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Afinidades entre maneiristas e surrealistas

Nas últimas décadas não publiquei os resultados da maior parte das investigações. Alguns apontamentos no blogue Tendências do Imaginário e um ou outro artigo por convite foram as exceções. Acumulei, entretanto, “legos” de conhecimento. Dando a vida voltas, entendo, agora, partilhá-los. Encetei várias conversas, montagens dos referidos legos: “Amor e morte nas esculturas funerárias”, em outubro, “Apontamentos sobre o ensino da arte” e “O olhar de Deus na cruz: o Cristo estrábico”, em novembro, “Vestir os nus: censura e destruição da arte”, em fevereiro e “A ambivalência do crime na arte”, em maio. “Antepassados do surrealismo: O Maneirismo, será a próxima, no dia 27 de maio, às 17 horas, no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Outras se seguirão, a um ritmo, previsivelmente, mais razoável.

“Antepassados do surrealismo: o maneirismo” perspetiva-se como uma conversa que convoca as principais componentes de um percurso que acumulou e montou, décadas a fio, um conjunto apreciável de legos resultantes de uma investigação caprichosa mas persistente. Associam-se-lhe textos emblemáticos, tais como “O delírio da disformidade” (2002); “Vertigens do barroco” (2007); “Dobras e fragmentos” (2009); e “Como nunca ninguém viu” (2011). Em suma, sintetiza, identifica, motiva e expõe, em jeito de balanço a partilhar.

À maneira das obras abordadas, a conversa deseja-se mais um espetáculo do que uma lição. Inspira-se mais na arte do que na ciência. Portanto, menos espírito de missão e mais instinto de prazer, próprio e alheio. Sobrará, mais ou menos a propósito, tempo para músicas, videoclipes e anúncios publicitários. O conteúdo essencial radica, porém, numa mão cheia de apresentações que confrontam artistas, por um lado, do auge do maneirismo da segunda metade do século XVI (e.g. François Desprez, Wenzel Jamnitzer, Lorenz Stoer, Giovanni Battista Braccelli e Giuseppe Arcimboldo) e, por outro, das vanguardas da primeira metade do século XX, mormente surrealistas, proto-surrealistas e, de algum modo, associáveis (e.g. Giorgio di Chirico, Max Ernst, René Magritte, Salvador Dali, mas também Pablo Picasso, Kasimir Malevich ou Mauritis C. Escher).

Cristalizar parte substantiva de uma vida num momento é aposta arriscada. Para partilhar, convém ser mais que um. Será grato contar com a sua presença.

O riso da mulher grávida (revisto)

Albertino Gonçalves

Este texto corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo já publicado no blogue Tendências do Imaginário (O Riso da velha grávida 2016).

Figura 1. Hieronymus Bosch. As Tentações de Santo Antão. Tríptico, c. 1500. Museu Nacional de Arte Antiga.

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).

Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.

Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.

Figura 7 Velha ama com bebé. Beócia. C.330-300 a.C. British Museum.

Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.

“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).

Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.

Figura 10 Vénus adormecida. Museu de Arqueologia. Valletta, Malta. 4000-2500 aC

Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).

“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).

Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).

“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).

Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).

Figura 18 James Ensor. A morte a as máscaras. 1927

Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.

Figura 19 Mason Williams. Esqueleto tatuado e bebé

A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Figura 20 Dança macabra. Impressa por Antoine Vérard. C. 1491-1492. Fonte Biblioteca Nacional de França

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).

Figura 21 George Grosz. Estou feliz por estar de volta. 1943. Fonte Wikioo.org

Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.

Autor: Albertino Gonçalves

André Soares. Tantas perguntas sem resposta!

Eduardo Pires de Oliveira

Sente-se o perpassar de várias tendências artísticas, um diálogo contínuo de pedras, madeiras e ouro, estuques e espaços.
Não admira o espanto dos visitantes. Nada nele é estranho, é natural. As pedras e as madeiras são como os homens, têm vida, sofrem alterações, vão-se adaptando ao momento que estão a viver.
As peças, os riscos, os ornatos não têm uma função, o criador é livre de os usar conforme o momento ou o espaço em que se encontrar
A obra de André Soares “viveu” múltiplos momentos, sempre diferentes, sempre ao correr do acaso, sempre com imensa sabedoria.

Da mesma forma que durante o colóquio Barroco e a Modernidade, em que um dia falando na sala contígua aquela onde está a obra mais espectacular de André Soares, a capela dos Monges, em que nessa sala deixamos fluir o pensamento, em que as palavras surgiram ao acaso, umas vindas da memória, sobretudo do que conheço da arte do grande Mestre, e outras das peças que existem naquele espaço, também aqui, neste texto, as ideias correrão de forma livre, embora mantendo sempre como referência a figura e a obra de André Soares.

