O gosto de gostar
É mais gostoso gostar do que ser gostado. Afeiçoei-me com o tempo a esta ideia. Não deixa de ser uma paráfrase de um pensamento de Jesus Cristo: “Há maior felicidade em dar do que em receber” (Atos dos Apóstolos 20:35).
Na Segunda Epístola aos Coríntios (9:6), Jesus Cristo lembra: “Aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semear com fartura também colherá fartamente”. Insinua-se, agora, a ideia de investimento: semear para colher. Uma dádiva interessada. Ao contrário do primeiro pensamento, este último poderia constar do livro O Caminho da Riqueza, de Benjamin Franklin (1757). Os homens movem-se pelo interesse, incluindo os estúpidos.
Marca: John Lewis. Título: The Journey. Agência: Adam & Eve DDB (London). Direcção: Dougal Wilson. Reino Unido, 2012.
O abismo
Em 2012, participei num documentário dedicado a uma árvore de Guimarães. Competia-me cuidar do simbolismo. A árvore é um ser cósmico vivo que acolhe a vida. Agarra-se à terra, bebe água, eleva-se no ar e consume-se no fogo. É uma ponte vertical entre as profundezas da terra e as alturas do céu. Há quem associe a árvore ao sagrado. E ao demoníaco, também. A árvore ergue-se como um marco da memória individual e colectiva. Quando regresso às origens, visito as árvores: a pereira e a tangerineira partiram sem avisar. Menos dois troncos de memória, menos dois anjos da guarda. Valem-me, para compensar, as rotundas e os semáforos. O anúncio Farewell to the forest, da Unilever, sublinha que, no mundo, a cada minuto, é desarborizado o equivalente a 36 estádios de futebol. Um abismo!
O antropólogo George Condominas publicou, em 1957, o livro Nous avons mangé la forêt (Comemos a floresta; Paris, Mercure de France). Estuda os Mnong-Gar dos planaltos do Vietname. Tinham o seguinte costume: num ano, desbastam uma parte da floresta onde semeiam, por exemplo, arroz; no ano seguinte, cortam outra parte da floresta. Ano a ano repetem a proeza. Até que, volvidos vários anos, regressam ao início onde os espera uma floresta recomposta. E recomeçam “a comer a floresta”… É possível explorar a floresta sem a destruir.
Marca: Unilever. Título: Farewell to the forest. Agência: David Buenos Aires/Ogilvy & Matter. Direcção: Nico Perez Veiga. Argentina, Agosto 2015.
Duelo de línguas
Há iniciativas de humor simples, criativo e contagioso, como o anúncio Tongue Twister. Em 30 segundos de boa expressão corporal, coloca o excesso, um impossível visualizado, na ponta da língua. É, também, um caso em que a criatividade constrangida, com metas e comercial, rivaliza, em arte e originalidade, com a criatividade sem amarras, livre e independente. Por último, uma falsa pergunta: será que os gestos, e respectiva interpretação, variam consoante as culturas? O anúncio Tongue Twister pode provir, com igual probabilidade, de qualquer parte do mundo? Num texto intitulado “Les techniques du corps” (Journal de Psychologie, XXXII, nº 3-4, 1936), Marcel Mauss aborda “a forma como os homens, sociedade a sociedade, de um modo tradicional, sabem servir-se dos seus corpos”. Aponta o exemplo dos soldados britânicos e franceses. A marchar juntos, não acertam passo. Separados, mas com música alheia, também não.
Marca: Mentos. Título: Tongue Twister. Agência: BBH Shangai. Direcção: Simon Pang. China, 2008.
Desencanto
Este anúncio indiano é invulgar. Como diria o Principezinho, “o essencial é invisível aos olhos”. Uma das graças que o Criador nos concedeu consiste em pintar o mundo com as cores do desejo. Quando, invisuais ou não, vemos a princesa que sonhamos, ela dá-nos a mão para pintar o mundo.
Para além das cores do desejo, o Criador dotou-nos, também, com o “apanágio do riso”. O anúncio inscreve-se, com sucesso, num registo cómico. Um jovem com deficiência visual toma a cadela por namorada. Mas um dia, um novo par de óculos desfaz o encanto.
