Archive | Dezembro 2017

O Coração da Terra. Os Direitos do Homem

Victor Jara

Victor Jara

A Declaração Universal dos Direitos do Homem fez esta semana 70 anos. A Amnistia Internacional celebrou a efeméride com um belo anúncio. Os defensores dos direitos humanos marcam presença em todas as paisagens. Bem haja! Os abusadores, também, em todas as paisagens. Abusos inumanos.

Num encontro recente, do Mestrado de Comunicação, Arte e Cultura, ouviram-se canções de Chico Buarque e do José Afonso contra a repressão política. Acudiu-me o chileno Victor Jara, designadamente as canções Te Recuerdo Amanda (1969) e El Derecho de Vivir en Paz (1971). Como Victor Jara lembra Victor Jara, acrescento a canção Manifesto (1974). Após o golpe militar dirigido por Augusto Pinochet, Victor Jara foi preso, esmagaram-lhe as mãos com coronhadas e, no dia 16 de Setembro de 1973, foi executado no estádio de Chile, em Santiago. O seu corpo, com 44 marcas de bala, foi abandonado num matagal.

Conheci a obra de Victor Jara há mais de quarenta anos. Directamente ou através da voz de Violeta Parra e Joan Baez. Continua a sensibilizar-me. Ainda conservo dois vinis do Victor Jara. Nesse tempo, acontecia-me pensar com o coração.

Anunciante: International Amnisty. Título: Universal Declaration of Human Rights. Agência: Eallin. Direcção: Mustashrik. Reino Unido, Dezembro 2017.

Victor Jara. Te Recuerdo Amanda. Pongo en Tus Manos Abiertas. 1969.

Victor Jara. El Derecho de Vivir en Paz. El Derecho de Vivir en Paz. 1971.

Victor Jara. Manifiesto. Manifiesto. 1974.

Promessa de morte

Evil League

Alien, Bane, Dark Vador, Darth Vader, Joker, Predator, Voldemort… Quantos supervilões cabem num anúncio? Supervilões aos molhos! Já estava com saudades de sentir o ecrã tremer de medo. Tanto mal, tanta destruição. Até o símbolo da modernidade, a torre Eiffel, cai no Sena. A morte anda à solta dentro de nós. Carnívoros e lenhadores, somos pecadores inglórios! Somos a cadeia do mal. Somos bons pela nossa santa ignorância e demoníacos pelas devastadoras consequências. Nesta quadra natalícia, para nossa felicidade global, poupemos o pinheiro, poupemos os dentes, pelas florestas, pelos animais, por nós próprios.

Marca: Greenpeace. Título: Evil League: L’Ultime Menace. Agência: 84.Paris. França, Dezembro 2017.

A bênção escatológica num mundo às avessas. Os Serviços da Tarde na Festa de São João de Sobrado

Dedico este artigo aos alunos de Sociologia da Cultura. Sabem aprender, descobrir e conhecer de diversas formas. Uma sabedoria em perdição. Gosto dos alunos! São pinceladas coloridas numa tela que tanto se esforça por ser cinzenta. Os alunos ajudam-me a não enterrar o pensamento. Aflitos com o pico de trabalhos práticos, contra-organizaram-se; pediram o adiamento da aula. Segue um texto de apoio. Tornou-se vício crónico a avaliação sobrepor-se à função.

01. A Bênção Escatológica. Os Serviços da Tarde na festa de S. João de Sobrado

01. A Bênção Escatológica. Os Serviços da Tarde na festa de S. João de Sobrado

Este texto decorre de um estudo em curso dedicado à festa da Bugiada e Mouriscada de Sobrado, no concelho de Valongo, estudo coordenado por Rita Ribeiro, que integra os seguintes investigadores do CECS (Centro de Estudos Comunicação e Sociedade) e do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia): Moisés de Lemos Martins; Manuel Pinto; Luís Santos; Emília Rodrigues Araújo; Luís Cunha; Jean-Yves Durand; e Maria João Nunes. Caiu-me em sorte escrevinhar sobre os Serviços da Tarde.

Vídeo 01. Festa dos Bugios e Mourisqueiros. Sobrado – Valongo. CECS. 2016. Ver, também, para uma panorâmica global, o documentário Viagem ao Maravilhoso: Bugios e Mourisqueiros, RTP, 1990.

