Pinga-amor
Cupido tem as suas preferências: dispara setas junto aos cacifos das escolas, nos parques, nas esplanadas, nas festas, nas praias… A publicidade acrescenta um novo lugar de atracção: as grandes superfícies. Baseado na Theory of Shopping, de Daniel Miller (Cornell University Press, 1998), escrevi algures (no prefácio ao livro de José Escaleira & José Carlos Loureiro, 1998, Feiras e Mercados de Viana, Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo) que a compra releva menos de um acto egoísta e mais de um gesto de amor. Estava longe de imaginar as grandes superfícies como ninhos da libido hipermoderna.
Marca: Macy’s. Título: The Wrong Size. Agência: BBDO New York. Novembro 2017.
Madalena Iglesias, ídolo português dos anos sessenta, venceu o Festival RTP da Canção de 1966 com a canção Ele e Ela. Um pingo de amor musical.
Madalena Iglesias. Ele e Ela. Festival RTP da Canção de 1966.
Tantas maneiras de dizer que te amo
Comunicar o amor não é uma arte, é a arte. O anúncio Label of Love, da marca Monoprix, é de uma simplicidade e de uma eloquência raras.
Marca: Monoprix. Título: Label of Love. Agência: Rosapark Paris. França, Maio 2017.
Querendo a memória, o mundo é grande. Há muitas canções que dizem o amor. Entre as mais célebres constam I Just Called To Say I Love You, do Stevie Wonder, ou Hello, de Lionel Richie. Sou latino. Gosto de ser latino. Tenho ouvidos para outras músicas. Por exemplo, Te Voglio Bene Assai, uma canção de 1839, atribuída a Raffaele Sacco, na interpretação de Lucio Dalla.
Lucio Dalla. Te Voglio bene assai. Canção original: 1839.
Ou Aranjuez, Mon Amour, com música de Rodrigo, escrita por Richard Anthony e interpretada por Amália Rodrigues.
Amália Rodrigues. Aranjuez, mon amour. 1968.
Ou Te Quiero, Te Quiero, de Nino Bravo, um famoso cantor espanhol vítima de um acidente de viação em 1973, com 28 anos.
Nino Bravo. Te Quiero, Te Quiero, álbum Te Quiero Te Quiero, 1970.
Sociologia sem palavras. Não há três sem dois.
A nossa relação com a profissão parece um tango. Entre distâncias e proximidades, ocorre-nos pensar: é pena não saber fazer outra coisa. Péssimo sinal, sinal que estamos cativos e enredados nos passos da dança. É ela quem comanda.
Georg Simmel (Sociologia, 1908) foi pioneiro ao estudar a importância do número na configuração e na interacção dos grupos. Por exemplo, quando se passa de um grupo com dois membros (díade) para um grupo com três membros, tríade, acontecem várias alterações: a possibilidade de fazer coligações ou a figura do bode expiatório. Neste excerto do filme The Kid (1921), de Charlie Chaplin, um grupo com dois membros funciona primorosamente como uma equipa. A aparição de um terceiro elemento, transforma a equipa numa coligação de dois contra um: a mulher como vítima ou o polícia como ameaça.
Charlie Chaplin. The Kid (excerto). 1921.
Reciclagem. O conto na idade da técnica
Este é um tempo mágico, bondoso e generoso. Até os ímpios se comovem com um cântico de Natal. Os bodes ostentam cornos de rena e os bonecos de neve derretem pedagogia. Tudo é fantástico, inclusivamente este conto reciclado da Audi.
Marca: Audi. Título: For And Ever. Agência: Proximity Barcelona. Espanha, Dezembro 2017.
O Natal presta-se à recomposição e ao bricolage. Recordo as montras de Paris, mais a “cultura de massas” com paladar a Kitsch. Lembro, com respeito, a consoada dos emigrantes sem bacalhau, couves e broa. Apreciavam, nos anos setenta, a música de Demis Roussos.
“Era o cantor de Forever and ever, o companheiro de banda de Vangelis nos Aphrodite’s Child e uma das vozes (e rostos) mais populares do rock europeu da década de 1970” (Jornal Público, 26.01.2015: Morreu Demis Roussos, o cantor que ajudou a criar a banda-sonora dos anos 1970).
Todos temos o nosso gosto. O gosto é a estrela, o grande guia, do banquete da vida.
Demis Roussos. Forever And Ever. Forever And Ever. 1973.
Feliz Natal!