Esta aposta no disparate como detonador exacerba o riso, num cocktail absurdo, insólito e extravagante, concentrado num único momento, o momento que fecha o anúncio.
Acontece aos normais rir-se a um espelho invertido; dos deficientes, dos corcundas, dos surdos, dos cegos, dos coxos, dos feios e demais aberrações. Faz parte da nossa “natureza imbecil” (Blaise Pascal). Não é o caso deste anúncio. Seria má pontaria. Não seria?
Marca: Lenskart.com. Título: Suzie. Agência: Enormous, Ashish Khazanchi. Direcção: Shirsha Guha Thakurta. Índia, Julho 2015.
A aparência partilhada
O anúncio Rule Yourself, da Under Armour, logra um belo efeito. Um número elevado de pessoas desenham padrões e coreografias. Nesta multiplicação humana, a emergência é ínfima. Se o todo é mais do que a soma das partes, neste caso pouco vai além da soma das partes. Em suma, estamos confrontados com massas humanas.
Existia um jogo infantil com rede e pins todos iguais mas de várias cores. O objectivo era construir figuras dispondo os pins coloridos ao longo da rede. Se os “preguinhos” são indispensáveis ao jogo, o artista é a criança. Com as figuras humanas, também existe “um grande arquitecto” que dispõe da(s) massa(s). Acodem-me as paradas da Coreia do Norte, os jogos olímpicos, o futebol, os desfiles militares e determinadas manifestações religiosas. Pela desfocagem, o participante é um quase nada, um ponto numa rede artificial. Promove-se uma replicação com trejeitos totalitários. No caso do anúncio, trata-se da multiplicação virtual do mesmo, uma clonagem, não tanto para a diluição do eu e mais para a sua cintilação, uma aparência partilhada numa ilusão galáctica.
Marca: Under Armour. Título: Rule Yourself. Agência: Droga 5. Direcção: Wally Pfister. USA, Agosto 2015.
Pequenos nadas
A carta inconclusiva
Que pena tenho eu de ti,
Por não assistires,
Ao que eu assisti!
Uma pena de pavão,
Voava de mão em mão.
Era de um recluso que cumpria
Uma pena de prisão!
Apesar de inocente,
A pena tinha de ser cumprida.
Escrevia à sua amada,
A melhor carta da sua vida!
Faltava escrever o último dizer,
Mas o tinteiro, tinta não tinha e…
Dinheiro não havia para o tinteiro
Satisfazer…
(Cândida Passos, ilustração de Celeste Semanas, A carta inconclusiva! (excerto), Poetizar as Efemérides, Braga, 2015).
Por causa de um tinteiro, entornam-se vidas. “Pour un rien du tout”. “A vida é feita de pequenos nadas” (Sérgio Godinho: https://www.youtube.com/watch?v=YP9Rc3KIz9g). As grandes obras, como as grandes estátuas, dependem, por vezes, de insignificâncias. Pelo menos, é o que insinuam estes anúncios.
Uma pastilha elástica Hollywood causa semelhante efeito à Estátua da Liberdade (serão calores) que ela não hesita em descobrir-se e dar um mergulho no rio Hudson. No caso do Cristo Redentor, a situação é distinta. No interior, mora um homem incumbido de manter o monumento limpo, graças a um pano de cozinha e CIF.
Marca: Hollywood, Título: Statue of liberty. Agência: BETC euro RSCG. Direcção: Les Frères Poiraud. França, 1999.
Marca: CIF. Título: Christ the Redeemer. Agência: Borghi / Lowed (São Paulo). Brasil, 2014.
Aspirações
“Expliquemos previamente a natureza complexa do riso carnavalesco. É, antes de mais, um riso festivo. Não é, portanto, uma reacção individual diante de um ou outro fato “cómico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar património do povo (esse carácter, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cómico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre, cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (Bakhtin, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, São Paulo, Hucitec, 1077, p.10).