Os Serviços da Tarde, ou Sementeiras, consistem numa sequência de episódios, de índole carnavalesca, associados à atividade agrícola. Culmina numa farsa: a Dança do Cego, ou Sapateirada. Trata-se de um ritual único e notável, antes de mais, pela consistência. Os princípios gerais, a macroestrutura, reiteram-se em cada uma das partes, as microestruturas (Goldmann, Lucien, 1970, “Microstrutures das les vingt-cinq premières répliques de Nègres de Jean Genet”, in Structures Mentales et Création Culturelle, Paris, Ed. Anthropos, pp. 341-67). Esta “cristalização fractal” decorre da sedimentação e da consolidação de crenças e rituais ancestrais. Os Serviços da Tarde, mormente a Dança do Cego, não destoariam das festas populares que excitavam as praças e ruelas medievais. O grotesco, acentuadamente escatológico, anima as diversas atividades, conferindo-lhes espontaneidade, irreverência e impacto. Não se observa qualquer separação entre os protagonistas e o público. Não existem palcos ou cercas passíveis de contrariar a abrangência turbulenta do convívio coletivo (Maffesoli, Michel, 1988, Le Temps des Tribus, Paris, Méridiens-Klincksieck). A interação, desejada, é constante. Predomina a cultura cómica popular  (Bakhtin, Mickail, [1965] 1970, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Rennaissance, Paris, Gallimard). As máscaras, omnipresentes, escondem ou revelam? Alteram. Retomando Mikhail Bakhtin ([1929] 1970, La poétique de Dostoïevki, Paris, Seuil), a máscara propicia o diálogo com a alteridade que coabita dentro e fora de nós. Quando a mascarada é coletiva, são as próprias comunidades que se descentram e transformam.

Máscarasmsassoart.michaelsasso.studio

02. Bugios mascarados. Fotografia de Michel Sasso. 2012.

Os Serviços da Tarde abrem com a Cobrança dos Direitos. Ao ar livre, acompanhado por bugios e rodeado pelo público, o cobrador monta num burro às avessas. Para escrever a contabilidade, finge carregar a enorme pluma no rabo do burro. Este episódio marca toda a série. A figura do burro montado às avessas é remota. Esculturas da Antiguidade mostram Sileno (ver Sileno, o vinho e o burro: https://tendimag.com/2015/03/28/sileno-o-vinho-e-o-burro/) e Dionísio às arrecuas num burro (Imagem com Dionísio). Estas imagens popularizam-se nas iluminuras medievais. Durante as Festas dos Loucos e a Festa do Burro, o eclesiástico eleito bispo entra na igreja montado às avessas num burro, por sinal, o animal celebrado durante a “cerimónia” (ver Heers, Jacques, 1984, Fête des fous et carnavals, Paris, Fayard). Estes casos são convergentes: o burro montado às avessas simboliza a desordem cósmica, mais precisamente, a inversão do mundo, tópico maior dos Serviços da Tarde.  (Imagem da Idade Média; som com a missa do burro).

Dionísio montado num burro  (200AC) Minneapolis Institute of Fine Art

03. Dionísio montado num burro. 200 a. C. Minneapolis Institute of Fine Art.

O burro possui uma elevada carga simbólica que o inclina mais para as profundezas do inferno do que para as alturas do paraíso. Animal do presépio, o único montado por Cristo (na fuga para o Egipto e na entrada em Jerusalém), o burro é associado à teimosia e à sexualidade exuberante. Por seu turno, o uso do rabo do burro como tinteiro indicia, para além da inversão, o rebaixamento grotesco: a pluma e, por extensão, o cobrador deixam-se contaminar pelo baixo corporal asinino. A inversão e o rebaixamento são escatológicos (Cabral, Muniz Sodré A.& Soares, Raquel Paiva de A., 2002, O Império do Grotesco, Mauad, pp. 65-72). O baixo material e corporal, a sexualidade, os excrementos, a desordem e a poluição comportam uma potência de morte e de vida, de regeneração (Douglas, Mary, 1966, Purity and Danger, New York, Frederick A. Praeger).

À Cobrança dos Direitos, sucede a Lavra da Praça, que engloba três atividades agrícolas: semear, gradar e lavrar. A representação da agricultura como ciclo de tarefas povoa os livros de salmos e de horas medievais: o Livro de Horas de D. Manuel, da primeira metade do séc. XVI (1983, Imprensa Nacional / Casa da Moeda) constitui um bom exemplo. Mas os Serviços da Tarde acrescentam um pormenor crucial: a inversão do tempo. O camponês não só monta o burro como cavalga o calendário agrícola às avessas. Semeia antes de gradar; grada, antes de lavrar; paga os direitos antes de colher. Baralha-se o tempo, baralha-se a vida. Destroem-se ordens e constroem-se desordens (Balandier, George, 1980, Le pouvoir sur scènes, Paris, Balland; e Gonçalves, Albertino, 2009, Vertigens. Para uma sociologia da perversidade, Coimbra, Grácio Editor).