Por essa razão, será profundamente coloquial, não terá notas de rodapé. Mas será, claro, devedor aos vários estudos que Robert Smith e eu próprio já lhe dedicamos.

Comecemos, então.

Aos poucos vai-se conhecendo melhor a personalidade artística de André Soares. E o que não é menos importante, aos poucos vai-se também caracterizando o meio em que viveu, a cidade de Braga e a região do Minho. Falta ainda um estudo sobre a personalidade artística do homem que foi mais importante na sua carreira, o arcebispo D. José de Bragança e, o que não é menos importante, falta saber que obras de arte é que existiam nas casas das famílias nobres existentes na cidade e na região. Só tendo uma ampla perspectiva da vida do arcebispo e de como funcionava a nobreza bracarense se poderá conhecer com a devida extensão este homem, o criador, André Soares. É que não me parece que o povo de então possa entrar neste ambiente, embora a ele tivesse acesso, mas apenas como usufrutuário, nos templos, ao ver os retábulos e todo um enorme conjunto de obras de arte que eram utilizadas no culto.

01 Assinatura de André Soares

Como é que seria fisicamente André Soares? Um homem alto? Ou seria baixo? Alto, entenda-se, para o que era corrente na época em que o homem tinha, seguramente, uma estatura mais baixa que o actual, entre 1,70 e 1,75 metros.

De que cor é que seriam os seus olhos? E como é que se vestia, ele que chegou a aceitar como pagamento uns tecidos. Será que esta indicação nos permite pensar que seria vaidoso? A verdade é que poderia ser porque do pouco que se conhece ele não precisou de trabalhar para viver. Exemplo:  depois de perder uma imensidão enorme de dinheiro num empréstimo que fez em 1758 aos Jesuítas – que no ano seguinte foram expulsos do país, o que inviabilizou o pagamento desse empréstimo – teve capacidade para continuar a adquirir terras para juntar ao vínculo da irmã, Apolónia.

Mas seria vaidoso? E se, acaso, gostava de roupas será que também quereria vê-las adornadas com algumas joias? Sabemos que havia pelo menos um tipo de tecido, o crepe, de que deveria gostar, pois o último pagamento que recebeu em vida foi precisamente neste tecido, não quis aceitar um pagamento de 13$800 réis, antes preferiu que lhe fossem dados trinta covados de crepe e forro que se lhe deu em agradecimento da factura do dito risco por não querer levar por elle dinheiro! E seria um tecido feito em Guimarães? (É que este pagamento foi feito por uma confraria daquela cidade, a dos Santos Passos, pelo projecto de arquitectura da sua nova igreja dos Santos Passos, precisamente a última obra de André). Ou seria um tecido estrangeiro? É provável.

02 Igreja dos Santos Passos, Guimarães

E o que é que comeria? O minhoto não tinha por costume comer peixe, e o bracarense não deveria ser diferente embora existisse em Braga um Mercado de Peixe desde o século XVI, num mercado coberto que estava situado dentro de muralhas – na hoje praça Velha – e que, dois séculos mais tarde, foi mudado para fora de portas, para o actual campo das Hortas. Essa mudança deu origem a uma das maiores, senão a maior, insurreições levada a cabo por mulheres na Braga do século XVIII.

Sim, comeria carne, muita carne como se usava, quem tinha dinheiro para a comprar, claro. E a verdade é que conhecemos um outro pagamento, este em presuntos, nada menos que seis de uma vez só, que lhe foram mandados entregar pelos beneditinos de Tibães em agradecimento pelos riscos que fez para toda a talha que para lá desenhou em 1756, e que foi um mar de retábulos, sanefas grandes e pequenas, molduras de janelas e de janelões e púlpitos. Seis presuntos que valiam 4$800 réis, ou seja, o equivalente a 20 dias de trabalho de um mestre pedreiro da maior qualidade. E pena é que os restantes 22$400 réis que lhe foram pagos pelos beneditinos tenham sido descritos apenas como “mimos”, que hoje não possamos saber o que eram, pois sendo “mimos” seriam coisas que ele gostaria, de certeza. E isso permitir-nos-ia, talvez, conhecê-lo um pouco melhor. E porque é que tendo a família dinheiro bastante viveram numa casa bastante pequena?

