A mulher com cabelo aos caracóis. Caetano Veloso.
Betsabé banha-se numa fonte do jardim. O rei David observa-a seduzido. Tiveram uma relação sexual. Casada com Urias, Betsabé engravidou. David mandou Urias para frente da batalha para ser morto. Salomão foi um dos filhos de Betsabé. Esta é uma história bíblica com pendor shakespeariano. Segue, no final do artigo, a passagem da Bíblia (Samuel 11).
Galeria: Iluminuras com mulher a tomar banho no jardim
1. David and Bathseba. Illustration from the middle ages, book of the hours, ca 1500 2. Robert Boyvin. Betsabé. Livro de Horas. Séc. XVI 3. Taking a bath. Hours of Claude Molé, MS M.356 fol. 30v. Ca 1500. 4. Book of Hours, MS M.179 fol. 114v. Paris. 1480-1500 .
Cismei encontrar uma iluminura de Betsabé com cabelos encaracolados. Betsabé aparece em muitas iluminuras. Retenho quatro (ver galeria). A primeira segue o modelo-padrão: Betsabé banha-se nua e o rei David observa. A segunda acrescenta uma alusão: um homem, em princípio Urias, sai do palácio com uma carta na mão, a carta que dita a sua morte. A terceira iluminura multiplica os cenários: o banho de Betsabé, o adultério e a morte de Urias. Na quarta iluminura, a mulher tem cabelos eventualmente encaracolados, mas não se vê David. O enquadramento é semelhante às demais iluminuras com Betsabé, mas a ausência de David só permite afirmar que se trata de uma cena de higiene. Não é uma iluminura, mas na pintura Betsabé observada pelo rei David, de Jan Matsys, nos cabelos, presos, esboçam-se alguns caracóis.

Todo este desvio para quê? Para introduzir a canção Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos, de Caetano Veloso.
Bíblia – Samuel 11
- “Na primavera, época em que os reis saíam para a guerra, Davi enviou para a batalha Joabe com seus oficiais e todo o exército de Israel; e eles derrotaram os amonitas e cercaram Rabá. Mas Davi permaneceu em Jerusalém.
- Uma tarde Davi levantou-se da cama e foi passear pelo terraço do palácio. Do terraço viu uma mulher muito bonita, tomando banho,
- e mandou alguém procurar saber quem era. Disseram-lhe: “É Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o hitita”.
- Davi mandou que a trouxessem e se deitou com ela, que havia acabado de se purificar da impureza da sua menstruação. Depois, voltou para casa.
- A mulher engravidou e mandou um recado a Davi, dizendo que estava grávida.
- Em face disso, Davi mandou esta mensagem a Joabe: “Envie-me Urias, o hitita”. E Joabe o enviou.
- Quando Urias chegou, Davi perguntou-lhe como estavam Joabe e os soldados e como estava indo a guerra;
- e lhe disse: “Vá descansar um pouco em sua casa”. Urias saiu do palácio e logo lhe foi mandado um presente da parte do rei.
- Mas Urias dormiu na entrada do palácio, onde dormiam os guardas de seu senhor, e não foi para casa.
- Quando informaram a Davi que Urias não tinha ido para casa, ele lhe perguntou: “Depois da viagem que você fez, por que não foi para casa?”
- Urias respondeu: “A arca e os homens de Israel e de Judá repousam em tendas; o meu senhor Joabe e os seus soldados estão acampados ao ar livre. Como poderia eu ir para casa para comer, beber e deitar-me com minha mulher? Juro por teu nome e por tua vida que não farei uma coisa dessas!”
- Então Davi lhe disse: “Fique aqui mais um dia; amanhã eu o mandarei de volta”. Urias ficou em Jerusalém, mas no dia seguinte
- Davi o convidou para comer e beber e o embriagou. À tarde, porém, Urias saiu para dormir em sua esteira, onde os guardas de seu senhor dormiam, e não foi para casa.
- De manhã, Davi enviou uma carta a Joabe por meio de Urias.
- Nela escreveu: “Ponha Urias na linha de frente e deixe-o onde o combate estiver mais violento, para que seja ferido e morra”.
- Como Joabe tinha cercado a cidade, colocou Urias no lugar onde sabia que os inimigos eram mais fortes.
- Quando os homens da cidade saíram e lutaram contra Joabe, alguns dos oficiais da guarda de Davi morreram, e morreu também Urias, o hitita.
- Joabe enviou a Davi um relatório completo da batalha,
- dando a seguinte instrução ao mensageiro: “Ao acabar de apresentar ao rei este relatório,
- pode ser que o rei fique muito indignado e lhe pergunte: ‘Por que vocês se aproximaram tanto da cidade para combater? Não sabiam que eles atirariam flechas da muralha?
- Em Tebes, quem matou Abimeleque, filho de Jerubesete? Não foi uma mulher que da muralha atirou-lhe uma pedra de moinho, e ele morreu? Por que vocês se aproximaram tanto da muralha?’ Se ele perguntar isso, diga-lhe: E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- O mensageiro partiu e, ao chegar, contou a Davi tudo o que Joabe lhe havia mandado falar,
- dizendo: “Eles nos sobrepujaram e saíram contra nós em campo aberto, mas nós os fizemos retroceder para a porta da cidade.
- Então os flecheiros atiraram do alto da muralha contra os teus servos e mataram alguns deles. E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- Davi mandou o mensageiro dizer a Joabe: “Não fique preocupado com isso, pois a espada não escolhe a quem devorar. Reforce o ataque à cidade até destruí-la”. E ainda insistiu com o mensageiro que encorajasse Joabe.
- Quando a mulher de Urias soube que o seu marido havia morrido, chorou por ele.
- Passado o luto, Davi mandou que a trouxessem para o palácio; ela se tornou sua mulher e teve um filho dele. Mas o que Davi fez desagradou ao Senhor”.
(https://www.bibliaon.com/david_e_bate-seba/).
Se o meu carro fosse um cavalo