04. Montando um burro. Macclesfield Psalter (c.1320-30).

04. Montando um burro. Macclesfield Psalter (c.1320-30).

Montado às avessas, o camponês semeia. Retira de um saco “sementes” que espalha sobre o público. Dissemina e, simbolicamente, insemina. Fertiliza e fecunda, como manda a festa de S. João! O “saco das sementes” continha, nos tempos do linho, baganhas esmagadas, substituídas, hoje, por serrim, ambos desperdícios. Segundo consta, com impurezas à mistura. A arruada toma ares de charivari: gaitas, gritos, obscenidades, provocações e um banho de gente. A violência espreita: o camponês, derrubado do burro, envolve-se com os bugios e com a assistência até aos limites do simulacro. A terra e a semente, o caos e a violência, a campa e o túmulo…

Os “actores” que “vestem a personagem” do camponês (Stanislavski, Constantin, [1949], A Construção da Personagem, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1986) evidenciam arte e treino. Aqui, o camponês deixa-se cair do burro desamparado e roda pelo chão. Logo, passa por baixo da cavalgadura. São gestos de rebaixamento, mas também habilidades teatrais de saltimbancos. A festa prepara-se, de facto, durante todo o ano, de ano para ano.

 

Vídeo 02. Lavra da Praça. Gradar.

Lavrar e gradar são actividades agrícolas consecutivas. Lavra-se e, de seguida, grada-se para, depois, semear. O arado que sulca a terra destaca-se como um símbolo quase universal da sexualidade (Chevalier, Jean & Gheerbant, 1969, Dictionnaire de symboles, Paris, Robert Laffont). Agora apeado, o camponês guia a grade, ou, no episódio seguinte, a charrua, puxada, uns metros à frente, por um burro ou por um cavalo. Destemperado, a frisar a doidice e a embriaguez, o camponês grada e sulca o asfalto, o granito e a terra. A condução, imprevisível, ameaça chocar com a assistência. Às vezes, acontece. Circulam e cruzam-se insultos e palavrões. A grade acaba destruída. O camponês faz questão. Não faltou pontaria para acertar numa árvore. O lavrar e o gradar convocam a sexualidade, a loucura, o caos, o movimento e a violência. O ambiente de “efervescência criativa” (Durkheim, Émile, [1912] 1991, Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Le Livre de Poche) frisa a orgia (Maffesoli, Michel, 1982, L’Ombre de Dionysos. Contribution à une Sociologie de l’Orgie, Paris, Méridiens/Anthropos). Catarse? Despedida cíclica? Libertação ? Violência fundadora (Maffesoli, Michel, 1984, Essai sur la violence banale et fondatrice, Paris, Librairie Méridiens/Klincksiec ; Girard, René, 1972, La Violence et le Sacré, Paris, Editions Grasset)?

Os Serviços da Tarde operam uma inversão do tempo, uma das maiores tentações da humanidade. Num anúncio publicitário célebre, um jovem casal despede-se, no meio da praça, à vista de todos. Ele sobe para o autocarro e ela fica desconsolada. As pessoas começam a “andar para trás”: o ciclista, o carro e os peões; o barbeiro recoloca o cabelo na cabeça do cliente, o pintor apaga a tinta, o varredor esvazia o lixo… E o autocarro reaparece, lentamente, de marcha atrás; o jovem desce, abraçam-se e ficam felizes para sempre. Este anúncio da Orange chama-se, apropriadamente, Rewind City (agência: Publicis; França, 2008). Encena o recurso à magia para alterar o destino e a ordem cósmica (ver Publicidade e Magia; https://tendimag.com/2013/08/05/publicidade-e-magia/). Os Serviços da Tarde invertem o ciclo agrícola para fazer recuar a vida? As gentes de Sobrado sabem que não há magia que valha. O que não os impede de retomar, ano após ano, o ritual. Os bugios também sabem que vão perder a guerra com os mourisqueiros. Mas entregam-se ao combate!

Um pouco por todo o mundo, na noite de São João, acendem-se, nas praças e nos campos, fogueiras para dar mais dia à noite. Mas ninguém se ilude: amanhã, por artes do solstício, o dia será mais curto e a noite mais longa. Há algo de trágico e de glorioso nesta luta lúcida contra o inelutável (ver Goldmann, Lucien, 1955, Le Dieu Caché, Paris, Gallimard).