03 Casa de André Soares R Visconde Pindela

Estas são algumas das muitas perguntas que gostaríamos de fazer a uma pessoa que tivesse vivido naquela época. Mas Braga só teve um memorialista de relevo, Inácio José Peixoto, que nas suas memórias particulares deixou escritas sobre André apenas estas palavras, palavras maravilhosas:

Na Arquitectura e Desenho depois de Andre Soares, ficou com os maiores creditos Carlos Jose Amarante… (PEIXOTO, Inácio José – Memórias particulares de… Braga: Arquivo Distrital de Braga, 1992, pág. 80).

São palavras que sendo magníficas para se compreender a sua capacidade criadora nada nos dizem sobre a sua vida. Sobre o Homem.

Mas talvez nos digam algo se a elas associarmos a belíssima, fantástica, cartela, a que deixou no Mappa de Braga Primas, de 1755 (?), que depois de passar para a mão dos seus herdeiros acabou em Lisboa, na Biblioteca da Ajuda, onde todos a podemos ver. Se nos fixarmos bem a olhá-la, se nos conseguirmos prender totalmente nela, nos seus arabescos, naquela imensa colecção de ornatos em sucessão, se nos abstrairmos de tudo que não sejam aqueles traços, conseguiremos ver um homem sereno, perdido, pois a mão que tem o “lápis” deixou de ser dele, pertence ao desenho que vai correndo pelo papel, vai deixando novelos e mais novelos.

O seu espírito voou de uma forma que embora muitas outras vezes mais tivesse desenhado e redesenhado outros novelos, só mais uma vez voltou a atingir aquela plenitude, no momento em que teve que desenhar a sua obra-prima, tanto de arquitectura como da arte do retábulo, a capela dos Monges, seguramente o seu testamento artístico, ou não tivesse sido concebida no penúltimo ano da sua vida, mas talvez ainda antes de ele saber que pouco mais tempo iria andar por cá.

06. Capela dos Monges

O lanternim é uma peça excepcional que mede peças a Borromini, Guarino Guarini, Bernini… a todos, mesmo numa listagem sem fim de arquitectos!

07 Lanternim. 08 Guarino Guarini, Bernini, Borromini e André Soares

Aquele retábulo da capela dos Monges é de uma arte fantástica, uma linha que também é curva e contracurva e que para ter mais relevo é, desde o arranque até mais de meio, feito com uma “linha dupla”, e que depois, na parte superior, continuará a ser curva e contracurva, mas agora em ângulo recto, quase parecendo um raio a descer dos céus em dia de tremenda trovoada, um desenho que poucos anos antes, do início dessa mesma década de 1760, usara ali a poucos metros, na fachada da igreja, dos Congregados, claro.

09 Retábulo da capela dos Monges

E esta vontade de repetir, seja na mesma peça, seja quando vai integrar outros desenhos, deixa-nos perplexos, ficamos a perguntar porque é que ele se repete. É que, por exemplo, o enrolamento que se vê no arranque deste retábulo do espaço mais íntimo dos oratorianos, esta capela dos “Monges” (“Monges” porque os oratorianos eram padres, não eram monges, com aspas, portanto) já se vira na sua primeira obra, também ao nível do chão, precisamente na porta do palácio que desenhara para o arcebispo D. José de Bragança; e também naquela imensa “pata”, que é o que parecem as bases das colunas que sustentam aquela selva de ornatos – ou de líquenes? ou de algas? – que é a Casa de Fresco, hoje no parque do santuário do Bom Jesus do Monte. Que, se virmos bem, também tem início em um enrolamento.

10 Enrolamento no arranque do retábulo da capela dos Monges

E que continua em muitos outros lado, sendo que um deles pode estar disfarçado de ornato, na parte inferior, quase rente ao chão – claro! – na parte central da mesa de altar do imenso retábulo de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, na igreja do convento de S. Domingos. E que terminará neste pequeno retábulo desta capela dos Monges. De 1744 (?) a 1768, do palácio arcebispal a esta capela maravilhosa vão 24 anos, vai a vida de André Soares. E sempre este enrolamento serviu de início, de ponto de partida para uma obra maior.

Vinte e quatro anos em que André se desdobrará, em que ele dirá sim a todos os pedidos que lhe foram aparecendo, fossem obras que teriam que forçosamente ter um desenho simples, como é o caso do conjunto de talha que desenhou para a capela de S. Miguel-o-Anjo, uma das capelas mais simbólicas da cidade, porque era nela que os arcebispos despiam a roupa de viagem que traziam desde Lisboa e mudavam para os trajes mais ricos e cerimoniais. É que logo de seguida, daí a meia dúzia de metros, iriam pegar nas chaves de prata que numa bandeja do mesmo material a vereação da Câmara Municipal lhe entregaria antes de penetrar a Porta Nova, e entrar na sua cidade, na cidade de que eram Senhores: temporais e religiosos.

