Archive | Março 2018

Páscoa

Artur Bual. Cristo. 1991

Artur Bual. Cristo. 1991

Admiro, como Miguel de Unanumo, os “homens mais carregados de sabedoria do que de ciência”.

“Certo pedante, vendo Sólon chorar a morte de um filho, disse-lhe: “Para que choras dessa maneira, se isso de nada serve?” E o sábio respondeu-lhe: “Precisamente porque para nada serve.” (…) O que de mais sagrado existe num templo é o facto de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere, cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia. Não basta curar a peste, há que saber chorá-la! Sim, importa saber chorá-la! E esta é, talvez, a suprema sabedoria.” (Unanumo, Miguel,1913, Do sentimento trágico da vida, Lisboa, Relógio d’água, 2007,p. 22).

Páscoa, paixão, sacrifício, expiação e redenção. Ocorre-me Lisa Gerrard.

Lisa Gerrard & Pieter Burke. Sacrifice. Duality. 1998.

Virtualidades

Antonio Corradini. La femme voilée (La foi). 1743-1844. Musée du Louvre

Os véus das esculturas de Antonio Corradini resguardam virtudes e castidades. Os lenços da Red Riding insinuam, qual dança do ventre, o encanto da mulher. Nas esculturas de Corradini, as virgens portam véus; no anúncio da Red Riding, os lenços portam mulheres. Em ambos os casos, desprende-se um toque de erotismo.

Marca: Red Riding. Título: I’m my fairytake. Produção Yaanus Films. Direcção: Ranadeep Bhattacharyya & Judhajit Bagchi. Índia, 2017.

Lembrei-me, a destempo e meio a propósito, de uma canção de Luís Cília: Canção para uma virgem (Espanha, 1973).

Luís Cília. Canção para uma virgem. Gravada em França em 1969, publicada em Espanha em 1973.

Canção para uma virgem (Luís Cília).

Menina de escuro
Figurinha mansa
Teu calmo olhar puro
No longe descansa

Porque a figurinha
De cera e cetim
Feneces sozinha
No roxo jardim

E vestes de escuro
Já é Primavera
Não olhes o muro
Com ar de quem espera

Acaso a tua alma
Ficou-se na infância
Não há nessa calma
Qualquer febre ou ânsia

Não tens namorado
Ninguém te beijou
Beijar é pecado
Quem ama pecou

Mas olha que a vida
Não é um jardim
Menina vestida
De negro cetim

Transparências

johann-sebastian-bach---mini-biography

Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A brincadeira não tem idade. Apetece uma bricolagem. Um videozinho. Ando com duas músicas do Bach no ouvido. Gostava de encontrar imagens para as acompanhar. Acudiu-me substituir a banda sonora de anúncios em slow motion. Fantásticos! Não ganhavam nada com a música de Bach, nem esta com os anúncios. Uma dupla estragação. Entretanto, ocorreram-me as imagens das esculturas veladas de Antonio Corradini (1688-1752) e de Giuseppe Sanmartino (1720-1793). O último capítulo do livro A morte na Arte é sobre as esculturas veladas. Comecei há quatro meses e já escrevi 20 linhas! Mas as músicas de Bach, versão piano, não batiam certo com as imagens, demasiado sedosas e pungentes para as teclas de um minueto. Acabei por optar pelo que não queria: uma das obras mais célebres de Bach: a Ária na corda sol. As voltas que uma bricolagem não dá!

Segue o videozinho, parco em comentários, mais as duas músicas de Bach.

Transparências. Esculturas  Veladas. Albertino Gonçalves, 2018.

J. S. Bach. Jesu, joy of man’s desiring.

J. S. Bach. Anna Magdalena Notenbuch: Minuet in G major, BWV Anh 114.

Um pouco de céu

Hoje, foi dia de pequenas coisas. Ressonâncias que não pesam no juízo final. Memórias sem história. Nada para arquivar. Quando escrevi, há 10 anos, o artigo Lembranças tinha mais memória e menos barriga. Mas agrada-me. Centra-se no insignificante. Amanhã, recomeçam os vazios importantes. Aumenta a pose e encolhe a pessoa. Entretanto, apetece-me ouvir Mafalda Veiga.