A Dança do Cego, ou Sapateirada, último episódio dos Serviços da Tarde, exibe todos os pergaminhos de uma farsa. Entaladas entre os mistérios e as moralidades, as farsas medievais aliviavam os fiéis de tanta seriedade. Surgiu, assim, um género teatral breve, com poucas personagens, apostado na ação, nos adereços e no cenário, em detrimento da palavra. A linguagem é vulgar, os gestos e os objetos impróprios e a violência, uma pantomina. Propensa a equívocos e absurdos, a farsa privilegia as reviravoltas que vitimam o agressor, humilham o soberbo ou enganam o aldrabão. Menção especial merece a inversão de género: a mulher engana e domina o homem, como no caso da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Não obstante, a farsa não visa propósitos moralizadores ou edificantes. A interação com o público é apanágio da farsa. Relíquia histórica, a Dança do Cego ostenta estas propriedades. Convoca, inclusivamente, as personagens da farsa mais antiga de que há registo. Da segunda metade do séc. XIII, Le Garçon et l’Aveugle (Paris, Librairie Ancienne Honoré Champion, 1921) também inclui um cego acompanhado pelo criado.

Vídeo 03. Dança do cego. São João de Sobrado.

A Dança do Cego é tão apreciada que, à semelhança de outros números, é representada em vários locais da vila de Sobrado. Replicada junto à igreja e noutros locais, as pessoas acotovelam-se à volta de um lamaçal imundo. Dezenas de metros quadrados de lama, urina e excrementos de animais. Sentado num banco, andrajoso, o sapateiro martela o calçado, molha-o e atira-o indiscriminadamente para o público, que o recebe como uma espécie de bênção escatológica. O sapateiro e a mulher (representada por um homem) não param de se desentender. Aproxima-se um cego com o seu criado. O cego tropeça e estatela-se de bruços no lamaçal. Furioso, o sapateiro bate-lhe com a vara. Arrepende-se. Para verificar o estado de saúde, aproxima a cara do traseiro do cego. Respira, pelo menos por baixo! Deslocando-se de um lado para o outro, o sapateiro bate com a vara no lamaçal. Mais uns salpicos providenciais. O público aproxima-se e afasta-se; delira. Entretanto, o criado do cego rapta a mulher do sapateiro, que terá que recorrer ao jogo do pau para a reaver.

A auscultação de sinais vitais junto ao traseiro é rara e insólita, mas não é inédita. No livro Pantagruel, Epistemão foi decapitado durante uma batalha épica. Panurgo coze-lhe a cabeça:

“De repente, Epistemão começou a respirar, depois a abrir os olhos, depois a bocejar, depois a espirrar, e por fim deu um grande peido da sua reserva. Disse então Panurgo: – Está, com toda a certeza, curado” (Rabelais, François, [1532] 2006, Pantagruel, Lisboa, Frenesi, p. 168).

A Dança do Cego é uma obra-prima, sistemática e radical, de rebaixamento escatológico. O lamaçal é uma espécie de húmus. “O humano é também húmus” (Maffesoli, Michel, 1998, Elogio da Razão Sensível, Petrópolis, RJ, Vozes, p. 35). O cego estatela-se no lamaçal e aí permanece imobilizado. Os sapatos remetem para os pés, rasteiros e desvalorizados. O arremesso dos sapatos e os salpicos de esterco configuram um ritual misto de batismo e poluição. Tudo servido com entusiasmo público. Estamos perante um rebaixamento grotesco festivo, que regenera e restaura. A solução adotada pelo sapateiro para descortinar os sinais vitais do cego representa um caso paradigmático de rebaixamento mediante aproximação dos contrários: a face nobre e o traseiro ignóbil. Graças a este mergulho na terra e no corpo, a comunidade resulta renovada e reforçada. Não se vislumbra a mínima sombra de grotesco do estranhamento corrosivo kayseriano (Kayser, Wolfgang, [1957] 1986, O grotesco: configuração na pintura e na literatura, São Paulo, Editora Perspectiva). Na Dança do Cego, o rebaixamento quer-se cómico, vitalista e popular, “bakhtiniano”. O baixo, prenhe, é esperançoso.

Existem festas e rituais congéneres um pouco por todo o mundo. Lidamos com arquétipos (Jung, Carl Gustav, 2000. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Vozes), “estruturas antropológicas do imaginário” (Durand, Gilbert, 1960, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, Paris, P.U.F.). Assim como, em Sobrado, o camponês brinda o público com sementes e o sapateiro com lama imunda, em Lanjarón (Granada, Espanha), durante a “Carrera del Agua”, logo a seguir à meia-noite de S. João, residentes e forasteiros percorrem cerca de 1 500 metros molhando-se uns aos outros, com o que estiver à mão, sob uma “chuva” que cai das janelas, das varandas e dos telhados, enviada pelos não participantes. A rega no lugar da sementeira.