O anúncio australiano Sleeper, da companhia de seguros NRMA, é inteligente, estranho e subtil. Somos convidados a acompanhar a viagem, noturna, de duas crianças e da respetiva mãe, ao volante. Adormecem, mas o carro prossegue caminho. Ficamos tensos à espera do pior. Alimentada pelas imagens, a tensão não abranda. A perturbação avoluma-se com a sensação de não perceber o que se passa, ou seja, porque nada se passa! Naquela noite, os carros conduzem sozinhos. “Enquanto os nossos carros não conduzirem sozinhos, conduza com segurança”. Como Jolly Jumper, o cavalo de Lucky Luke. As campanhas de prevenção rodoviária multiplicam-se na época natalícia..
Um buraco na água. Julien Clerc.

Sinto falta! Sinto falta! Sinto a tua falta, mulher! Quero a quem não quer. Um buraco na água. É estúpido querer quem não quer. Como é estúpida a estupidez!
Umbigos flácidos

Dizem que o mundo está líquido, como a lama. Pois, deixá-lo estar. Mas duvido. Continuo a dar cabeçadas. E se está mole, depressa fica vertebrado: atente-se na experiência do confinamento; até aos cemitérios e às urnas chegou o decreto de Estado. Isto anda mole? Se essa é a vossa opinião… Quando brilham os faróis, escurecem os pirilampos. A ser verdade, esta história da moleza tem consequências. Sem verticalidade nem consistência, não há lugar para pessoas firmes e hirtas, “feitas de uma peça só”. Onde vamos pendurar a honra? Neste mundo de plasticina estaladiça e identidades fugidias, hesita-se em firmar compromissos com quem quer que seja, cara de roleta ou pés de barro. Numa sociedade sem honra nem narrativa, assiste-se ao milagre da multiplicação dos umbigos flácidos. Só quebra quem não torce. Kurt Cobain partiu.
Memória reincidente

Há longos anos que o genérico de fecho de emissão da Antenne 2 me enternece. Com desenhos de Jean-Michel Folon (1934-2005) e música de Michel Colombier (1939-2004). Memória reincidente. Folhas soltas. Salpicos numa liquidez pasmada. Uma leveza de espírito que enfia a cabeça nas nuvens.
Uma obra-prima nunca está acabada. Inspira e inspira. Sucede com a música Emmanuel, de Michel Colombier. Gosto da versão de Toots Thielemans (1922-2016), um dos melhores tocadores de harmónica de boca do século XX.
Sessenta e um anos deste mundo. O triplo da idade em que me encantei com o genérico da Antenne 2. Agradeço a amizade. Um dia havemos de voar juntos como os homenzinhos de Folon.
Mocidade académica. O amor burocrático

Com tantos regimentos, regras, normas, modelos e procedimentos, criar resume-se a um jogo de colorir imagens. Um projecto é um projecto, conforme o regulamento. As referências bibliográficas, também. Nada como encurralar o pensamento em 2 000 palavras… Esta é a arte, esta é a bênção. Tudo deliberado, consignado e disponível em documento próprio, para instrução de alunos com experiência académica e percursos profissionais notáveis. Se pretende saber, saiba connosco, saiba como nós! Percorra o caminho batido.
Na escola primária, há mais de cinquenta anos, entoava-se, no início, a seguinte canção:
Vamos cantar com alegria
E começar um novo dia
Para nós o estudo só nos dá prazer
Faremos tudo, tudo para aprender.
Não há muitas opções: ou se ensina o caminho ou se aprende a caminhar (Antonio Machado). É sensato confinar os alunos numa redoma de regras e normas? Para colher réplicas? Para conseguir a quadratura do círculo? Apesar da minha costela anarquista, admito a necessidade de normas e de regras. Incomoda-me o excesso de amor e de zelo burocráticos. Regulamente-se, regulamente-se até ao cinzento final. “Pim!”

Maratona
E se houvesse uma maratona sem meta? Correr para chegar a lado nenhum. Como insectos à volta de um candeeiro.
Albrecht Dürer. Seated Nude Child. 1506. Albrecht Dürer. Weeping Cherub.1521. Albrecht Dürer. Self-portrait, Study of a Hand and a Pillow. 1493. Albrecht. Dürer. Portrait-of a young venetian-woman.1505. Albrecht Dürer. Portrait of the Artist’s Mother. 1514. Albrecht Dürer. Head of an Old Man. 1521 Albrecht Durer. Head of the Dead Christ. 1503.
À força de falar de amor, apaixonamo-nos

Uma versão antiga da “predição criadora”, de W.I. Thomas: “À força de falar de amor, apaixonamo-nos” (Blaise Pascal, Discours sur les passions de l’amour, 1652-1653).
Sou um algoritmo básico: resumo-me a duas sub-rotinas com contador infinito: quando penso, desaguo no Blaise Pascal: no que respeita à música, no Jacques Brel. Se quero pensar, penso com eles; se quero sentir, sinto com eles. São as duas pontas de Ariana do meu labirinto identitário. O resto é variação. Dizem que os olhos são as janelas da alma. Quando ouço Jacques Brel, fecho os olhos para franquear a entrada a anjos e demónios.

Jacques Brel canta, como ninguém, a miséria humana. Tão bem que o ouvimos com prazer. Gosto de La ville s’endormait. Ne me quitte pas é universal. Coloco as versões estúdio e ao vivo, que, no caso de Jacques Brel, não se substituem. Uma voz e uma performance.