Marca: Indie Junior. Título: Horse. Agência: Leo Burnett (Lisboa). Direcção: Telmo Vicente. Portugal, 2014.
Racismos
“Somos sempre o estranho de alguém. Aprender a viver em conjunto, eis o que é lutar contra o racismo” (Jelloun, Tahar Ben, 1998, Le racisme expliqué à ma fille, Paris, Éditions du Seuil).
O anúncio português O mundo está cheio de pessoas assim, de Festival Política, não condiz com a quadra. O que vale é que a quadra natalícia não é nenhum espanador de ideias.
O racismo contamina a relação com o outro. E, dialogicamente, a relação consigo mesmo. O racismo é uma poluição humana. Caricaturar o outro, rebaixá-lo, estigmatizá-lo e reduzi-lo a um exemplar não se me afigura anti-racismo. Antes pelo contrário. O racismo é uma falácia, uma entorse do espírito, a que ninguém é imune. Todos somos vulneráveis. É avassaladora a tentação de embalsamar o outro com os nossos medos e as nossas certezas. O racista está convencido que escreve direito por linhas tortas. Ousemos escrever torto por linhas direitas.
Marca: Festival Política. Título: O mundo está cheio de pessoas assim. Agência: 004. Direcção: Gonçalo Franco. Portugal, Abril 2017.
Bela, demasiado bela! A gata das botas
A beleza é soberba e deixar-se seduzir, luxúria? Pois, nada como caminhar até à boca do inferno! O puritanismo anda à solta; e não é religioso. Bonitas são as botas da Fendi, mais quem as calça. Falta-lhes, apenas, a tentação das flores de Van Cleef & Arpels. Se a beleza é diabrura, a secura de espírito, o que é? O “inverno do nosso contentamento”?
Marca e Título: Fendi. Produção: Mac Guff. Abril 2017.
Marca: Van Cleef & Arpels. Título: Flowers. Produção: Mac Guff. Abril 2017
A pedreira das luzes
Em Baux de Provence, em França, uma pedreira de calcário branco foi transformada num espaço museológico imersivo que acolhe exposições de obras de arte: a Carrière de Lumières. Com técnicas avançadas de projecção, as paredes, num total de 4 000 m2, animam-se com imagens gigantescas, algumas em movimento. Pela Carrières de Lumières, já passaram Paul Cézanne, em 2006, Vincent Van Gogh, em 2008, Pablo Picasso, 2009… Uma exposição com Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel e Giuseppe Arcimboldo está patente até 07 de Janeiro de 2018. Um ramalhete fantástico, acompanhado pela música de Vivaldi e dos Led Zeppelin. Um espectáculo empolgante. “Os franceses não têm petróleo, mas têm ideias”. Obrigado, Adélia!
Bosch, Bruegel e Arcimboldo. Carrières de Lumières. 2017
Cinzas
As imagens anti tabaco são mensagens de morte. Se fossem performativas, o fumador morreria todos os dias. Mas têm a razão do seu lado. A razão hegemónica. Tanta razão proporciona uma força extrema, como, por exemplo, a dos líderes totalitários.
“Um orgulho intelectual, uma fé absoluta, perigosa, na razão – na sua razão. Podiam não acreditar em Deus, nem na imortalidade; mas acreditavam na razão, como um católico acredita no papa, ou um fetichista no seu ídolo. Nem sequer lhes vinha à ideia discuti-la. A vida bem podia contradizê-la, eles tenderiam a negar a vida. Falta de psicologia, a incompreensão das forças escondidas, das raízes do ser, do “Espírito da Terra”. Eles fabricavam uma vida e seres infantis, simplificados, esquemáticos. Alguns eram pessoas instruídas e práticas; leram muito e muito viram. Mas não viam nem liam nenhuma coisa como ela era; faziam reduções abstratas. Eram pobres de sangue; tinham altas qualidades morais; mas não eram suficientemente humanos: este é o pecado supremo. A sua pureza de coração, frequentemente muito real, nobre e ingénua, por vezes cómica, tornava-se, infelizmente, em determinados casos, trágica: ela impelia-os à dureza face aos outros, a uma inumanidade tranquila, sem cólera, segura de si, que arrepiava. Como teriam hesitado? Não tinham a verdade, o direito, a virtude do seu lado? Não recebiam a revelação direta da sua santa razão? A razão é um sol impiedoso; ela ilumina, mas também cega” (Romain Rolland [1904-1912], Jean-Christophe IX. Le Buisson Ardent, La Bibliothèque Electronique du Québec, 204-205).