Mafalda Veiga. Um pouco de céu. Tatuagem. 1999.

Lembranças

Neto de comerciante, foi-me dado assistir à morosa hesitação da escolha dos postais ilustrados. Não deixa de constituir tarefa penosa, quase um milagre, conseguir acomodar, num rectângulo tão exíguo, emissor, destinatário, pretexto, mensagem e imagem. Lembro-me, também, da recepção de alguns postais. Ao estremecimento e à comunhão iniciais, com o postal a passar de mão em mão, sucedia-se a exposição num “altar improvisado” e o recolhimento numa gaveta, caixa ou álbum destinado às relíquias memoráveis. Quase todos nós, apesar dos anos e das mudanças, preservamos alguns destes tesouros semi-privados. Compõem uma espécie de bálsamo para as rugas da nossa identidade.

Postal 3

Postal 3

Os postais ilustrados comportam uma vertente estética. Podem ainda apresentar uma aura de magia, virtualidade, aliás, própria de um objecto que se interpõe entre duas pessoas. Absorvem o emissor que neles se inscreve (“estou aqui!”) e convocam o destinatário que neles se adivinha (“Esta menina és tu a pedir à Nª Sª pª vires passar as férias a casa”: postal 1). Podem, inclusivamente, aspirar a uma certa tangibilidade das almas ou, se se preferir, a um magnetismo dos corpos separados: “Se o pensamento fosse visível, ver-me-hias sempre ao teu lado” (postal 2). Muitos postais ilustrados são dádivas. Antes de mais, dádivas de si. São lembranças, “something between a message and a present” ( Andrew Martin:http://blogs.guardian.co.uk/travelog/2008/07/postcards_back_from_the_edge.html). 

Postal 4

Postal 4

São prendas! Apreciadas, exibidas e guardadas. Pessoalizadas em sintonia com o outro, pedem criatividade, dedicação e sentido de oportunidade. Confesso nutrir alguma predilecção pelos postais ilustrados anteriores a 1902, aqueles em que “de um lado só se escreve a direcção”. Reduzem o importante ao essencial. E o essencial, como bem sabemos, cabe no buraco de uma agulha. As soluções, variadas, oscilam entre a incontinência de letras que afoga a imagem e o gesto discreto e precioso que lhe acrescenta valor. Mesmo com a possibilidade de escrita no reverso do postal, as marcas e as inscrições na imagem perduraram, como uma espécie de luxo ou de requinte pessoal ( atente-se no postal 3 e, sobretudo, no pormenor do postal 4: estes postais podem ser vistos no blogue Postais Antigoshttp://postais.do.sapo.pt/). É certo que, na maioria dos casos, estas prendas são surpresas esperadas, ao sabor das efemérides ou das viagens. Se tardam, sente-se a falta, num misto de frustração e inquietação.

Amor tranquilo

Land Rover The road

“Les sanglots longs des violons de l’automne blessent mon cœur d’une langueur monotone. Tout suffocant et blême, quand sonne l’heure, je me souviens des jours anciens et je pleure ; et je m’en vais au vent mauvais qui m’emporte deçà, delà, pareil à la feuille morte” (Paul Verlaine ; Poèmes saturniens, Chanson d’automne, 1866).

Gestos serenos em equilíbrio, uma beleza poética sem Adónis, nem Afrodite. Uma cumplicidade subcutânea. Como cabe tamanha delicadeza num anúncio a um carro? A harmonia e a lentidão são quebradas por um fluxo vertiginoso de memórias, numa câmera acelerada. Travessia, vertigem, aventura… Um anúncio dentro do anúncio. O Land Rover faz 75 anos. O casal ronda essa idade. No anúncio The road, o motor e o coração cruzam-se e pulsam a várias velocidades. “Uma vida juntos” num romance sobre rodas.

Marca: Land Rover. Título: The road. Produção: Kite Rock Pictures. Direcção: Fran Mendez. Estados Unidos, Março 2018.

