Divertimento

Interessar-se pela música do inferno é próprio de tolos desocupados. Pior ainda descobrir na terra músicos passíveis de tocar no inferno. A banda de demónios da figura 01 quer sair da porta do inferno. Prefere o interior com ar quente e cheiro a enxofre.
Há músicos com perfil para tocar no inferno: Rolling Stones (Sympathy for the devil), Deep Purple (Demon’s eye), Chris Rea (The road to hell), Uriah Heep (Demons and Wizards), Black Sabbath (Heaven and hell), AC/DC (Highway to hell), Pink Floyd (Run like hell)… Retive dois candidatos. O álbum Heaven and Hell (1975) do Vangelis inspira-se, em vários troços, no inferno. Parco em melodias e ritmos compassados, alguns sons são do outro mundo e muitas passagens incómodas. Mas o álbum de Vangelis é, do princípio ao fim, límpido e afinado. O que desagrada aos diabos, propensos a confusões, cacofonias e charivaris. Sobra, nestas condições, Marilyn Manson, exímio em animar os demónios e torturar as almas penadas.
Senilidade intelectual

Ontem, fiz uma comunicação, hoje, outra, sobre “a música do inferno no imaginário medieval”. Tema insólito, indício, quem sabe, de senilidade intelectual. Ninguém acredita na existência do inferno. Ainda menos, na música do inferno. Mas o inferno existe no imaginário e na experiência do mundo. Século após século, a pegada do inferno é incomensurável.

Em jeito de ponte entre a Idade Média e os nossos dias, a comunicação culmina com o trailer do videojogo Agony (2018). O inferno teima em aquecer as nossas almas. A descida ao inferno no videojogo Agony é um tormento vertiginoso. A banda sonora condiz: arrisca desagradar. Mas, apesar das novas tecnologias, pouco se distingue das pinturas medievais. Atente-se no inferno do tríptico O Juízo Final (1467-71), de Hans Memling. O mesmo tormento, a mesma turbulência, as mesmas vertigens.
O “regime da palavra” anda esquisito. Nunca tantos falaram tanto para dizer tão pouco. Um excesso de formatação e de ladainha na Metrópolis do espírito. Uma orfandade do sentido. A ciência está muito regrada, à espera dos robots inteligentes. Nunca pensei que a ciência ingurgitasse tanta burocracia. Uma incontinência para colmatar uma avaliação que analisa as obras como melões na feira e uma perspectiva de desenvolvimento futuro que não se enxerga.
Albertino Gonçalves e Fernando Gonçalves
Agony. Videojogo. 2018.
A queima dos vampiros

