A identidade e o selo postal


Quanto mais ínfimas e exclusivas, pequenos restos de um nós menor, se revelarem as memórias mais nos resguardam do tédio e do apagamento. Paradoxalmente, quanto mais nossas, maior gozo dá partilhá-las. Como selos postais carimbados pelo destino. A música propicia-se a este contrabando miúdo.
Seguem três canções interpretadas por Willy deVille (1950-2009): Heaven Stood Still; Let It Be Me; e Night Falls.
Apego à terra. Fotografias de Castro Laboreiro
Segue o artigo “A despovoada, bela e bravia Castro Laboreiro vive no passado à espera do fim”, do Jornal Público, com 8 fotografias magníficas de Bruno Fernandes. Carregar na imagem para aceder ao artigo.
Conversas soalheiras

Nos últimos dias estive arredado da Internet. Reentreguei-me, com bengala e apoio, ao dito “trabalho de terreno”, em Castro Laboreiro, para as bandas da Senhora de Anamão. “Trabalho de terreno não é designação apropriada”: nem colheira de batatas, nem trabalho, apenas o desafio e o prazer de conversar entre velhos. Os castrejos dominam a arte da palavra: franca, hábil, substantiva e certeira. Furtando-me a despiques, que sei perder, apenas escuto e incentivo. Mesmo assim não me poupam: “o senhor é fresco”; “sabe-a toda”, “é preciso ter cuidado consigo”, “não é agora de velhos que vamos começar a namorar”.

Os testemunhos fluem par memória futura: “dizíamos cada palavrão”, “enchíamos as bexigas com água para molhar a gente”; “púnhamos tojos num saco para atirar”; “até subimos com a mula da moleira pelas escadas para entrar na casa”; “numa vez fizemos um burro de madeira, deste tamanho [cerca de um metro de altura”, vestimo-lo e andamos com ele por todo o eido”; “vinha [fulana] da fonte com o caneco cheio de água e [sicrana] enfiou-lho todo pela cabeça a baixo, ficou toda molhadinha, não teve outro remédio senão ir buscar outro… não! não levou a mal! o entrudo tocava a todos, ninguém se punha de fora”; “dizíamos cada palavrão!”…
Regressei por entre fragas e prados com o corpo torrado e moído mas a alma vigorosa e fresca, como o rio Laboreiro a correr para o Minho e o Minho para Moledo. Seguem três canções interpretadas por Né Ladeiras: Todo Este Céu; Benditos; e A Lenda da Estrela.
Canções frias

Gosto do Klaus Nomi, um cometa extraordinário que teve uma breve passagem pela música antes de ser vítima da sida em 1983. Quase todas as suas canções estão contempladas no Tendências do Imaginário. O que não me impede de continuar a procurar versões com melhor qualidade. Encontrei três respeitantes a outros tantos covers: The Cold Song, da ária What Power Art Thou?, da ópera King Arthur, de Henry Purcell (1691); Can’t Help Falling in Love, de Elvis Priesley; e Death, da ária Dido’s Lament, da ópera Dido and Aeneas, de Henry Purcell (1689). Com votos de frescos sentimentos!
Massa cósmica

Há muito que não me deparava com um anúncio apostado na estetização de alimentos. Em tempos, foi moda. Este Pasta is born, dedicado às massas Barilla, não desmerece. Coloco duas versões: a primeira segundo o critério do realizador (director’s cut), a segunda adotada para o anúncio propriamente dito. Serve para partilhar uma ideia de quão diferentes podem ser.
Atração sem união

Bem concebido, com imagem, música e “coreografia” notáveis, o extenso (5:40) anúncio holandês We Will Become Beter, para a Rede LGBT Russa (Russian LGBT Network), em que dois homens propendem a aproximar-se sem, contudo, conseguir alcançar-se, obteve o prémio Golden Drum.
“In July 2020, Vladimir Putin changed the Russian constitution to ban same-sex marriage with an amendment that explicitly defines marriage as between a man and woman. It has encouraged a wave of hate crimes including beatings, rape and torture that continue to this day. One year on from the constitutional change, we released a film to challenge these offensive portrayals of same-sex relationship with a simple message: ‘Love is everyone’s right’. By making and releasing the film we took the risk of essentially breaking the Gay Propaganda law. This is the first Russian LGBTQIA+ film in years that actually portrays a gay relationship and the country’s first anti-homophobic project” (Russian LGBT Network).
Paredes, Sede e Morte
Sede e morte, a sede do morto, uma sede de morrer. Uma música, um anúncio, um vídeo. Paredes, Amstel, Animais. Carlos Bica, Mariana Abrunheiro e Ruben Alves. Três Sede e Morte, três versões de Carlos Paredes. Três, o número mágico-religioso por excelência. Um mais três quatro, e o macho se torna fêmea. Estou a escrever sobre diabos, bruxas e vampiros.
Tangível

Corda a corda, a vida vibra. Seguem três músicas interpretadas pela harpista galesa Catrin Finch.
O contágio do estigma

“Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, frequentemente de aspecto sobrenatural, tais como “sexto sentido” ou “percepção”:

“Alguns podem hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto que outros generalizam a deficiência de visão sob a forma de uma gestalt de incapacidade, de tal modo que o indivíduo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguê-lo como se ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão sujeitos a um tipo único de avaliação, supondo ou o indivíduo cego recorre a canais específicos de informação não disponíveis para os outros.”” (Erving Goffman, Estigma, 1ª edição 1963).
Confirmo. Durante o período em que estive sem mobilidade até os mais parvos se estimavam mais inteligentes. Preso à cadeira de rodas, observava, nada surpreendido e um pouco resignado, a caravana a passar. Personagens como o detetive Robert T. Ironside, protagonista paralisado numa cadeira de rodas da série norte-americana Ironside (Têmpera de Aço, NBC de 1967 a 1975) representam uma exceção excessiva que confirma a regra.
Mas não sobrevem apenas um efeito de contágio. Quando o estigma desaparece, pode ocorrer, também, um efeito de prolongamento. A atitude mantem-se para além das condições que a justificaram. Em casos como este, Pierre Bourdieu fala em “histerese do habitus”. Arrumada a cadeira de rodas, a ilusão continua. A comodidade e a condescendência insistem em subestimar a inteligência e, como é costume nestas situações, a dignidade do “resgatado vulnerável”. Entretanto, sinto que estou a perder a paciência.
Voar sem dar cabeçadas no céu




Gosto do artista belga Jean-Michel Folon (ilustrador, pintor e escultor, 1934-2005). Também gosto do cantor francês Yves Duteil. Gosto de ouvir Duteil a cantar Folon. Sam ambos criativos, joviais, sensíveis e ternurentos. Apraz-me recuperar dois pequenos vídeos com gravuras de Folon: Comme Dans Les Dessins de Folon, de Yves Duteil; e Levitar, que montei em 2013, com a música Emmanuel, de Michel Colombier.