ADN e relações internacionais

Como sublinhava Claude Lévi-Strauss (L’Identité, 1977), a identidade forja-se face aos outros. Frequentemente, é conflitual (Georges Balandier, Sens et Puissance, 1971). A relação entre o México e os Estados-Unidos tem sido problemática. Os anúncios da AeroMexico comprovam-no. Quando os teus vizinhos são preconceituosos, aproxima-os e dá-lhes um desconto (vídeo1). Quando são uma ameaça, firma posição e denuncia (vídeo 2). Dois anúncios geniais.
Sementes em pó

Respeitando as recomendações das autoridades, o MDOC , Festival Internacional de Documentário de Melgaço, não se realizou este ano. Ocorrerá no próximo. Habituei-me a participar no Festival, em particular no ritual da visita guiada ao Espaço Memória e Fronteira. Para enganar a saudade, colhi na página dos Filmes do Homem meia dúzia de fotografias.
Os dias enrolam-se como num moinho de café. Entram sementes e sai pó. O tempo também tem destas artes. Em 2014, estas fotografias eram um desconsolo: “coitado de mim”. Hoje, passados seis anos, reconsidero: “afinal, não estava assim tão mal; as de costas, até favorecem”. Importa navegar. As memórias não são velas mas ventos. Os tais ventos que movem moinhos, moinhos que transformam as sementes em pó.
Comboios e caveiras

No cais nº 12, um comboio ultra-moderno: queixo para a frente, testa para trás. Dá jornais, auscultadores e não se sabe que mais. Só lhe falta “andar no ar” como os Maglev japoneses. Na via 13, um comboio ultrapassado que por pouco não deita fumo. Qual escolher? Venho de onde venho, vou para onde vou, na carruagem que me levar. Nos comboios antigos aconteceram-me coisas extraordinárias. Nos comboios avançados, não tenho história para contar.

Hoje, dei a última aula de sociologia da cultura, da licenciatura em Sociologia. Conversámos sobre o quadro Os Embaixadores, de Hans Holbein, e desembocámos, fatalmente, na anamorfose com a vanitas (ver o artigo Objectos que falam: https://tendimag.com/2015/03/21/objetos-que-falam/). Tudo me lembra alguma coisa. Tenho, por isso, a memória gasta. Lembrei-me de um anúncio romeno com comboios e caveiras. Uma anamorfose original.
Antes do vídeo, não resisto a contar uma das minhas histórias de comboios. Estudava em Paris e vim de comboio para Portugal. Na fronteira franco-espanhola, os passageiros para Portugal eram separados daqueles que iam para Vigo (o meu caso). Os dois comboios percorriam a mesma via até, creio, Burgos. Estacionado na gare de Irún, o comboio tardava a arrancar. Perguntei ao revisor, com o meu bom espanhol, o que acontecia. Confidenciou: “Um alerta de bomba na linha”. Para não dizer a ninguém. Passado algum tempo, o comboio começa a andar. Voltei a abordar o revisor:
– Encontraram a bomba?
– Não! Mas não te preocupes. O comboio dos portugueses vai à frente.
“Somos os que aqui estamos”

Nas últimas décadas, o despovoamento foi monstruoso. É verdade que as migrações sempre existiram. Mas não tão desequilibradas. É difícil inverter a tendência. Despovoamento gera despovoamento: problemas de escala, de mercado, de emprego, de natalidade e de envelhecimento. A meu ver, despovoamento rima com fracasso político. Nem tudo neste País tem que ir a banhos. A intervenção política não se pode confinar à ponta da língua e à disponibilização de cuidados paliativos. Convém estancar a necrópole das aldeias de Portugal. As pessoas, essas, não desistem. Resistem à inércia de partir. Para o estrangeiro, para as cidades, para onde calha, com a promessa de uma vida melhor. Existe a tendência para imaginar a vida no interior e nas margens do País como um entorpecimento ou uma hibernação. Uma espécie de presépio. É uma ilusão ótica. Face à adversidade, as pessoas abraçam a vida, multiplicam os projetos e somam iniciativas. Pode faltar investimento de Estado, sobra vontade, criatividade e esforço humano. A metade da população que partiu não é melhor do que a metade da população que ficou.
Congratulo-me com o anúncio espanhol Yo Me Quedo, da empresa Correos Market. Porque é raro um anúncio dedicado ao despovoamento e pela aposta na sobriedade estética, por exemplo, os enquadramentos são naturais, bem como as roupas dos entrevistados.
O baloiço
O projecto Quem somos os que aqui estamos surgiu no âmbito do MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço. Visa o estudo das freguesias de Melgaço: iniciou em 2018, com as freguesias de Parada de Monte e Cubalhão; em 2019, foi a vez das freguesias de Prado e Remoães. O projecto prevê, para cada freguesia, as seguintes actividades e resultados: fotografias faladas; uma exposição de fotografia documental; um catálogo dedicado à exposição de fotografia documental; recolha e digitalização de fotografias de álbuns familiares; uma exposição de fotografia a partir dos álbuns familiares; e uma publicação (um livro).
“Produzido pela Associação AO NORTE, este projeto é coordenado por Álvaro Domingues, tem produção executiva de Rui Ramos e conta com colaboração de Albertino Gonçalves, Carlos Eduardo Viana, Daniel Maciel, Miguel Arieira, Daniel Deira e João Gigante”.
O Daniel Maciel escolheu para uma das fotografias faladas O Baloiço, com Celina Ribeiro, por sinal, minha tia. Comprova-se que houve mulheres emigrantes que gostaram de viver no estrangeiro; regressaram a Portugal um pouco contrariadas. Mas existem outras fotografias faladas, igualmente interessantes, na página Lugar do Real: http://lugardoreal.com/.
Em Julho de 2019, foi lançado o livro Pedra e Pele respeitante às freguesias de Parada do Monte e Cubalhão. No dia 20 de Outubro, foi a vez do livro Quem fica, da autoria de João Gigante, com textos de Álvaro Domingues e Albertino Gonçalves. Segue a fotografia falada O Baloiço e uma pequena galeria de fotografias do João Gigante.
João Gigante 1 João Gigante 2 João Gigante 3 João Gigante 4 João Gigante 5 João Gigante 6
Voar com asas de sal