O cego e o sapateiro movem-se na lama. Em Bibiclat, no norte das Filipinas, durante o São João, ao amanhecer, os aldeões reúnem-se em silêncio num campo pantanoso, cobrem-se de lama e vestem capas feitas de folhas de bananeira. Assistem neste preparo à celebração da missa.

Mais perto, nas freguesias de Romarigães (Paredes de Coura), Covas (Vila Nova de Cerveira) e São Julião (Valença) ocorre a pega ou apanha do porco. À volta de um recinto cercado, enlameado a rigor, o público assiste à briosa perseguição de porcos bravos. Ganha o concorrente mais rápido a agarrar os bichos (ver Lama, excrementos e porcos; https://tendimag.com/2016/06/26/lama-excrementos-e-porcos/).

Vídeo 04. Apanha do porco. Covas. Vila Nova de Cerveira. 2012.

Recoloquemos o olhar na matriz medieval, nas festas dos loucos e na festa do burro. À semelhança do cobrador e do camponês, o eclesiástico eleito entra na igreja às arrecuas, montado num burro. Baseado em documentos de 1454 e 1482, Mr. du Tilliot descreve, em livro publicado em 1741, o pandemónio durante e após a celebração do ofício:

“On voyait les Clercs & les Prêtres faire en cette Fête un mèlange afreux de folies & d’impietez pendant le service Divin, où ils n’assistoient ce jour-là qu’en habits de Mascarade & de Comedie. Les uns étoient masquez, ou avec des visages barbouillés qui faisoient peur, ou que faisoient rire, les autres en habits de femmes ou de pantomimes, tels que sont les Ministres du Theatre. Ils dansoient dans le Choeur en chantant , & chantoient des chansons obscènes. Les Diacres & les Sou-diacres prenoient plaisir à manger des boudins & des saucices sur l’Autel, au nez du Prêtre célébrant : ils jouoient a ses yeux aux Cartes & aux Dez : ils mettoient dans l’Encensoir quelques morceaux de vieilles savates, pour lui faire respirer une mauvaise odeur. Après la Messe, chacun couroit, sautoit & dansoit par l’Eglise avec tant d’impudence, que quelques un n’avoient pas honte de se porter à toutes sortes d’indécences, & de se dépouiller entierement ; ensuite ils se faisoient trainer par les rues dans des tombereaux pleins d’ordures, où ils prenoient plaisir d’en jetter à la populace qui s’assembloit  autour d’eux » (Mr. du Tillier, 1741, Memoires pour servir a l’histoire de la Fête des Foux, Lausanne & Geneve, chez Marc-Michel Bousquet & Compagnie, pp. 5-6).

Alusão à Missa do Burro. Le livre de Lancelot du Lac. Autres romans arthuriens. Nord de France. 13e siècle.

Alusão à Missa do Burro. Le livre de Lancelot du Lac. Autres romans arthuriens. Norte de França. Séc. XIII.

“Sabemos que os excrementos desempenharam sempre um grande papel no ritual da “festa dos tolos”. No ofício solene celebrado pelo bispo para rir, usava-se na própria igreja excremento em lugar  de incenso. Depois do ofício religioso, o clero tomava lugar em charretes carregadas de excrementos; os padres percorriam as ruas e lançavam-­nos sobre o povo que os acompanhava (Bakhtin, Mikahil, 1987. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo. HUCITEC, P. 126).

Durante a Missa do Burro, o ofício e os cânticos eram talhados a preceito. As pessoas cantavam, bramiam e zurravam em devoção ao animal.

Clemencic Consort. Clemencic Consort. Kyrie Asini – Litanie. La Fête de l’Ane. 1985.

À semelhança dos Serviços da Tarde, a festa dos loucos começa invertida e acaba escatológica.

 

A Dança do Cego ganha em ser integrada na série dos trabalhos agrícolas dos Serviços da Tarde. Alude, inequivocamente, à adubação. O camponês dispunha o estrume em montículos para o espalhar por todo o campo antes da lavra. Fertilizante, a Dança do Cego não conhece princípio nem fim; é o princípio e o fim; é o recomeço, em adubo líquido. O eterno retorno do estranho sempre próximo. Forasteiros, o cego e o criado ameaçam a ordem local. O rapto e o resgate da mulher do sapateiro exprimem o carácter agonístico da competição sexual. Nos Serviços da tarde, tudo é movimento, metamorfose e vertigem. Território, comunidade, violência e sexualidade, dimensões cardeais da vida humana, borbulham no caldeirão da lama impura. Impuro sobre impuro gera libertação e esperança. Há batismos e batismos! A potência telúrica e a promessa das entranhas abraçam-se, dançam e envolvem-nos nos Serviços da Tarde da festa de São João de Sobrado. De geração em geração, desde tempos imemoriáveis.