Ousar pensar

Dare to think! Rebell against the ordinary! The journey is the all point. A Universidade de Ghent, na Bélgica, está em 125º lugar no QS World University Ranking. O anúncio Dare to think é criativo e persuasivo. Pelos vistos, a Universidade de Ghent não perfilha as nossas confusões estratégicas: centra-se nos estudantes. O que anima e sossega. Virá um dia em que muitas universidades funcionarão sem estudantes, cingindo-se a investigadores, professores, burocratas e parceiros. Outro dia virá em que as universidades serão um formigueiro de investigadores sem descobertas científicas. A escrita é uma terapia, um ribeiro que corre contra as fragas de cascata em cascata. Umas vezes, refresca, outras, magoa.

Marca: Ghent University. Título : Dare to think. Agência : Mortierbrigade Brussels. Direcção: Tom Willems. Bélgica, Março 2018.

A indiferença

Swedish Public Employment Service. Make Room. Agência Le bureau Stocholm. Direcção Bjorn Stein. Suécia, Março 2018

“A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão” (Anatole France , 1894, Le Lys Rouge).

“A sociedade da prosperidade, aquela que pretende o ser próspero, odeia todos aqueles que não alcançam aquilo que ela institui. O indivíduo desfavorecido é pois julgado e responsabilizado pela coletividade por não ter alcançado melhor lugar no seu seio.
Da mesma maneira em que a sociedade da informação penaliza o indivíduo desinformado; da mesma maneira que a sociedade tecnológica penaliza o indivíduo desprovido de técnica; da mesma maneira que a sociedade politizada penaliza o indivíduo desprovido de polítiquice.
Todos os dias se pode observar como o ricaço escorraça o mendigo com cólera…” (Georg Simmel, através de Pedro Costa).

O diferente é igual? Devemos amar os outros como a nós mesmos ou amar os outros como outros? Pode a igualdade abraçar a diferença sem a apagar? És tão igual quanto prevê a lei? E tão único quanto o teu cartão de cidadão? A expansão da mesmidade aproxima-nos da nulidade, de um deserto em que somos areia. No Make Room, do Swedish Public Employment Service, vale o anúncio, vale a causa e vale a música (de John Lennon). Na canção L’Indifférence, de Gilbert Bécaud, vale o talento e a poesia. Vale a sabedoria: “a indiferença destrói o mundo”.

Anunciante: Swedish Public Employment Service. Título: Make Room. Agência: Le bureau Stocholm. Direcção: Bjorn Stein. Suécia, Março 2018.

Gilbert Bécaud. L’Indifférence. 1977.

Gilbert Bécaud. L’Indifférence.

Les mauvais coups, les lâchetés
Quelle importance
Laisse-moi te dire
Laisse-moi te dire et te redire ce que tu sais
Ce qui détruit le monde c’est
L’indifférence

Elle a rompu et corrompu
Même l’enfance
Un homme marche
Un homme marche, tombe, crève dans la rue
Eh bien personne ne l’a vu
L’indifférence

L’indifférence
Elle te tue à petits coups
L’indifférence
Tu es l’agneau, elle est le loup
L’indifférence
Un peu de haine, un peu d’amour
Mais quelque chose
L’indifférence
Chez toi tu n’es qu’un inconnu
L’indifférence
Tes enfants ne te parlent plus
L’indifférence
Tes vieux n’écoutent même plus
Quand tu leur causes

Vous vous aimez et vous avez
Un lit qui danse
Mais elle guette
Elle vous guette et joue au chat à la souris
Mon jour viendra qu’elle se dit
L’indifférence

L’indifférence
Elle te tue à petits coups
L’indifférence
Tu es l’agneau, elle est le loup
L’indifférence
Un peu de haine, un peu d’amour
Mais quelque chose

L’indifférence
Tu es cocu et tu t’en fous
L’indifférence
Elle fait ses petits dans la boue
L’indifférence
Y a plus de haine, y a plus d’amour
Y a plus grand-chose

L’indifférence
Avant qu’on en soit tous crevés
D’indifférence
Je voudrai la voir crucifier
L’indifférence
Qu’elle serait belle écartelée
L’indifférence

Três dedos abaixo de cão

Tavern scene. Meb drinking, with a cellarer below. Late 14th century

Tavern scene. Meb drinking, with a cellarer below. Late 14th century

Tive um blogue chamado Marginália. Retomo parte do artigo Bestialidade (http://dobras.blogspot.pt/2010/08/bestial.html).