O prazer da escrita é pecado? E a originalidade, um vício? As letras deitam-se cada vez mais em latas de conserva.
Para a crença popular, retomada numa multidão de livros, filmes e imagens, o vampiro é um morto que sai do túmulo para sugar o sangue dos vivos. Na Idade Média, para impedir a fuga da sepultura dos mortos suspeito de vampirismo, prendiam-se e profanavam-se os cadáveres trespassando-os com estacas, colocando pedras na boca e deformando os esqueletos.
“O mal não tem fim. Resiste e ressurge. Como o Drácula e os mortos vivos. Para o mal, a morte não é obstáculo incontornável, não é, como se diz, sono eterno. Receosas e vulneráveis, as comunidades humanas previnem-se. No pesadelo medieval, a morte não é irreversível. O morto pode regressar do além para molestar os vivos. Importa proteger-se.
Neste quadro mental, há cadáveres que, pela sua vida terrena, são ameaças mesmo após a morte. Na Polónia, na Bulgária, na Irlanda e na Itália, foram descobertos túmulos medievais e pós-medievais com esqueletos de corpos brutalizados: pedras e tijolos enfiados na boca e na garganta, cabeça deslocada entre as pernas, corpos cravados com estacas, imobilizados com forquilhas… São “esqueletos de vampiros”. Pertencem a cadáveres de presumíveis vampiros (undead, em inglês, ou revenants, em francês). Para maior imunidade, impunha-se evitar a saída do túmulo e o regresso aos vivos” (Albertino Gonçalves; ver continuação no artigo Exorcismos: https://tendimag.com/2017/08/15/exorcismos/).
O vampiro é um devorador. Devora o outro e a si mesmo, esvaziando ambos. O vampiro é um insaciável instável. Um tormento sem limites.
“A tradição quer que aqueles que foram vítimas dos vampiros se transformem, por sua vez, em vampiros: são, ao mesmo tempo, esvaziados do seu sangue e contaminados. O fantasma atormenta o ser vivo com o medo, o vampiro mata-o apoderando-se da sua substância: ele só sobrevive através da vítima. A interpretação funda-se, neste caso, na dialéctica do perseguidor-perseguido. O vampiro simboliza o apetite de viver, que renasce quando o julgávamos apaziguado” (Alain Gheerbrant & Jean Chevalier, Dictionnaire des Symboles, 1969).
Os vampiros integram o regime nocturno, sombrio e lunar mas fecundo (Gilbert Durand, As estruturas antropológicas do imaginário, 1969). O regime solar, a luz do dia, é-lhes fatal. São prisioneiros da noite. É este o mote da espectacular campanha brasileira The Vampire Poster, para a série The Passage, da Fox. Cartazes com imagens de vampiros, pintados no dorso com tinta inflamável, incendeiam-se ao nascer do sol em diversos locais da cidade de São Paulo. O fogo reduz a cinzas e purifica. Na publicidade ainda há criatividade, criatividade que me parece definhar em vários templos da cultura.
Queimas, há muitas! Do Judas, da velha, do velho, das bruxas, dos hereges, das fitas… Queima-se o frio no São Martinho e a noite no São João. Queima-se o galo em Barcelos. Tudo se queima, tudo se regenera, tudo se purifica. Queimamos tudo, queimamos tudo, e não deixamos nada. Mas as cinzas não são cinzas, não; são sementes, sementes da nossa condição.
Um par de cabeças

Venez danser
Copain copain copain copain copain copain
Venez danser
Ça danse les yeux dans les seinsJacques Brel
Segundo Bergson, o riso está associado à observação desprendida de situações e comportamentos desajeitados (Charlot), inexpressivos (Buster Keaton), desviados (Don Quixote), desastrados (Mr. Hulot) ou desregrados (Mr. Bean). Mas quando o humor é criativo, quem fica sem jeito, desconcertado, é o próprio observador, que se sente deslocado para jogos que ultrapassam a razão desprendida. Tem cócegas no cérebro.
Com a verdade me enganas

As imagens-choque dos maços de tabaco – que passaram a ser obrigatórias faz hoje três anos – não surtem efeito junto da maioria dos consumidores e a própria Direção-Geral de Saúde admite não ter estudos que confirmem o impacto desta medida. Há quem escolha os maços em função das fotografias menos chocantes, mas, apesar de ligeiras flutuações, as vendas não apontam para uma forte quebra. Este ano, há sinais que indicam mesmo uma subida. Até abril, os dados da Autoridade Tributária mostram que a indústria colocou no mercado 3,1 mil milhões de cigarros contra 2,3 mil milhões em 2018 (aumento de 31%) e 2,8 mil milhões registados em 2016, quando a medida entrou em vigor (Ana Rita Seixa e Dina Margato, “Três anos de imagens-choque não demovem consumidores de tabaco”, Jornal de Notícias, 20.05.2019).
Para o ano, se Deus quiser! Em Portugal e noutros países. No entanto, a razão e o bem estão do lado dos pregadores. O medo é uma forma de recurso pedagógico. Parece funcionar com os animais. Por que não com os fumadores? Vale, porventura, a pena enganar as pessoas com a verdade.
Duas imagens da campanha anti tabaco são acompanhadas pela seguinte mensagem: “Fumar provoca 9 em cada 10 cancros do pulmão”. Os números variam de país para país e de região para região. A Roche adianta que “a nível mundial, uma em cada quatro pessoas vítimas de um cancro do pulmão nunca fumou (fonte: SUN S et al. Lung cancers in never smokers. A different disease. Nature Review Cancer 2007;7 :778-790). Dr. Sergio Salmeron & Pr. Jean Trédaniel apresentam um gráfico que tem o interesse de distinguir os ex-fumadores: em França, em 2010, 49,2% das mortes por cancro do pulmão foram de fumadores, 39.9% de ex-fumadores e 10.9% de não fumadores (http://www.sfrnet.org/rc/org/sfrnet/htm/Article/2013/20130715-130826-576/src/htm_fullText/fr/donn%C3%A9es%20%C3%A9pid%C3%A9miologiques%20r%C3%A9centes.pdf).