Avatar narcisista

Caravaggio. Narciso. 1594-96.

Caravaggio. Narciso. 1594-96.

“Há demasiados Narcisos no mundo, pessoas enamoradas por si mesmas (…) Cientes do seu mérito, cheios de uma ideia que lhes é cara, passam a vida a admirar-se. Que será preciso para os curar de uma loucura que parece incurável? (…) Falar-lhes com a simplicidade da verdade” (Montesquieu, Eloge de la Sincérité, 1717).

Nos tempos que correm, convém ter avatares. Tenho sete: Soneca, Dengoso, Feliz, Atchim, Mestre, Zangado e Dunga.
Hoje, Dengoso queixou-se:
“Dou palavras, ideias e abraços, dou de tudo, mas não me dou. Nem a mim me sei dar. Sou um bicho do mato, um narciso sem sementes”.
O Dengoso está a passar por uma má fase. Não sei se o leve a um psicanalista ou a um sociólogo. Retirar os espelhos não é solução.

Jacques Dutronc. Et moi, et moi, et moi. Jacques Dutronc. 1966.

Letra : Jacques Dutronc. Et moi, et moi, et moi. 1966

Sept cent millions de chinois
Et moi, et moi, et moi
Avec ma vie, mon petit chez moi
Mon mal de tête, mon poids
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Quatre vingt millions d’indonésiens
Et moi, et moi, et moi
Avec ma voiture et mon chien
Son Canigou quand il aboit
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Trois ou quatre cent millions de noirs
Et moi, et moi, et moi
Qui vais au brunissoir
Au sauna pour perdre du poids
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Trois cent millions de soviétiques
Et moi, et moi, et moi
Avec mes manies et mes tics
Dans mon p’tit lit en plumes d’oie
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Cinquante millions de gens imparfaits
Et moi, et moi, et moi
Qui regardent Catherine Langeais
À la télévision chez moi
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Neuf cent millions de crève la faim
Et moi, et moi, et moi
Avec mon régime végétarien
Et tout le whisky que je m’envoi
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Cinq cent millions de sud américains
Et moi, et moi, et moi
Je suis tout nu dans mon bain
Avec une fille qui me nettoie
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Cinquante millions de vietnamiens
Et moi, et moi, et moi
Le dimanche à la chasse au lapin
Avec mon fusil, je suis le roi
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
Cinq cent millards de petits martiens
Et moi, et moi, et moi
Comme un con de parisien
J’attends mon chèque de fin de mois
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie
J’y pense et puis j’oublie
C’est la vie, c’est la vie

Histórias mal contadas

Francisco Goya. Witches Sabbath. 1789

Francisco Goya. Witches Sabbath. 1789

Quem não teve a tentação de emendar o final de um conto?

Na História da Carochinha, o João Ratão não ficou “cozido e assado no caldeirão”. Caiu no caldeirão e comeu tanto, tanto, que, para além de nada sobrar para os convidados, teve que fazer dieta durante sete anos.

Na versão de Perrault, “Capuchinho Vermelho despe-se e vai meter-se na cama, onde ficou muito espantada de ver as formas da avó em camisa de noite; e disse-lhe: «Avó, que grandes braços tem!» «É para melhor te abraçar, minha filha.» «Avó, que grandes pernas tem!» «É para correr melhor, minha pequena.» «Avó, que grandes orelhas tem!» «É para escutar melhor, minha pequena.» «Avó, que grandes olhos tem!» «É para ver melhor, minha pequena.» «Avó, que grandes dentes tem!» «É para te comer.»” Mas o lobo mau não comeu a Capuchinho. Eu estava lá para ver. Ao ouvir as respostas do lobo, a Capuchinho aproximou-se e deu-lhe um beijo; e o lobo mau transformou-se num príncipe maravilhoso, dono da floresta e de todas as terras em redor, mais rico do que o rei Bico de Tordo.

Por altura do Natal, nasceu, durante a noite, um pequeno bode negro com cornos graúdos. Não havia quem lhe fizesse frente: o cão, o homem, os obstáculos, a vaca… Mas eis que surge um monstro de lata com olhos de dragão. As ovelhas afastam-se, mas o pequeno bode negro não arreda pé, até que, a um dado momento, desiste. Desiste? Não, não desistiu, na verdade tinha mais que fazer do que estar a olhar para aquela coisa rolante. Estava atrasado a um encontro com as bruxas.

Marca: Volskswagen. Título: Baby ram. Agência: Adam & Eve/DDB. Direcção: Nick Gordon. Alemanha, Novembro 2017.