O grotesco não está de volta. Ele nunca nos deixou. Mas está no vento! Tal como “o feio, o porco e o mau”. Afirmar que ultrapassa os limites não passa de um pleonasmo. O grotesco está sempre a ultrapassar limites. Essa é a sua sina. Mas, por vezes, surpreende. Pela pujança e pelo insólito. É o caso do anúncio “slow motion” da Carlton Draught.

Marca: Carlton Draught. Título: Slow Motion. Agência: Clemenger BBDO. Direcção: Paul Middleditch. Austrália, Agosto 2010.

Não deixa de ser tentador, mas infundado, entrever neste anúncio alguma intertextualidade perversa, uma espécie de paródia do grotesco “hiper-realista” e degradante de algumas campanhas anti álcool, anti tabaco, anti obesidade e anti coiso.  Atente-se, por exemplo, nos seguintes anúncios provenientes de campanhas anti álcool.

Anunciante: Binge Drinking Awareness. Titulo: Anti Binge Drinking NHS. Agência: Atticus Finch. Direcção: Chris Richmond. Reino Unido, Julho 2010.

Anunciante: Vinbúdin. Título: Don’t be a pig. Agência: Ennemm. Direcção: Sammuel & Gunner. Islândia. Maio 2008.

É provável que os promotores destes anúncios tenham razão. Mas ter razão não é o mesmo que ter a razão, e muito menos ser capaz de fazer bom uso dela. Afigura-se-me que uma campanha de sensibilização comunitária não pode dispensar o respeito pelo outro, seja este vítima ou infractor. Certos (ab)usos da razão despertam, de algum modo, velhos fantasmas, tais como as purgas dos totalitarismos do séc. XX ou os desmandos das Guerras da Religião dos séculos XVI e XVII, ambos propensos a conceber o outro como um animal ou um mostrengo. Mas há quem tendo (a) razão também a sabe utilizar, a preceito, com criatividade e bom gosto. É o caso do seguinte anúncio português premiado em Cannes.

Anunciante: Fundação Portuguesa de Cardiologia. Título: Balão. Agência: Ammirati Puris Limpas. Portugal, Julho1999

Beleza audiovisual

Jackson Hole

Ver e ouvir com prazer. Pena não haver nem gosto, nem tacto nem cheiro digitais. O anúncio Stay Wind, da Jackson Hole Travel & Tourism Board, é uma delícia para os olhos. E para os ouvidos. A música é dos Fleet Foxes. Acrescento outra música do mesmo grupo: White Winter Hymnal (2008). E pronto! Acabo de falar em Ponte de Lima e esperam-me em Briteiros (Guimarães).

Marca: Jackson Hole Travel & Tourism Board. Título: Stay Wild. Agência: Colle McVoy. Estados Unidos, Março 2018.

Fleet Foxes. White Winter Hymnal. Fleet Foxes. 2008.

O desporto e o sagrado

Stele relief depicting a wrestling competition between athletes, from Kerameikos necropolis, Athens, Grece, Circa 510 B.C.

Stele relief depicting a wrestling competition between athletes, from Kerameikos necropolis, Athens, Grece, Circa 510 B.C.

O desporto envolve o exercício, a saúde, o lazer, a evasão, o convívio, o espectáculo, o poder, a comunidade, a identidade… Acrescente-se a “guerra” e a religião. No desporto, como na vida, o religioso e o guerreiro cruzam-se. O anúncio Motivacíon, da Visa Argentina, foca a preparação guerreira para o combate. O anúncio The Game Before The Game, da Beats by Dre, centra-se, também, na preparação para o confronto, mas com uma carga acentuadamente religiosa.

Marca: Visa Argentina.Título:  Motivación. Agência: Young & Rubicam Argentina. Direcção: Pablo Romano. Argentina, Agosto 2011.

Marca: Beats by Dre. Título: The Game Before the Game. Agência: R/GA New York. Direcção: Nabil Elderkin. USA, Junho 2014.