Os gatos de Gustavo Rosa


Gustavo Rosa (1946-2013) é um artista plástico brasileiro. Admiro o humor dos seus desenhos singelos e coloridos. Tudo cabe nos seus quadros: pessoas, animais, coisas… Dizem que se assemelha a Aldemir Martins, Di Cavalcanti e Fernando Botero. No meu entendimento, os desenhos de Gustavo Rosa assemelham-se aos desenhos de Gustavo Rosa. Sobretudo, os gatos. São inconfundíveis. Segue uma pequena amostra.
Galeria de imagens: os Gatos de Gustavo Rosa
A menina dos fósforos

Pelos vistos, existem dois tipos de confinamento: o insular e o peninsular. No primeiro, confina-se por todo o lado. No segundo, confina-se por todo o lado menos por um, por sinal, enorme e tentacular. Afinal, quais são os objetivos do confinamento. Salvar vidas? Evitar o colapso da Saúde? Tudo isto é confuso. Estamos a queimar fósforos?
Entrar no mundo dos contos é um deslumbramento. A Menina dos fósforos, de Hans Christian Anderson, é um dos contos mais ilustres da humanidade. Um concentrado de ternura, compaixão e revolta. Contra a exclusão social. A adaptação da Save the Children propõe um final alternativo menos desolador. Não é um caso isolado. Sucedeu o mesmo com o Capuchinho Vermelho, de Charles Perrault. Segue o anúncio The Little Match Girl e o conto A menina dos fósforos.
“A menina dos fósforos
Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.
Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: — Quem compra fósforos bons e baratos? — Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava.
Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas, que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão.
Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da rapariguinha. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria.
E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direcção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz.
«Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu.»
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade!
— Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda.
Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.
Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… mor ta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo.”
Hans Christian Andersen
Os melhores contos de Andersen
Editora Verbo, s/d
Oremos

“O PÚBLICO sabe que a excepção de manter as escolas abertas, caso o Governo avance para um novo confinamento geral, se deve a dois factores: a importância do ensino presencial no processo de aprendizagem; e a conclusão de que os alunos obedecem melhor às regras sanitárias e estão mais protegidos de contaminações dentro das escolas – uma certeza que é fundamentada com a baixa incidência de casos de covid-19 nos estabelecimentos de ensino” (https://www.publico.pt/2021/01/08/politica/noticia/regresso-confinamento-geral-mantera-escolas-abertas-1945463).
Alguém pode dizer a este ignorante qual é a “incidência de casos de covid-19 nos estabelecimentos de ensino” em Portugal? Tantos por 100 000… Presumo que existe quem saiba. Dispenso os pormenores da polémica da escolha do procurador europeu nacional na Procuradoria da União Europeia. Receio nunca me encontrar com esse senhor. O mesmo não garanto em relação à Covid-19. Informem-me, por favor, sobre importâncias importantes. Dispenso os intermináveis tangos palacianos. Sejam políticos, que ser político é missão nobre!
Apraz-me saber que os “alunos (…) estão mais protegidos de contaminações dentro das escolas”. Mais protegidos do que na Irlanda, na Alemanha ou na Holanda, que fecham as escolas, embora alcancem incidências de infetados próximas de Portugal: respetivamente, 455,6; 319; 757,9; e 517 por 100 000 habitantes (https://www.ecdc.europa.eu/en/covid-19/country-overviews). Serão as escolas portuguesas especialmente protetoras? Será a sociedade portuguesa mais mórbida, mais ameaçadora? Talvez seja um milagre. Oremos.

Falar com as imagens

Há católicos que falam com as imagens dos santos. Mais, afigura-se-lhes que estes lhes respondem. Em casa, tenho um busto da República original. Herança de meu avô. Acontece-me falar com ela. Às vezes, tento dialogar. Perdeu o cocuruto. Não tem vida fácil. Gostava muito de lhe dedicar uma canção. Mas não sei cantar. Peço a outros. Por exemplo aos The Who.
As imagens interpelam-nos, o busto da República interpela-nos. Num século, perdeu o cocuruto. É vulnerável. A república é vulnerável.