Enfim, qual é a probabilidade de morrer com um cancro do pulmão? Em Portugal, em 2010, a taxa de incidência bruta é 35.8 por 100 000, e a taxa padronizada 26.5 por 100 000 (Portugal Doenças Oncológicas em Números – 2015, Direcção-Geral da Saúde, Lisboa, 2016). Perdi horas à procura de taxas de incidência da morte por cancro do pulmão nos fumadores e nos não fumadores. Arrisco uma estimativa: cerca de 64 por 100 000 no que respeita aos fumadores e 6,2 por 100 000 para os não fumadores: 64 por 100 000 correspnde 0.064% (Hammond et al. Ann NY Acad Sci 1979; 330: 473-90; http://www.sfrnet.org/rc/org/sfrnet/htm/Article/2013/20130715-130826-576/src/htm_fullText/fr/donn%C3%A9es%20%C3%A9pid%C3%A9miologiques%20r%C3%A9centes.pdf). O assunto não justifica mais perda de tempo. Que a taxa de mortalidade do cancro do pulmão nos fumadores ronde os 64 por 100 000 assusta-me menos e informa-me mais do que “fumar provoca 9 em cada 10 cancros do pulmão”. Acho que vou adiar, por um tempo, a compra da sepultura. Tudo isto é mórbido e necrófilo. Tudo isto existe, tudo isto é triste, mas não é fado. A fumar à entrada do edifício, a maioria dos amigos e colegas acenava-me com o espantalho da morte. Não era para menos: “fumar provoca 9 em cada 10 cancros do pulmão”. Tentavam ressuscitar-me.
O sismo do amor

O amor ainda existe. Violento! Um amor cósmico. Magoado, o coração rasga o chão. Palpita e a terra treme. Edith Piaff e Buster Keaton, paixão e elegância. Um belo anúncio da Lacoste.
Cheirinho a bebé