Apesar desta tremenda importância simbólica, a talha que foi desenhada para esta capela só pôde ser executada seis anos depois daqueles dias em que entregara os seus projectos aos responsáveis da confraria e que, mesmo sendo assim, mesmo tendo havido esta espera que poderemos considerar longa, teve de ser uma obra simples, que custou apenas 203$000 réis, o que parece ser muito dinheiro mas não é porque a obra é extensa, é o retábulo-mor, dois laterais, dois púlpitos, várias sanefas e duas portas, que tudo seria entalhado por um dos dois maiores entalhadores de Braga, Jacinto da Silva.

11 Mosteiro de Tibães

O que é notável é que exactamente naquele mesmo ano de 1756 André Soares tenha aceite desenhar um conjunto tão completo como é o “mar de talha” rococó que é a igreja do mosteiro de Tibães, em que os monges deveriam querer uma obra muito complexa, extremamente complexa, tanto que o valor da empreitada atingiu mais de seis contos de réis, talvez o maior valor alguma vez contratado em uma só empreitada de talha, em Portugal. E também é notável que nesse mesmo ano tenha aceite conceber uma obra tão simples como o foi a talha desta capela de São Miguel-o-Anjo. Duas obras tão contraditórias!!! Poderei enganar-me, mas fico a pensar que o que André queria era que lhe propusessem lugares onde pudesse aplicar a vontade que deveria ter em deixar correr o “lápis” sobre o papel, desenhar obras… e obras, e mais obras…

Essa é, talvez, a razão para a existência de obras que por vezes podem parecer muito díspares, como é o caso das janelas que desenhou em 1755 para a esquina do convento dos Congregados, entre o antigo campo de Santa Ana e a cangosta da Palha. Aquele cunhal, com seis janelas diferentes, quase parece um catálogo, quase parece que se estava a divertir enquanto imaginava novos desenhos para novas janelas. Em nenhum outro local da cidade, em nenhum tempo da História de Braga, vemos uma diversão como esta, em arquitectura, nem mesmo no cunhal da igreja de Santa Cruz.

12 Convento dos Congregados

E esta questão remete-nos de novo para qual seria a capacidade quer da cidade, quer dos seus criadores, entenderem obras deste calibre. Janelas que se destacam pelo volume das suas molduras, volto a dizer sem par na cidade, protegidas que estão por um “mar” de linhas na cornija, 25, algo que também não teve paralelo na cidade e no país.

13 Cornija da esquina do convento dos Congregados

[Curiosamente 25 linhas numa cornija, mais ainda que as que Francesco Borromini, o mago das linhas onduladas e desmultiplicadas e das cornijas, alguma vez usou!!!]

“Mar”, palavra que já utilizo pela segunda vez, a primeira a propósito da imensidão da sua talha na igreja de Tibães, agora aqui nos Congregados, –  onde obrigou os pedreiros a trabalhar a pedra com a mesma fluidez–, no topo do edifício, a caminho do céu…

“Mar” que é sinónimo de abundância, de volume. Volume que foi uma realidade na sua arte, uma constante. E que deveria deixá-lo muito, muito tenso.

Explico: um psicólogo que olhe a sua arte verá que tanto quanto o apego a ornatos vegetais ou a linhas curvas, o que há em André Soares é uma eterna tensão entre fortes volumes e uma imensa fluidez, entre o gosto do tardobarroco e o do rococó, dois estilos que embora se sucedam nada têm a ver entre si, quase apetece dizer que um, o barroco, são os blocos de rijo granito com que foram construídos os edifícios e o outro, o rococó, o ar e o céu em dia claro e com fragância de primavera que envolve esses mesmos edifícios… Se olharmos o retábulo da capela dos “Monges” veremos que ele é fluidez na maneira como a linha (várias vezes dupla) corre, seja a ondulante, em SSS, seja a recta, em contracurvas, linha que que corre com fluidez pela imensidão de espaços abertos, vazados – o que também pode ser entendido como um artifício porque sendo aquele espaço muitíssimo curto, os vazados permitem prolongar o ponto de fuga, fazer parecer que o espaço é um pouco maior.

14 Retábulo da capela dos Monges. Pormenores

Mas porque são vazados permitem-nos, também, sentir com mais força os volumes que tem, como igualmente sugerem as linhas ondulantes. Vazados que estão um pouco por todo o lado, em áreas umas vezes relativamente grandes e que outras vezes não são mais do que pequeníssimos pontos.