Agarrar o vento e sentar-se ao sol

Cativar o sol e o vento é arte antiga. Arquimedes engenhou, durante o cerco romano a Siracusa, um espelho côncavo cujos raios solares incendiaram os barcos inimigos. O vento soprava nas velas romanas e o sol grego queimava os cascos.
O anúncio The Collectors, da Energy Upgrade California, propõe múltiplas formas, efetivas ou poéticas, de capturar o vento e o sol. Brilhante e original. Belas imagens, bom ritmo, boa música. Um oásis de prazer nas dunas da Internet! Sejam louvadas as energias eólica e solar!
A mulher com cabelo aos caracóis. Caetano Veloso.
Betsabé banha-se numa fonte do jardim. O rei David observa-a seduzido. Tiveram uma relação sexual. Casada com Urias, Betsabé engravidou. David mandou Urias para frente da batalha para ser morto. Salomão foi um dos filhos de Betsabé. Esta é uma história bíblica com pendor shakespeariano. Segue, no final do artigo, a passagem da Bíblia (Samuel 11).
Galeria: Iluminuras com mulher a tomar banho no jardim
1. David and Bathseba. Illustration from the middle ages, book of the hours, ca 1500 2. Robert Boyvin. Betsabé. Livro de Horas. Séc. XVI 3. Taking a bath. Hours of Claude Molé, MS M.356 fol. 30v. Ca 1500. 4. Book of Hours, MS M.179 fol. 114v. Paris. 1480-1500 .
Cismei encontrar uma iluminura de Betsabé com cabelos encaracolados. Betsabé aparece em muitas iluminuras. Retenho quatro (ver galeria). A primeira segue o modelo-padrão: Betsabé banha-se nua e o rei David observa. A segunda acrescenta uma alusão: um homem, em princípio Urias, sai do palácio com uma carta na mão, a carta que dita a sua morte. A terceira iluminura multiplica os cenários: o banho de Betsabé, o adultério e a morte de Urias. Na quarta iluminura, a mulher tem cabelos eventualmente encaracolados, mas não se vê David. O enquadramento é semelhante às demais iluminuras com Betsabé, mas a ausência de David só permite afirmar que se trata de uma cena de higiene. Não é uma iluminura, mas na pintura Betsabé observada pelo rei David, de Jan Matsys, nos cabelos, presos, esboçam-se alguns caracóis.