Ontem, dia 5 de Abril, apresentei uma comunicação, “Jogos de espelhos entre emigrantes e residentes, em Monção, no Colóquio “Emigração para França na década de 60”, organizado pela Mulher Migrante – Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade (AMM). Há 25 anos que não investigo sobre a emigração. Desde então o pouco que escrevi releva do restolho e do resíduo. Levava, porém, no bolso dois assuntos marginais a abordar se se proporcionasse. Não foi o caso. Regressaram, carinhosamente, tão secretos como partiram. Mas já é tempo de os desembolsar e colocar no Tendências do Imaginário, o meu repositório de ideias pardas.
A expressão “viúvas de vivos” tornou-se numa palavra mestre. Ilumina e obscurece, como todas as palavras mestre. Nas décadas de 50, os portugueses emigraram em massa, mormente para França. A crónica falta de gente no País. Mas, nos primeiros tempos, faltaram sobretudo homens. E as companheiras, por vezes vestidas de negro, arcaram com a responsabilidade, e o trabalho, da “casa”, da família, dos filhos, das propriedades, da agricultura… Se, ao partir, os emigrantes foram uns “heróis”, ao ficar, as mulheres foram umas “heroínas”. Mas, para além das casadas, sobraram, também, as solteiras, que detêm a sua parte na história. Faltavam, de facto, mancebos na comunidade. Em 1981, apesar da correcção decorrente da emigração feminina massiva a partir de meados dos anos 60, a curva de masculinidade ainda acusa o desequilíbrio nas idades “mais férteis”. Em Melgaço, entre os 25 e os 35 anos, havia cerca de 40 homens para 100 mulheres (Gráfico 1).

O quadro 1 evidencia a disparidade da incidência da emigração em função do género. Segundo um inquérito, dos 866 entrevistados com mais de 60 anos residentes em Melgaço, 72,9% dos homens, contra 10,8% das mulheres, foram emigrantes. A distância acentua-se nas freguesias da montanha (Alto Mouro): 90,5% contra 9.5%.

Este desequilíbrio na relação de masculinidade tem consequências na vida das pessoas. Na minha infância, nas noites mais amenas, após o jantar, as mais jovens costumavam passear em grupo. Se a memória não me engana, compunham bouquets de seis e mais moças. Caminhavam sós ou acompanhadas por um rapaz, porventura, o sobrinho do padre. Cava-se uma falha no mercado matrimonial. É certo que os homens não desaparecem. Estão, apenas, longe. Mas, antes das trombetas da globalização, já era possível estar-se longe e perto. “Presente ausente”.
Nas freguesias de montanha, onde não era hábito a mulher emigrar, as solteiras preparavam-se durante o ano para os encontros estivais. Durante as férias de verão, processa-se uma concentração e uma aceleração do mercado matrimonial. Esta efervescência da “escolha do cônjuge” beneficiava da profusão de festas, eventos, casamentos, baptizados, passeios e idas a banhos. Organizavam-se, inclusivamente, bailes em caves improvisadas. Findo “o querido mês de Agosto”, casados, comprometidos ou livres, os homens repartiam e as mulheres ficavam.
Apesar da proximidade da lonjura e dos calores de verão, algum desequilíbrio teimava em persistir na repartição por sexo. Estou convencido que este desequilíbrio contrariou a propensão para a homogamia: os operários casam com operárias, os professores com professoras… Propiciou, extraordinariamente, num lugar por um tempo, alguma exogamia: o aumento de casamentos fora da classe.
Creio que estes temas ganhariam em ser estudados. A informação talvez não esteja na Internet. Vai todos os dias ao cemitério e não volta.
Este é um dos dois apontamentos. Guardo o segundo para mais tarde. Acrescento duas canções. Uma francesa que costuma cantar em inglês canta francês e uma brasileira canta espanhol. Acompanharam a escrita do artigo, não têm por que se despedir dele.
Sem palavras

O anúncio italiano Every people matters, da ONG Emergency, é uma história sem palavras fácil de entender. Um refugiado vende rosas. Ninguém compra. À porta de um restaurante, inteira-se que um cliente é vítima de um ataque cardíaco. Consegue socorrê-lo. Será médico? É um ser à parte, ora desvalorizado, ora ignorado. Não há migrações sem consequências. É possível aproveitá-las, mas é mais fácil deixá-las degradar.
Dizem que o Natal é todos os dias. Nunca acaba. Não há festa tão elástica. Abre semanas antes com a incontinência das compras, acaba semanas depois sem dinheiro para os saldos. Prefiro o São João. Seis meses antes do Natal, começa e acaba de um dia para o outro, sem tempo para dívidas. Comparadas com a lareira do Natal, as fogueiras de São João ardem mais em menos tempo.