E semi-vazados, como que pequenas “grutas”, madeira que é fendida, com “buracos” profundos que, contudo, não a trespassam em toda a sua espessura, como aquela imensa “flor” que se projecta na extremidade do ático sobre o espaço da nave, com uma dimensão monumental, ou no motivo mais leve, mais discreto, na zona central, logo acima da mesa de altar, logo abaixo da abertura do camarim.

Ou mini-vazados, como são os “amendoins”, para utilizar aqui uma palavra que foi cara a Robert Smith e por ele inventada para o estudo da talha de André Soares, André Soares que sendo, tendo, sem dúvida, existido, não seria conhecido se não fosse aquele professor americano lhe ter dado visibilidade. “Amendoins”, pequenas marcas cavadas na madeira do retábulo e que têm uma função em tudo semelhante ao estofado da escultura, faz-nos parecer que a obra tem mais volume!

As contradições foram uma constante em André. A maior foi a dos gostos que imprimiu às duas maiores disciplinas a que se dedicou, a arquitectura e a talha. Como já afirmei noutros textos, depois de uma obra em que o barroco joanino está muito presente, precisamente a primeira, o palácio do arcebispo, logo embarca no delírio da linha, primeiro a do ornato, depois a linha curva.

15 Casa da Câmara

A partir de 1753 prescinde, na arquitectura, do ornato, risca a Casa da Câmara de Braga, quase parecendo que queria fazer uma catarse, esquecer a peça, a Casa de Fresco, que no ano anterior desenhara para os jardins do palácio do seu arcebispo.

16 Casa de Fresco

Depois, continuará com a linha curva, mas por razões que desconhecemos irá colocar em cada uma das suas obras um arremedo de um ornato assimétrico, sendo a peça mais interessante a belíssima fonte que está no adro do Bom Jesus do Monte, logo acima da entrada do elevador, o ornato está a envolver o pequeno bico por onde corre a água, ornato que tem um desenho muito… fluido. É leve o desenho desta fonte, cheia de vazados, que lhe dão uma leveza que contraria o material em que foi feito, o rijo granito, desenho que, se reflectirmos um pouco, veremos que vai preparar o que década e meia mais tarde seria utilizado no retábulo da capela dos Monges.

17 Fonte no Bom Jesus do Monte

Na talha estaria mais próximo dos gostos do rococó. Mais do que a forma, é a enorme profusão de ornatos que se torna notada. Do mesmo jeito que há a parábola sobre o menino contar as areias do mar, pode dizer-se o mesmo sobre a extrema dificuldade em saber quantos foram os ornatos que André utilizou na talha da igreja de Tibães ou no altar de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, tal a profusão com que “enxameiam” aqueles retábulos, sanefas e molduras. Ornatos que se “colam” a uma arquitectura poderosa, que a transformam, quase diria que a transgridem ao querer escondê-la.

18 Retábulo de Nª Sª do Rosário. Igreja do Convento de S. Domingos

E esse é outro cuidado que terá de estar bem presente sempre que quisermos olhar, entender as obras de André Soares: não havia limites no que fazia, não havia limites nos sentidos que os ornatos, que cada coisa poderia ter. Esse o maior dom dos grandes criadores, para eles não há limites, o que aqui se usou com um sentido, ali pode ter uma função diferente. A realidade não existe, não há uma forma definida, há o momento, o acaso do momento.

Mas estes acasos não impedem, naturalmente, que existam tendências. Uma, por exemplo, é a do desenho que dá aos elementos vegetais, entendendo-se aqui como elementos vegetais os caules e as flores, porque em outros momentos, sobretudo em meados da década de 1750, desenhou muitos ornatos que semelham algas. A partir de 1763, sobretudo a partir do retábulo da capela da Senhora da Agonia, André desenhou flores que deixaram de ser abertas, espessas, volumosas; são antes caules leves, torsos, que parecem velhos, corolas abertas com pétalas deitadas. Será que pressentia que o seu fim não andava longe?

