. A canção Le Coeur et la Raison realça o respetivo confronto. Lynda Sherazade, francesa de origem argelina, é a compositora e intérprete. A reedição em 2022 do primeiro álbum, Papillon, foi disco de platina e o último, Un peu de moi, lançado em abril de 2023, ascendeu ao nono lugar da tabela de vendas.
Goste-se ou não, estes híbridos têm o condão de nos aliviar do enjoo proporcionado por uma navegação cada vez mais orientada por integralismos e maniqueísmos.
Le Coeur et la Raison
J’ai laissé mon cœur parler
Lui qui n’est pas facile
J’l’ai laissé faire ce qu’il voulait
Mais il fonce tout droit comme un imbécile
Oui, il s’est mis à nu
Il croit toujours au grand amour comme dans les films
Il oublie ses blessures
Il s’attend jamais au pire
Quand il aime, il est dépendant, ce fou devient accro
Quand il aime, il est aveugle, il efface tous les défauts
Quand il aime, il est égoïste, n’avance qu’en solo
Quand c’est trop tard, c’est la raison qui soigne tous les bobos
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
J’ai laissé la raison parler
Elle qui ne lâche rien
N’attend jamais d’être blessée
Elle, elle pense au lendemain
Agit à contre-cœur parfois
Pour éviter les erreurs
Elle connaît sa valeur
Donc elle sécurise le cœur
Elle est forte et elle fait attention à tout
Elle supporte, elle encaisse même tous les coups
Elle le sait, ouais, souvent les histoires sont sans issue
Quand elle s’emporte, le cœur est toujours là au rendez-vous
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
Faut qu’j’me décide et ça fait mal
Faut s’y tenir
J’en ai marre, de faire des choix
Il faut qu’j’me décide et ça fait mal
Choisir entre le cœur ou la raison
J’suis pas capable
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
Oui, le cœur ou la raison
Le cœur ou la raison, le cœur ou la raison
(Lynda Sherazade)
Flamengo japonês
A influência da cultura oriental no Ocidente é antiga. Declaradamente assumida pelos românticos do século XIX, precede as missões dos jesuítas portugueses no Japão do século XVI. Aproximadamente a partir dos anos sessenta, a “orientalização do Ocidente” resulta cada vez mais estudada e teorizada no âmbito das Ciências Sociais.
Por seu turno, o movimento inverso, a “ocidentalização do Oriente”, acentua-se e acelera-se nas décadas mais recentes. Em várias vertentes, entre as quais a música, mormente em segmentos mais abrangentes com vocação global, como a pop e o rock. O rock coreano (K-rock) representa uma boa ilustração. Mas esta repercussão observa-se, também, embora mais discreta, em géneros mais específicos e localizados, tais como o tango, o flamengo e o fado. Reservo para este último os próximos artigos. Neste, o foco incide sobre o flamengo adaptado e interpretado em japonês por Noriko Martín. Um híbrido de espantar!
Agradeço aos ventos que, hoje, sopraram novidades, não do Sudeste vimaranense, mas do Norte galego.
Canção de embalar
Não estou em Moledo, nem o vento sopra do Norte, mas de Sudeste, vimaranense, e traz esta interpretação admirável da “canção de embalar”, de Zeca Afonso, pelo Duo Ibero-Americano que me apresso a partilhar.
A Cura
Pedi ao meu filho que “me sugerisse uma música que correspondesse com a minha cara”. Escolheu a canção Anoama, dos nórdicos Heilung (em português, cura). Acertou, não na minha cara, unidade identitária sumária que desconheço, mas numa das minhas caras, aquela que se interessa pelo grotesco e pelo tribal, senão pelo bárbaro, ultimamente algo negligenciada. “Filhos e filhas de Odin”, os Heilung e a sua percussão lembram o galope das Valquírias (“aquelas que escolhem os mortos”) na sua missão de procurar os melhores guerreiros mortos em combate para os integrar no exército de Odin destinado à batalha do fim do mundo.