Todo este desvio para quê? Para introduzir a canção Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos, de Caetano Veloso.
Bíblia – Samuel 11
- “Na primavera, época em que os reis saíam para a guerra, Davi enviou para a batalha Joabe com seus oficiais e todo o exército de Israel; e eles derrotaram os amonitas e cercaram Rabá. Mas Davi permaneceu em Jerusalém.
- Uma tarde Davi levantou-se da cama e foi passear pelo terraço do palácio. Do terraço viu uma mulher muito bonita, tomando banho,
- e mandou alguém procurar saber quem era. Disseram-lhe: “É Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o hitita”.
- Davi mandou que a trouxessem e se deitou com ela, que havia acabado de se purificar da impureza da sua menstruação. Depois, voltou para casa.
- A mulher engravidou e mandou um recado a Davi, dizendo que estava grávida.
- Em face disso, Davi mandou esta mensagem a Joabe: “Envie-me Urias, o hitita”. E Joabe o enviou.
- Quando Urias chegou, Davi perguntou-lhe como estavam Joabe e os soldados e como estava indo a guerra;
- e lhe disse: “Vá descansar um pouco em sua casa”. Urias saiu do palácio e logo lhe foi mandado um presente da parte do rei.
- Mas Urias dormiu na entrada do palácio, onde dormiam os guardas de seu senhor, e não foi para casa.
- Quando informaram a Davi que Urias não tinha ido para casa, ele lhe perguntou: “Depois da viagem que você fez, por que não foi para casa?”
- Urias respondeu: “A arca e os homens de Israel e de Judá repousam em tendas; o meu senhor Joabe e os seus soldados estão acampados ao ar livre. Como poderia eu ir para casa para comer, beber e deitar-me com minha mulher? Juro por teu nome e por tua vida que não farei uma coisa dessas!”
- Então Davi lhe disse: “Fique aqui mais um dia; amanhã eu o mandarei de volta”. Urias ficou em Jerusalém, mas no dia seguinte
- Davi o convidou para comer e beber e o embriagou. À tarde, porém, Urias saiu para dormir em sua esteira, onde os guardas de seu senhor dormiam, e não foi para casa.
- De manhã, Davi enviou uma carta a Joabe por meio de Urias.
- Nela escreveu: “Ponha Urias na linha de frente e deixe-o onde o combate estiver mais violento, para que seja ferido e morra”.
- Como Joabe tinha cercado a cidade, colocou Urias no lugar onde sabia que os inimigos eram mais fortes.
- Quando os homens da cidade saíram e lutaram contra Joabe, alguns dos oficiais da guarda de Davi morreram, e morreu também Urias, o hitita.
- Joabe enviou a Davi um relatório completo da batalha,
- dando a seguinte instrução ao mensageiro: “Ao acabar de apresentar ao rei este relatório,
- pode ser que o rei fique muito indignado e lhe pergunte: ‘Por que vocês se aproximaram tanto da cidade para combater? Não sabiam que eles atirariam flechas da muralha?
- Em Tebes, quem matou Abimeleque, filho de Jerubesete? Não foi uma mulher que da muralha atirou-lhe uma pedra de moinho, e ele morreu? Por que vocês se aproximaram tanto da muralha?’ Se ele perguntar isso, diga-lhe: E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- O mensageiro partiu e, ao chegar, contou a Davi tudo o que Joabe lhe havia mandado falar,
- dizendo: “Eles nos sobrepujaram e saíram contra nós em campo aberto, mas nós os fizemos retroceder para a porta da cidade.
- Então os flecheiros atiraram do alto da muralha contra os teus servos e mataram alguns deles. E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- Davi mandou o mensageiro dizer a Joabe: “Não fique preocupado com isso, pois a espada não escolhe a quem devorar. Reforce o ataque à cidade até destruí-la”. E ainda insistiu com o mensageiro que encorajasse Joabe.
- Quando a mulher de Urias soube que o seu marido havia morrido, chorou por ele.
- Passado o luto, Davi mandou que a trouxessem para o palácio; ela se tornou sua mulher e teve um filho dele. Mas o que Davi fez desagradou ao Senhor”.
(https://www.bibliaon.com/david_e_bate-seba/).
Dior

“Surrealist images manage to make visible what is in itself invisible. I’m interested in mystery and magic, which are also a way of exorcising uncertainty about the future” (Maria Grazia Chiuri, responsável pela coleção de alta costura de outono-inverno 2020-2021 da Dior; https://www.dior.com/en_pt/womens-fashion/haute-couture-shows/fall-winter-2020-2021-haute-couture-collection).
Lento, longo e luxuoso, este vídeo da Dior é uma pérola. A viagem da alta costura pelos mundos da mitologia e da arte. Uma aposta na intertextualidade. Convoca figuras míticas e obras de arte. Recupera, por exemplo, as iluminuras medievais com mulheres nuas a sair de conchas ou o Narciso da pintura Eco e Narciso, de John William Waterhouse (1903). Quinze minutos de estética envolvente. “Alta costura, alta cultura”.
A Beatriz enviou-me este conto da Dior. A seguir a mim, é a Beatriz quem mais tem escrito no Tendências do Imaginário. Centenas de comentários. Não sei como lhe agradecer.
Transpiração
O olfato “é o sentido desagregador e anti-social por excelência” (Simmel, Georg. 1981. “Pour une sociologie des sens”, in Sociologie et épistémologie, Paris, PUF).

Pode um anúncio ser reflexivo? Funcionar como um espelho? É o objetivo da maior parte dos anúncios. A mais ínfima parte do corpo humano intervém na interação social. Um nada corporal, significativo, pode decidir a relação com o outro. E com o próprio. A transpiração é um excesso de comunicação, uma ameaça ao self, tal como, noutro registo, o ato incontrolado de corar. Bem sugeria Simmel que o odor separa e afasta. Quem não se revê nas inseguranças do protagonista, nos clichés dos seus receios e impasses? Gosto deste anúncio: consegue o que pretende. Aposta nas noções, religiosas, de condenação e de salvação. Entre ambas, uma epifania: o chamamento, a revelação e a graça do desodorizante Hidrofugal.