No grotesco, todos riem de tudo e de todos. Tudo é risível, nomeadamente o sagrado e o poder político. Nada permanece estável, o riso grotesco é um agitador e um baralhador do mundo. O alto é rebaixado. Tudo o que se mostra fixo é deslocado para os lugares mais inesperados. O detergente Cif no Cristo Redentor, do Rio do Janeiro, um aspirador associado a um exorcismo, outro a uma tentativa de suicídio, uma pastilha elástica liberta a Estátua da Liberdade, em Nova Iorque.
Primeiro, os aspiradores, máquinas anormalmente intrusas. Amanhã, as estátuas.
Marca: Electolux. Título: Suicide. Agência: Lowe (Shangai). Direcção: Liang Quing Song. China, 2006.
Marca: Dirt Devil. Título: The Exorcist. Produçao: Filmakademie Baden-Wurttemberg. Direcção: Andreas Roth. Alemanha, 2011.
A força do cimento
Costumamos opor a força ao jeito, à destreza, à elegância e à inteligência. A obra de Pierre Bourdieu, nomeadamente La distinction, aponta nesse sentido. A força não é um valor aristocrático, é, sobretudo, um valor das classes populares. Não é um valor pós-moderno, nem pós-materialista, nem líquido. A força é atributo de heróis como Sansão, Superman, Hulk e Popeye. O grotesco insiste em aproximar a força e o jeito em pares tais como David e Golias, Teseu e o Minotauro, Panurge e Pantagruel, Don Quixote e Sancho Pança, a Bela e o Monstro, Astérix e Obélix… A força é compacta, dura e resistente como o cimento, o cimento APU. Para contrabalançar esta ode heavy metal ao cimento, vamos reouvir Que força é essa, do Sérgio Godinho, uma canção com mais de meio século de actualidade.
Marca: UNACEM. Título: Los APUS. Agência: CARNE Lima. Direcção: Diego Nuñez Irigoyen. Peru, Agosto 2015.
Marca: UNACEM. Título: Cemento APU, tan fuerte como tú. Agência: CARNE Lima. Direcção: José Zélada. Peru, Setembro 2014.
Sérgio Godinho. Que Força é essa (Sobreviventes, 1971),
O café, o tabaco e o futebol
No Tendências do Imaginário, é dia de descentramento. Dia de relativizar o nosso sociocentrismo e as nossas evidências. É um desafio lançado, há meio século, por Jean Piaget, um psicólogo recomendável aos sociólogos. A virtude vem de longe: nas Cartas Persas (1721), Montesquieu já enaltece o olhar do estrangeiro.
O anúncio da Gudang Garam é triplamente estranho. A marca pertence à Indonésia, país com o qual encerrámos “um capítulo de conflito”. É, embora discreto, um anúncio a uma marca de tabaco, fenómeno de que estamos, há anos, protegidos graças à febre proibicionista. Nem os cigarros de chocolate escaparam. Neste domínio, só palhinhas e caveiras!
“É proibido o fabrico e a comercialização de jogos, brinquedos, jogos de vídeo, alimentos ou guloseimas com a forma de produtos do tabaco, ou com logótipos de marcas de tabaco” (Lei nº 37/2007, de 14 de Agosto, artigo 17º, ponto 3).
O anúncio Gudang Garam é um hino à pátria! O anúncio dá a impressão de perseguir o efeito desejado: associar a marca à nação. O que lembra alguns casos portugueses: Português Suave, que ainda existe, e Lusos, que se perdeu na voragem do mercado. O anúncio aos cigarros Lusos e ao café Sical num boletim do Totobola traça um triângulo expressivo do estilo de vida dos anos sessenta: café, tabaco e futebol: “Um prazer… Para quem sabe o que quer!” Recordar, ou seja, entregar-se à “regressão histórica” (Max Weber), é uma forma de descentramento. Seria compensador se este bloque lograsse aproximar-se de uma rampa de descentramento.
Marca: Gudang Garam. Título: The First Day Spirit. Agência: Dentsu Strat Jakarta. Direcção: Abimael Ghandi. Indonésia, Agosto 2015.