19 Retábulo da Igreja de Nª Sª da Agonia

Podemos escrever palavras como as que vão acima, dizer que praticou um determinado tipo de desenho. Mas mais do que tudo o que nos deve interessar é o tentar perceber o que é que levou André Soares a fazer esse desenho. O mais importante quando se estuda um artista é precisamente isso, perceber o porquê de cada gesto, aqui porque é que desenhou flores, porque é que as flores tinham este desenho e não aquele, porque…

E em André Soares tudo tem um início. Ele não teve uma formação escolar, não frequentou uma escola de arquitectura ou de engenharia, ou de design para se abalançar na arte do retábulo. A sua escola, acredito, foi, tão só, uma curiosidade imensa, foi o ver o que tinha sido feito noutros locais e, depois, reinterpretar. Vejam-se os grandes C que percorrem a sua talha, seja na forma apenas de C, seja em C + C, um colado ao outro, um com o desenho normal, outro com desenho inverso. E com este duplo C, um normal em cima de outro inverso, encontramos outra forma igualmente bela, um S, forma que tem um sentido barroco ainda mais latente, o que em André Soares talvez não tenha sido fruto do acaso.

É um C que pode ser usado como elemento decorativo ou que, associado, pode servir para moldar as paredes laterais de sacrários, como, por exemplo – e mais uma vez – o da capela dos Monges. Mas também são C e S que, por vezes, têm a parte terminal florida pelo que não sabemos se começou aí o seu gosto por flores. C com pontas floridas, uma ideia que vem de pinturas tardo-maneiristas, já de inícios do século XVIII, seja como as que ainda hoje se veem no belo tecto da nave da igreja da Misericórdia de Viana do Castelo, seja no que existiu na capela de S. Geraldo, na Sé de Braga, que os Monumentos Nacionais fizeram desaparecer na campanha de restituição da “pureza” românica da Sé de Braga, porque o antigo, o medieval, lhes merecia mais respeito que o barroco!!! Estas palavras não são minhas, são dos técnicos que serviram a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960. Acreditamos que André Soares pode ter visto um destes tectos e, acaso, ter gostado. Terá sido assim?

Quem é que foi André Soares? Que vinho teria gostado mais de beber nas suas refeições, branco ou tinto? Ou palhete?

20 Arquivo da Capela de S. Miguel o Anjo

Embora a cidade e a região o admirasse, até onde é que a sua arte poderia ter ido se tivesse beneficiado de aprendizagem numa escola exigente, tivesse trabalhado para um público conhecedor, se tivesse a companhia de colegas tão bons quanto ele para dialogar, para questionar ou ser questionado?

Estas e tantas outras perguntas ficarão para sempre sem resposta. É que o seu assento de óbito, ao contrário de muitos outros, é seco, formal, inexpressivo, não nos nada adianta sobre os seus gostos, devoções, religiosidade, vida. Nada nos diz. Nada mesmo.

Mas também não faz mal. Talvez até tenha sido bom ser assim pois ficamos com o espaço aberto e o espirito livre para passear pelas suas linhas, pelas suas formas, pelos seus volumes e, dessa forma, poderemos deixar o nosso olhar e a nossa cabeça, o nosso sentir correr livremente pelas maravilhosas obras que nos legou.

Obrigado, ANDRÉ!

Eduardo Pires de Oliveira, doutorado em História de Arte, investigador integrado do ARTIS / Universidade de Lisboa, prémio José de Figueiredo 1993, da Academia Nacional de Belas Artes, é autor de Braga. Percursos e memórias de granito e ouro (1999), História da Associação Comercial de Braga (2000), Os alvores do Rococó em Guimarães e outros estudos sobre o barroco e o rococó do Minho (2003), Imagens da Ribeira Lima (2003), Estudos sobre André Soares, o rococó e o tardobarroco no Minho e no Norte de Portugal (2 vols. 2017/2018), Minho e Minas Gerais no séc. XVIII (2016), 18 olhares sobre André Soares (coord. 2019) e O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte, Ponte de Lima (2021).

Circuito de Generosidade

«Stultorum chorea». Dança dos tolos. (1550-1600), gravura de Frans Hogenberg (© British Museum).

No anúncio “Noel 2022”, da Coop, uma corrente de entreajuda forma uma roda: quem recebe um gesto de generosidade prossegue-o até regressar ao primeiro par, num encadeamento circular que lembra o circuito Kula das ilhas Trobriand (Bronislaw Malinowski). Bonito? Muito. Improvável? Bastante. Possível? Talvez, durante o Natal. Pelo menos, na imaginação. A roda da vida a sobrepor-se às danças da morte e dos tolos.

Dança macabra. Mosteiro dos Bernardinos. Séc. XVII. Cracóvia.

Marca: Coop. Título: Nöel 2022. Suíça, novembro 2022.