Chegados a esta encruzilhada, insinua-se um desvio por Richard Wagner: ritmo, exaltação, mito, etos do guerreiro. Compositor original, inovador do mundo do espetáculo, acabou por ser penalizado menos pelo que fez (revolucionário amigo de Bakunine expulso de vários estados, com um percurso sexual atribulado e autor de textos nacionalistas e antissemitas, designadamente, em 1850, o artigo “O Judaísmo na Música”, crítico dos compositores judeus alemães G. Meyerbeer e F. Mendelssohn) e mais pelo que, postumamente, fizeram dele, do seu legado, mormente o aproveitamento ostensivo pela propaganda nazi.
Curiosamente, estas associações e colagens recordam-me o alerta de Vilfredo Pareto no Tratado de Sociologia Geral (1916) a propósito da extrapolação de atributos caraterística das ações não lógicas, esquematicamente ilustrável com a seguinte formulação: de um músico não há que esperar santidade mas música, bem como de um santo não música mas santidade. Importa ter algum cuidado em não baralhar os fusíveis para não provocar curto-circuitos. Neste entendimento, não me surpreenderia que, falaciosamente, resulte do agrado do diabo a expetativa, uma espécie de beatice extrema em expansão, segundo a qual todos (políticos, jornalistas, professores, juízes, artistas…) se devem comportar como anjos imaculados.
Este espírito, esta disposição, colide, paradoxalmente ou não, com a própria mensagem do cristianismo, a começar pelo exemplo e pela palavra de Jesus Cristo. Quando o ser humano perde a noção dos limites está na altura de se preparar para o pior. Não nos aguarda uma Nova Jerusalém mas uma qualquer Sodoma ou Gomorra. Sei que me repito como um boneco teimoso, mas não o suficiente.
Os moinhos do coração
Retirar-se para se reencontrar contribui para bem abraçar os outros
Comme une pierre que l’on jette
Dans l’eau vive d’un ruisseau
Et qui laisse derrière elle
Des milliers de ronds dans l’eau…As the images in wind
Like the circle that you find
In the windmills of your mind

Michel Legrand (1932-2019) foi um grande compositor francês, sobretudo de músicas para filmes. Conquistou três óscares: dois de melhor banda sonora pelos filmes Summer of ’42 (1972) e Yentl (1983), e um de melhor canção original por The Windmills of Your Mind/ Les moulins de Mon Coeur, do filme The Thomas Crown Affair (1969). Ganhou, também, cinco prémios Grammy.
De momento, retenho apenas a canção The Windmill of Your Mind. Inspirou imensas interpretações, algumas memoráveis, como as de Sting, Dusty Springfield, Noel Harrison, Barbra Streisand, Alison Moyet ou Natalie Dessay. A versão francesa tocada e cantada pelo próprio compositor em 1969 permanece um marco incontornável (vídeo 3) https://www.youtube.com/watch?v=UANLvlQKYcI&list=RDEMvYQImFH0wL-Y6SvZyz7W6g&index=7). Impressionaram-me especialmente duas interpretações ao vivo, pela singeleza e depuração: de Sinne Eeg, em inglês, em 2012, e de Juliette Armanet, em francês, em 2018.
Há canções e canções. Algumas dizem-nos. Dedico esta a quem (co)move os “moinhos do meu coração”.
*****
Les Moulins de Mon Coeur, de Michel Legrand
Comme une pierre que l’on jette
Dans l’eau vive d’un ruisseau
Et qui laisse derrière elle
Des milliers de ronds dans l’eau
Comme un manège de lune
Avec ses chevaux d’étoiles
Comme un anneau de Saturne
Un ballon de carnaval
Comme le chemin de ronde
Que font sans cesse les heures
Le voyage autour du monde
D’un tournesol dans sa fleur
Tu fais tourner de ton nom
Tous les moulins de mon cœur
Ce jour-là près de la source
Dieu sait ce que tu m’as dit
Mais l’été finit sa course
L’oiseau tomba de son nid
Et voilà que sur le sable
Nos pas s’effacent déjà
Et je suis seule à la table
Qui résonne sous mes doigts
Comme un tambourin qui pleure
Sous les gouttes de la pluie
Comme les chansons qui meurent
Aussitôt qu’on les oublie
Et les feuilles de l’automne
Rencontrent des ciels moins bleus
Et ton absence leur donne
La couleur de tes cheveux
Comme une pierre que l’on jette
Dans l’eau vive d’un ruisseau
Et qui laisse derrière elle
Des milliers de ronds dans l’eau
Au vent des quatre saisons
Tu fais tourner de ton nom
Tous les moulins de mon cœur
As the images in wind
Like the circle that you find
In the windmills of your mind
Mio violino caro: Maxim Vengerov
Nascido na Rússia em 1974, Maxim Vengerov consta entre os violinistas mais celebrados do século. Em 1997, foi nomeado embaixador da UNICEF na área de música. Segue a interpretação da Meditação, da ópera Thaïs (1894), de Jules Massenet.
Mio violino caro: Joshua Bell

No que respeita à música, sou um guloso omnívoro. Agrada-me o que me agrada, sem precondições, tabelas ou conveniências. Aprecio música por vários motivos: composição, arranjo, orquestração, interpretação, mas também, colateralmente, os contextos e as memórias que convoca. Inaurugo uma mini série de artigos, intitulada mio violino caro, centrada em intérpretes de violino.
Comecemos com Joshua Bell. Violinista virtuoso, nasceu nos Estados Unidos em 1967. Em 2007, participou numa experiência curiosa: tocou durante cerca de quarenta minutos numa estação de metro no centro da cidade de Washington. O segundo vídeo mostra o resultado. Segue a interpretação de “O mio babbino caro”, de Giacomo Puccini.