Para uma sociologia do polvo

A reportagem Sabe porque no Norte do País o polvo é o prato da Consoada, de Ricardo J. Rodrigues (Notícias Magazine. 08-12-2017), é uma espécie de sociologia do polvo, notável pela ideia e pelo modo. Tive o gosto de participar. Para aceder, carregar na imagem.

O polvo ainda é o prato tradicional da noite de Consoada junto à fronteira com a Galiza. Um ato de resistência contra o tempo.. Fotografia de Gonçalo Delgado.

O polvo ainda é o prato tradicional da noite de Consoada junto à fronteira com a Galiza. Um ato de resistência contra o tempo. Fotografia de Gonçalo Delgado.

Dúvidas íntimas

À primeira vista, o anúncio Gueule de Nain, da Media Markt, parece pós-moderno. À última vista, continua a parecer pós-moderno. Na recente mesa redonda Identidades & Territórios (Universidade do Minho, 06 de Dezembro de 2017), permiti-me uma provocação: duvidar da existência de um período histórico singular apelidado pós-modernidade. Mas como este anúncio é pós-moderno, a pós-modernidade existe.

Identidades & Territórios. 06.12.2017

Anões de jardim adquirem vida na ausência dos donos da casa. O vómito de um gato, cujo nome deve ser Shrek, é o acto inaugural. Segue-se uma festa, com música, bebida, dança, sexo, objectos técnicos, desvarios e excessos. Como é costume, os anões de jardim têm atitudes e comportamentos estranhamente humanos. François Rabelais (1494-1553) poderia subscrever a orgia, E.T.A. Hoffman (1776-1822), a vitalização dos bonecos e Tex Avery (1908-1980), o humor absurdo. Em suma, um anúncio que convoca algumas perplexidades.

Se as pessoas são líquidas, fragmentadas, polifónicas e híbridas, por que é que, passados vinte ou trinta anos, quando encontro alguém ele me parece a mesma pessoa? Será que a sua identidade oscila como um boneco teimoso?

Marca: MediaMarkt. Título: ZIPFELRAUSCH. Alemanha, Novembro 2017.

Continua a nossa sociedade empenhada no futuro, eventualmente com menos projecto e mais balanço? Será a nossa sociedade mais pós ou mais pré? A maior parte das nossas preocupações não deixam de se debater com o futuro.

Por que rara alquimia a sociedade é órfão de narrativas quando às narrativas da modernidade se acrescentam as narrativas da pós-modernidade?

Como é que uma injunção, o carpe diem (Horácio, 65 a.C – 8 a.C.; ver poema) caracteriza uma sociedade quando o atributo é transversal à humanidade. Não há como fazer escala no após I Guerra Mundial.

E, em termos de hibridismo, são os biomecanóides e os pós-humanos assim tão distantes das metamorfoses de Ovídeo e dos sonhos cómicos (songes drolatiques) de François Desprez?

François Desprez. Songes drolatiques de Pantagruel. 1565.

François Desprez. Songes drolatiques de Pantagruel. 1565.

Acabei de ser convidado para participar num programa de televisão. Declinei. Uma pessoa que não sabe o que é não deve expor-se. E eu não sei se sou pré-moderno ou pós-moderno. Moderno consta que ninguém é. Toda esta confusão é muito grave. Entretanto, tive uma epifania. As epifanias servem para saber quem somos e para onde vamos. Que o diga São Paulo! Pois, finalmente, sei quem sou. Sou um pós-moderno à moda antiga, à moda dos maneiristas e dos barrocos. Parafraseando John F. Kennedy, na modernidade, sou pós-moderno!

Não sei que me diga! Ainda estou confuso. Mas, repito, o anúncio da Media Markt é excelente.

Tradução do poema de Horácio

Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.
Não perguntes, saber é proibido, o fim que os deuses darão a mim ou a você,
Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia não brinque.
É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho.
Se muitos invernos Júpiter te dará ou se este é o último, que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar.
Tirreno: seja sábio, beba seu vinho e para o curto prazo reescale suas esperanças.
Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está fugindo de nós.
Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.
Podemos sempre ser melhores. Basta pensarmos melhor.

(http://claudialins58.blogspot.pt/2009/08/carpe-diem-o-poema-completo-de-horacio.html).

O Natal dos Velhos

Paintings Of Old People A Painting A Day Page 2

Paintings Of Old People A Painting A Day Page 2

Argui, recentemente, uma dissertação que, embalada pelos ventos do envelhecimento activo, vislumbra formas prodigiosas de ocupação dos tempos livres “seniores”. Tamanho entusiasmo filantropo parece esquecer que o principal hóspede dos tempos livres dos idosos é a solidão; a principal sensação, a separação; o principal sentimento, o tédio; e a principal tendência, a depressão. A companhia é uma prenda bonita para oferecer aos idosos. Importa não toldar esta realidade com ideologias tecno-messiânicas. Importa agir, mas agir apropriadamente junto de pessoas concretas. É verdade que encontramos idosos em universidades, ginásios e empresas. Mas as árvores não devem esconder a floresta.