Indolência extravagante

  • AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO
  • Indolência aberrante
  • As lentas nuvens fazem sono,
  • O céu azul faz bom dormir.
  • Bóio, num íntimo abandono,
  • À tona de me não sentir.
  • E é suave, como um correr de água,
  • O sentir que não sou alguém,
  • Não sou capaz de peso ou mágoa.
  • Minha alma é aquilo que não tem.
  • Que bom, à margem do ribeiro
  • Saber que é ele que vai indo…
  • E só em sono eu vou primeiro.
  • E só em sonho eu vou seguindo.
  • (Fernando Pessoa, Poesias Inéditas, São Paulo, Poeteiro Editor, 2014)

De evento em evento, não me apetece pensar. Pasmo, escuto música e embalo os sentidos. Abandono puro. Não me serve qualquer música. Nem dos gavetões, nem das estantes, mas das raras e singulares, que releguei para as pastas de arquivo. Por exemplo, o folk psicadélico “esquisito” (weird) de Devendra Banhart, que, por sinal, adora Portugal. Conhece?

“O cantor norte-americano Devendra Banhart gostou tanto da recepção que obteve durante o “Festival para Gente Sentada”, realizado na cidade de Santa Maria da Feira, que decidiu homenagear a cidade nesta bonita canção interpretada em espanhol/castelhano” (Devendra Banhart encanta-se por “Santa Maria da Feira” (2005). Portugal através do mundo: http://portugal-mundo.blogspot.com/2007/11/devendra-banhart-encanta-se-por-santa.html).

Devendra Banhart. Santa Maria da Feira. Cripple Crow. 2005

Em 2020, regressou a Portugal para apresentar o álbum Ma. Segue a gravação da canção Is This Nice na Antena 3. O vídeo 4 retoma esta canção mas em versão estúdio.

Devendra Banhart. Is This Nice?. Ma. 2019. Ao vivo na Antena 3, Portugal, fevereiro 2020

Acrescento a interpretação acústica de Never Seen Such Good Things, um dos seus maiores sucessos.

Devendra Banhart. Never Seen Such Good Things. Mala . 2013. Ao vivo, L’Express, 2013
Devendra Banhart. Is This Nice. Ma. 2019. Versão estúdio.

Humor Batráquio. Estupidez e Esperteza

Por Pawell Kuczynski

“Nunca atribuas à malícia o que pode ser explicado pela estupidez humana” (Robert A. Heinlein)

“Nunca subestimes o poder da estupidez” (Robert A. Heinlein)

O perigo espreita, o turista inventa e a seguradora promete. O anúncio Frog, da companhia de seguros argentina Turismocity, confronta-nos, mediante um discurso simples com final inesperado, com uma interrogação: a esperteza enxerta-se na estupidez?

Marca: Turismocity. Título: Frog. Agência: Dhélet VMLY&R. Direção: Andrés Sehinkman & Jonathan Barg. Argentina, 2021.

Há muito que ando tentado a partilhar o ensaio satírico As Leis Fundamentais da Estupidez Humana de Carlo M. Cipolla (1988). Nunca é tarde.

Encomendação das almas. Vice e Versa

O Tendências do Imaginário está a desviar-se do pensamento para o sentimento. Importa travar. A quem interessam os acordes de um violino pessoal?

Por quem lá tendes. Encomendação das Almas. Um filme de António Ventura. Idanha-a-Nova, 2017

Dor em quarto minguante no clamor da madrugada. Fogo que queima as nuvens. Seara que aborrece a ceifeira. Sarabanda em eira despida. Teimosia realizadora da esperança. Encomendação do Aquém, pelos presentes. O outro lado da encomendação das almas, filmada em Penha Garcia, Idanha-a-Nova, por António Ventura, numa bela curta-metragem documental de 2017. Agradeço a partilha à Rita Ribeiro. Como contraponto, três músicas do grupo irlandês The Pogues: Dirt Old Town; Young Ned of the Hill; e Tuesday Morning.

Por quem lá tendes. Curta-metragem Documental. Realização: António Ventura. Penha Garcia, Idanha-a-Nova, 2017
The Pogues. Dirt Old Town. Rum Sodomy & the Lash. 1985. Live At The Olympia, Paris, 2012
The Pogues. Young Ned of the Hill. Rum Sodomy & the Lash. 1985. Live At The Olympia, Paris, 2012
The Pogues. Tuesday Morning. Waiting for Herb. 1993. Live At The Olympia, Paris, 2012

Voar sem dar cabeçadas no céu

Gosto do artista belga Jean-Michel Folon (ilustrador, pintor e escultor, 1934-2005). Também gosto do cantor francês Yves Duteil. Gosto de ouvir Duteil a cantar Folon. Sam ambos criativos, joviais, sensíveis e ternurentos. Apraz-me recuperar dois pequenos vídeos com gravuras de Folon: Comme Dans Les Dessins de Folon, de Yves Duteil; e Levitar, que montei em 2013, com a música Emmanuel, de Michel Colombier.

