O peso das coisas
Pega no presente e pulsa o ritmo cadente de um músculo novo que nasce sem esforço porque se inventa como o vento e as marés (João Negreiros. O Manual da Felicidade. 2015).
Em tempo de exultação da leveza, o peso e a robustez não se intimidam. Dá-me um extremo e mostro-te o outro. Uma barra tem dois extremos. Dobrada, os extremos tocam-se. O mundo anda assim, dobrado, com as distâncias a dançar tango. Fácil de dizer, mas difícil de ilustrar. Estes quatro anúncios a automóveis vêm a talhe de foice: apostam no valor da robustez, com a leveza na lapela.
A carrinha Ford aguenta a violência dos gorilas, mas é um brinquedo na sua mão. A Toyota enfrenta a fúria do mar, mas flutua como uma boia de pesca. A Dodge perfura o planeta, num voo caído, sem fundo.
No anúncio da General Motors, os automóveis, pesados, levitam. Não existe uma via única para conjugar leveza e levitação. Até as ilhas levitam ou voam, como nas viagens de Gulliver, nas pinturas de Magritte ou nos vídeos dos Gorillaz. Na Idade Média, gordos e magros desafiaram a gravidade. Gostava de te sussurrar ao ouvido que para voar não é preciso ter asas, mas peso. Para voar, importa começar. E não te esqueças de fazer um sinal, “um bom sinal, um sinal de que não estamos fixos” (ao jeito de Jacques Prévert). Estende-me um tapete e descolarei, como São Bento, rumo aos céus.
Marca: Ford Ranger. Título: King Kong. Agência: J. Walter Thompson. Direcção: Thanonchai Sornsriwichai. Tailândia, 2005.
Marca Toyota Tacoma. Título: Tide. Agência: Saatchi & Saatchi (Los Angeles). Direcção: Baker Smith. USA, 2006.
Marca: Daimler Chrysler Dodge Nitro. Título: Planet. Agência: BBDO (New York). Direcção: Acne. USA, 2006.
Marca: General Motors. Título: Elevation. Agência: Deutsch (Los Angeles). Direcção: Phil Joanou. USA, 2007.
O triunfo sobre a morte
No artigo precedente, visitámos a Igreja de São Martinho, em Artaíz, Navarra, para apreciar uma figura com três faces. Cumprido o objetivo, seria curial retomar o fio de rumo. Mas o olhar vadio adora desviar-se. Deleita-se a abarcar o conjunto e atarda-se nos pormenores, seguindo uma cinestesia cara a Blaise Pascal (Pensamentos, 1670) e a Edgar Morin (Comune en France, 1967). Já que estamos na Igreja, convém aproveitar. O olhar vadio é oportunista, ávido de “factos imprevistos, anómalos e estratégicos” (Robert K. Merton, Social Theory and Social Structure, 1949). É flâneur (Charles Baudelaire, Georg Simmel, Walter Benjamin). Deambula até se perder, sem lograr resultados transaccionáveis.
Compensa dar a volta à igreja. O cachorro com a mulher pecadora a parir uma criança é figura recorrente. O falo ainda mais. Encontramo-lo onde menos se espera. Nas cenas da Bíblia esculpidas nos espaços entre os cachorros, cativa, sobremodo, a atenção o episódio da descida de Cristo ao Inferno. A escultura mostra Cristo a resgatar, com uma mão, Adão da boca do inferno; com a outra segura o bastão com a cruz, assente numa caveira. Eis um “facto imprevisto, anómalo e estratégico”.
Será que existem imagens semelhantes? Percorremos, na Internet, cerca de uma centena de pinturas e esculturas dedicadas à descida de Cristo ao inferno. Em boa parte, o bastão está ausente. Nas outras, o bastão ora é meramente simbólico, ora desempenha duas funções: ajudar a arrombar a porta do inferno; ou subjugar o demónio aprisionado. Em nenhum caso, o bastão se apoia numa caveira.
Entre a crucificação e a ressurreição, Cristo abre as portas do inferno e liberta os santos, começando por Adão e Eva. Quanto aos demónios, ou estão acorrentados aos pés de Cristo, ou estão presos nos destroços da porta ou se mantêm à distância. Em algumas imagens, raras, Cristo subjuga o diabo com o bastão.