Blaise Pascal já alertava, a seu tempo, contra “dois excessos : excluir a razão e admitir apenas a razão” (Pensées, [1670],183-253 2). Na realidade, razão, todos temos. Uns mais que os outros. Assim se mede o poder.
A campanha anti tabaco configura uma mobilização inédita. É um cúmulo que conjuga tecnocracia e tecnologia. Também é fetichista. Os meios assumem-se mais importantes do que os fins e, porventura, do que os resultados. Será que paira algures uma réstia de “pensamento mágico” (Frazer, James, 1890, The Golden Bough; a Study in Magic and Religion), como no caso da chamada “embalagem neutra”.
« Para o professor Bertrand Dautzenberg, presidente do Office Français pour la Prevention du Tabagisme, a estratégia é compensadora. “Esta evolução permitiu mudar a imagem do cigarro. De produto cool, passou a uma adição que mata”. E se as mensagens sobre as embalagens aumentaram, diversificaram-se e multiplicaram-se, é para evitar que os fumadores se habituem. “É necessário fazer evoluir as mensagens de três em três anos, aproximadamente”, explica o Professor Dautzenberg, para quem a introdução da embalagem neutra prolonga o processo de desnormalização do tabaco” (https://www.francetvinfo.fr/sante/drogue-addictions/lutte-contre-le-tabagisme/comment-la-lutte-antitabac-a-transforme-les-paquets-de-cigarettes_926999.html).
Na Comunidade Europeia, vários países, sobretudo do Norte, conseguiram baixar significativamente o consumo de tabaco. Não é o caso da França, nem de Portugal. Em Portugal a prevalência do consumo do tabaco nos últimos 30 dias, entre os 15 e os 64 anos, em ambos os sexos, marcou passo: 28,6%, em 2001, 30,4% em 2016/17 (Fonte: Programa Nacional para a prevenção e controlo do tabagismo – 2017, Direcção-Geral da Saúde). Perto de um em cada três portugueses recebe todos os dias mensagens de morte e de degradação. Atendendo à envergadura da campanha anti tabaco, abençoada pela padroeira do século, a medicina, como entender este “insucesso”? Será que os ditos países do sul possuem histórias e culturas distintas dos ditos países do norte?
Preocupa-me a gloglobalização. Mormente o efeito de mancha de óleo. Um país faz, por exemplo, o Canadá, outro faz, por exemplo, o Brasil, muitos vão atrás. Um mimetismo colossal. É sensato? Na Comunidade Europeia, aprovam-se medidas em pacote para a generalidade dos países. É sensato? A Europa ainda não teve ensejo para se conhecer, para se consciencializar que é um bloco heterogéneo? Deste modo, um Estado-Nação transforma-se num Estado-membro. A diferença sofre com a gloglobalização.
Apetece-me terminar com dois dedos de retórica. Para Bertrand Dautzenberg, a campanha “permitiu mudar a imagem do cigarro. De produto cool, passou a uma adição que mata”. Para além da perfeição semântica da frase, o que é que este consolo significa em termos de valores sociais? “A adição que mata” pode ser interpretada como risco? Ora, há quem se enfade com o cool e quem se sinta atraído pelo risco (Le Breton, David, 1991, Passions du Risque, Paris, Ed. Metailié). O que condiz com o facto de a juventude constar entre as categorias com maior aumento do consumo de tabaco.
Para aceder ao anúncio, carregar na imagem ou no seguinte endereço: http://www.culturepub.fr/videos/anti-tabac-la-transformation/.
Anunciante: Centre National Contre le Tabagisme. Título: La Transformation. Direcção: Michael Buckley. 1995.
Bendito aborrecimento
Quando um anúncio parodia uma “performance de arte contemporânea”, respira requinte. Quando desafia as conveniências fazendo humor com um tema como a deficiência, é brilhante. Graças a uma estranha alquimia, o incómodo cede o lugar à confiança e à esperança. “Poder aceder”, a liberdade de acesso, significa aceder a tudo, até ao indesejável. L’ennui afirma-se como um anúncio original, inteligente e criativo. Desprende-se apenas uma sombra. O anúncio lembra uma folha caída de uma cultura europeia outonal.
Anunciante: Jaccede. Título : L’ennui. Agência : TBWA/PARIS. Direcção: Hugues de la Bosse. França, Dezembro 2017.