Yves Duteil, Comme Dans Les Dessins de Folon, La langue de chez nous, 1985. Imagens de Jean-Michel Folon. Montagem do vídeo: Christine Glassant, 2011.
Albertino Gonçalves, Levitar, 2013. Imagens de Jean-Michel Folon e música de Michel Colombier (Emmanuel, Wings, 1971; versão de Toots Thielemans. Colombier Dreams, 2002).

A Ave, o casal e a lápide

Lançamento do livro Uma Paisagem Dita Casa, 1 de agosto de 2022. Fotografia: Conceição Gonçalves

Prometi, há dois meses, colocar o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro” logo após o lançamento do livro Uma paisagem dita casa, de João Gigante, integrado no programa Quem somos os que aqui estamos?, do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço. Aconteceu ontem.

Lançamento do livro Uma Paisagem Dita Casa. Melgaço, 1 de agosto de 2022. Assistência. Fonte: Melgaço, Portugal começa aqui

Tenho vindo a afastar-me da nobre missão de facultar ciência. Contento-me com namorar o conhecimento. A autoridade da lição e do relatório cede à desenvoltura da poesia, do conto ou da comédia. Entrego-me ao gozo da descoberta e da escrita e aposto no prazer do eventual leitor. Sem lonjuras nem distâncias, próximo das realidades e dos públicos. “A ave, o casal e a lápide” presta-se a ser lido como um romance policial. Nem sequer foi preciso reordenar as etapas da pesquisa. O texto espelha o percurso efetivo. Constitui um exemplo de investigação tal como sucede. Confesso algum carinho por estas páginas: não pretendem desvendar a realidade, mas acrescentar e valorizar; não contabilizam, satisfazem.

Segue o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, in Gigante, João, Uma paisagem dita casa, Ao Norte, 2022, pp. 124-139. Acresce a reportagem da visita, em 2021, do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao MDOC.

Cerimónia de encerramento e entrega de prémios do MDOC – Festival Internacional de Documentários. Melgaço, 08 de agosto de 2021. © Mário Ramalho/Presidência da República.

Horae ad usum Parisiensem. Antecipação medieval do surrealismo

Grandes Heures de Jean de Berry Fol. 12v

Há muito que andava à pesca do livro Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry], concluído em 1409. Acabo de o encontrar na Biblioteca Nacional de França. Reservados às elites, luxuosamente ilustrados com gravuras fabulosas, os livros de horas multiplicam-se durante a Baixa Idade Média. Correspondem a uma viragem da relação dos cristãos com o divino: a oração, retomada várias vezes, a horas certas, ao dia, é assumida em ambiente privado com recurso à mediação de imagens. Sobreviveram milhares de livros de horas. Em Portugal, o mais célebre é o Livro de Horas de D. Manuel (entre c. 1517 e c. 1538), publicado pela Imprensa Nacional e Casa da Moeda (1983).

Com capa original de veludo violeta, com dois fechos de ouro, rubi, safira e seis pérolas, o manuscrito das Grandes Heures de Jean de Berry (300X400 mm) é composto por 126 folios (252 páginas) com calendário (f. 1-6), horas de Nossa Senhora (f. 8-42), sete salmos da penitência e litania dos santos (f. 45-52), pequenas horas da cruz (f. 53-55) e do Espírito Santo (f. 56-58), grandes horas da Paixão (f. 61-85) e do Espírito Santo (f. 86-101) e ofícios dos mortos (f. 106-123). O livro está disponível, para consulta e descarga, no seguinte endereço https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Segue uma montagem de uma das primeiras Horas de Nossa Senhora, acompanhada por uma galeria com iluminuras provenientes das margens, uma autêntica “antecipação” medieval do surrealismo do século XX (ver outros casos de “antecipação” histórica do surrealismo nos artigos: https://tendimag.com/2020/03/24/aula-imaterial-4-maneirismo-e-surrealismo-sonhar-o-pesadelo/; https://tendimag.com/2020/04/04/aula-imaterial-5-maneirismo-e-surrealismo-2-humanoides/; https://tendimag.com/2012/05/05/braccelli-a-maneira-surrealista/).

Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry]. Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Galeria: Gravuras nas margens das Grandes Heures de Jean de Berry (carregar para aumentar). Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510.