The Harrowing of Hell. Bibliothèque nationale de France, detail of f.370r. Augustine, De Civitate Dei. 1370.1380.
Na descida ao inferno, Cristo vence o diabo, as trevas e a morte. Vence a morte pela sua ressurreição e pela ressurreição dos santos: ”Os sepulcros se abriram, e os corpos de muitos santos que tinham morrido foram ressuscitados” (Evangelho de São Mateus, 27: 52). Na Igreja de São Martinho de Artaíz, está esculpido o triunfo de Cristo sobre a morte, tal como rezam as escrituras. Não registei nenhuma imagem equivalente. Presume-se que existem, mas raras. É preciso desencantá-las. Muito tenho escrito sobre o triunfo da morte. É compensador escrever, nem que seja por uma vez, sobre o triunfo sobre a morte.
Termina mais uma travessia. Saltou-se do híbrido de duas faces dos Dvein (pormenor) para o “Janus” da Igreja de São Martinho de Artaíz (pormenor); observaram-se as esculturas da igreja (panorama) retendo a cena com a descida de Cristo ao inferno (pormenor); para comparação com imagens congéneres, alargou-se o olhar à Internet (panorama). O olhar vadio entrega-se à deriva de movimentos e à alternância de planos, ora micro, o pormenor, ora macro, o panorama. Pelo caminho acontece a aprendizagem e a descoberta. Neste mundo, é preciso invocar alguém para ser alguma coisa. Uma vela pelo Paul S. Feyerabend (Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge.1975)!
Galeria de imagens: a descida de Cristo ao inferno.
Deste lado da lua
Roberto Chichorro é um pintor moçambicano radicado, a partir dos anos oitenta, em Portugal.
Nos seus quadros, aluados, a vida não adormece, prolonga-se pela noite dentro, morna e mágica.
Lembra Marc Chagall, mas em versão mais colorida e mais voluptuosa.
Álvaro Lobato de Faria caracteriza bem a pintura de Chichorro no seguinte texto: http://defesesfinearts.com/2011/01/mac-lisboa-agua-de-cheiro-po-de-arroz-em-tempo-de-beija-flor-e-papagaio-de-papel/, que passo a citar:
“Chichorro não representa. Cria mundos. Abre-nos frestas de portas. E acorda em nós o desejo de espreitar. Vermos sem sermos vistos. Sermos de novo meninos, em noite escura de insónia ou de bicho papão, à procura de um mundo de luz e cor que não é nosso, para espantar o medo. / O nosso reino de fantasia, denso e subtil, realista e fantástico, onde os homens ensinam os bichos e os bichos aprendem a ser homens, na festa das cores da vida. / Aqui tudo se passa à noite. Nunca amanhece. Mas não existe tristeza, só nostalgia…” (Álvaro Lobato Faria).
A página Movimento Arte Contemporânea contém cerca de uma centena de imagens de quadros de Roberto Chichorro. Segue um pequeno documentário e uma galeria de imagens.
Exposições Roberto Chichorro no Porto e Lamego @ Canal 180.
Galeria com imagens de quadros de Roberto Chichorro.
- 01. Roberto Chichorro., Janela com gato emulher devermelho. 2010.
- 02. Roberto Chichorro. Acordes em Azul com Flores. 2008.
- 03. Roberto Chichorro. Festa circense. 2013.
- 04. Roberto Chichorro. Festa em Noite Suburbana. 2010.
- 05. Roberto Chichorro. Memórias de Cabra Cega. 2009.
- 06. Roberto Chichorro. Noivamento com beija-flor em noite de muitos sonhos.
- 07. Roberto Chichorro. Namoro Embandeirado por Pássaros. 2011.
- 08. Roberto Chichorro. Oferendas. 2009.
- 09. Roberto Chichorro. Regresso Musicado. 2008.
- 10. Roberto Chichorro. Sapato cor de rosa para dia de casamento. 2008.
- 11. Roberto Chichorro. Sonho de Columbina. 2010.
- 12. Roberto Chichorro. Venda de Sonhos. 2009.
- 13. Roberto Chichorro. Guitarrista.
- 14. Roberto Chichorro. Rodar de Pião.
- 15. Roberto Chichorro. Sem título. 1999.
- 16. Roberto Chichorro. Sonho circense com lágrimas. 2006.
- 17. Roberto Chichorro.
- 18. Roberto Chichorro.