Bill Viola. Howard. 2008. Leila Heller Gallery.

Bill Viola. Howard. 2008. Leila Heller Gallery.

Há algumas décadas, participei num programa semanal de rádio chamado Quarto por Quarto, na Antena Minho. Com o Abílio Vilaça, o Carlos Aguiar Gomes e a Teresa Lobato, e moderação de Pedro Costa. Fizemos uma emissão na própria noite de Natal. E a conversa derivou para as franjas, para as pessoas que não são iluminadas pela estrela dos Reis Magos. Havia cafés, poucos, muito poucos, abertos até mais tarde, onde acorriam alguns órfãos do Pai Natal. O café era a cabana, sem vaca nem burro. Mas quem não tem Natal sempre pode imaginá-lo, como o mendigo de Miguel Torga: da capela fez abrigo e dos santos, companheiros.

O anúncio Just another day, da Age UK, fala-nos de idosos solitários cujo Natal é nenhum dia. Tem o mérito de falar da solidão e da invisibilidade urbanas. Corre, no entanto, o risco de prestar-se a alguma confusão: o conto não é só do Natal, é de todos os santos dias. O que faz falta, por esse país fora, é promover o calor da companhia aos idosos que vivem sós. Os centros de dia ajudam, mas não chegam. É preciso mais e, também, de outro modo. Sublinhe-se que para muitos idosos a chegada do apoio domiciliário representa o único momento solar da jornada. Urge enfrentar o problema da solidão, do isolamento e da síndrome da separação dos idosos. Não faltará espaço para a activação dos corpos e das almas, nem para a implementação dos dispositivos do envelhecimento activo. De qualquer modo, convém não esquecer que, em cerca de 50 anos, passamos de uma sociedade em que havia pouco tempo para ser velho para uma sociedade em que se é velho muito tempo. “Em Portugal, a esperança de vida rondava, em 1950, os 56 anos; em 2015, ascende aos 81 anos” (https://tendimag.com/2017/11/07/filhos-da-madrugada/).

Marca: Age UK. Título: Just another day. Agência: Drum London. Reino Unido, Dezembro 2017.

Ver as nuvens passar

Air France. The passageO facebook desencantou um artigo, colocado há oito anos, com o anúncio The Passage, realizado por Michel Gondry para a Air France. Acrescento um segundo anúncio, publicado dois anos depois, em 2002, para a mesma marca, com mesmo realizador. Duvido da bondade de relembrar anúncios geniais e de extremo bom gosto. É que o bom gosto também se perde. Não estou, naturalmente, a falar nem da Air France, nem do Michel Gondry.

Uma confidência: caiu-me em sorte uma prenda de Natal antecipada. Traz-me ocupado e tolda-me a lucidez.

Marca: Air France. Título: The passage. Agência: BETC Euro RSCG. Direcção: Michel Gondry. França, 2000.

Marca: Air France. Título: The Clowd. Agência: BETC Euro RSCG. Direcção Michel Gondry. França, 2002.

Natal andróide

Edeka. Christmas. 2117

Num mundo disfórico entregue às máquinas, um andróide deixa-se cativar por alguns vestígios de vida humana num cartaz e num filme com a ceia de Natal. Começa uma odisseia da máquina em busca do humano. Simula a ceia de Natal com manequins, mas não resulta, falta o espírito. Acaba por reconhecer a paisagem numa fotografia de um jornal.  Por vales e montanhas, encontra finalmente a família humana que o acolhe com generosidade.

Este anúncio lembra filmes tais como O Planeta dos Macacos (1968), Blade Runner (1982), Equilibrium (2002) ou WALL-E (2008). E convoca uma série de mitos mais ou menos contemporâneos:

– A superação e a dominação do homem, aprendiz de feiticeiro (Goethe, 1797), pelas suas próprias obras, nomeadamente computadores e andróides;

– As máquinas assumem-se mais humanas do que os humanos, propiciando um espelho, mais ou menos deformado, da condição humana;

– Uma ovelha negra redentora galga fronteiras e vence obstáculos contribuindo para a emancipação, mais ou menos fugaz e inconsequente, dos oprimidos.

Marca:  Edeka. Título: Will we celebrate Christmas in 2117? Agência: Jung von Matt. Alemanha, Novembro 2017.