Pierre Bourdieu sustenta que os cientistas e os artistas têm “interesse no desinteresse”. Não sou artista nem cientista. Tenho “desinteresse no interesse”. Escrevo o que quero, como quero, para quem o entender (Albertino Gonçalves).
Admiro Edgar Morin desde a adolescência. “Troquei”, criança de vinte e poucos anos, argumentos com Edgar Morin, num colóquio na Sorbonne, a propósito da Sociologia do Conhecimento, do intelectual e de Karl Mannheim (Cahiers Internationaux de Sociologie: Sociologies, vol. 71, 1981). Em Para Sair do Século XX (1981), Edgar Morin conta uma história acerca da realidade da ilusão:
A testemunha caminhava ensimesmada quando é abalada por um acidente. Um mercedes não respeita o sinal vermelho e embate num citröen “dois cavalos”. Aproxima-se e constata, contrafeita, que foi, afinal, o citröen que embateu no mercedes: a frente do citröen estava desfeita e o mercedes apresentava uma amolgadela lateral. De qualquer modo, a testemunha insiste que foi o mercedes que desrespeitou o sinal vermelho. Visto com os seus próprios olhos! Que não, afirma o dono do Mercedes! Que não, confirma o condutor do citröen.
A testemunha testemunhou. Ao observar, configura e fabula o mundo e a experiência. O mercedes bateu no citröen e desrespeitou o sinal vermelho. Uma ilusão generosa! “Temos todos tendência a ver na força um culpado e na fraqueza uma vítima inocente” (Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, 1984). Compaginamos a realidade segundo os nossos valores e esquemas mentais.
Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. Este episódio ilustra a reificação da consciência (Georg Lukács, História e consciência de classe, 1923; Joseph Gabel, La Fausse Conscience, 1962). A testemunha capta um mercedes a chocar com um citröen e a desrespeitar um semáforo. Um mundo animado por objectos. Quem desrespeita não é o mercedes mas o condutor. Neste relato, os condutores são apêndices dos objetos.
A propósito da percepção, Jean Cazeneuve (Les pouvoirs de la télévision, 1970) enuncia os quatro passos da recepção de uma mensagem televisiva: exposição selectiva; retenção selectiva, interpretação; e memorização. Um telespectador presta atenção a determinados programas, ignorando os demais. Nalguns casos, a influência potencial de uma emissão nem sequer começa. Por outro lado, o telespectador retém apenas uma parte do que vê; ignora a informação restante. A testemunha, da infinidade de estímulos que a rodeiam, fixa-se no choque das viaturas. Acresce que a recepção do telespectador é, intrinsecamente, configuração e atribuição de sentido. A recepção releva da “semiose social” (Eliseo Verón, Conducta, Estructura y Comunicación, 1968). A testemunha interpreta a realidade consoante a sua “maneira de agir, pensar e sentir” (Émile Durkheim, As regras do método sociológico, 1895). Por último, a memorização: pouco recordamos do que vivemos. Como diria Arthur Conan Doyle, somos, para nosso próprio bem, cangalheiros da própria experiência.
“Para mim, o cérebro humano, em sua origem, é como um sótão vazio que você pode encher com os móveis que quiser. Um tolo vai entulhá-lo com todo tipo de coisa que for encontrando pelo caminho, de tal forma que o conhecimento que poderia ser-lhe útil ficará soterrado ou, na melhor das hipóteses, tão misturado a outras coisas que não conseguirá encontrá-lo quando necessitar dele (…) É um engano pensar que o quartinho tem paredes elásticas que podem ser estendidas à vontade. Chega a hora em que, a cada acréscimo de conhecimento, você esquece algo que já sabia. É da maior importância, portanto, evitar que informações inúteis ocupem o lugar daquelas que têm utilidade” (Arthur Conan Doyle, Um estudo em vermelho, 1888).
Esta crença do Sherlock Holmes pertence àquelas que, erradas em teoria, funcionam acertadamente na prática (Vilfredo Pareto, Tratado de Sociologia Geral, 1916). Retomemos Edgar Morin:
“Todo conhecimento comporta em si mesmo o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema com duas faces do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro, a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é tão mais difícil que o erro e a ilusão não se reconhecem, minimamente, como tais (…) Nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o sonho da vigília, o imaginário do real, o subjectivo do objectivo” (Edgar Morin, Les sept savoirs nécessaires à l’éducation, texto publicado pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura, em 1999).
Este desperdício de ideias vem a propósito do anúncio britânico L’Eau de Bebé, da Ecover. A publicidade conhece o poder do sensitivo e do afectivo ancorados em mitos e arquétipos. O anúncio controla o nosso olhar. Concentra-o e perspectiva-o num equilíbrio envolvente que raia a obsessão. Uma fixação circular em torno do homem, do bebé e da embalagem de Eau de Bébé. Na parte final, a embalagem de Eau de Bebé retoma, no feminino e, eventualmente, no homossexual, as imagens precedentes com o homem e o bebé, dois momentos do mesmo ciclo.
O homem objecto lembra o belo Adónis, criado e disputado por Afrodite e Perséfone. O menino lembra Cupido e as mulheres, vestais zeladoras da virgindade e do aroma do detergente da Ecover. O ambiente é celestial. Tipo Olimpo. Tudo muito asseado: o bebé, o adulto, as vestais, os pedestais e a poção mágica:
“Let babies smell like babies. Choose Ecover Zero. A laundry liquid with zero fragrance for zero baby scent interference. It’s Allergy UK approved” (Ecover Zero).
O anúncio da Ecover focaliza, embacia, desloca e satisfaz o olhar. O Eau de Bébé é uma dádiva dos deuses, um cheirinho a criança sem fraldas nem bolsados. Tudo é higiene e amor. Até o cérebro fica mais lavado. O que a publicidade não faz por nós!
A passo de caracol: 800 000 visualizações.

O blogue Tendências do Imaginário é um caracol sem asas. Sem institucionalização, publicidade, tribalismo ou alavanca, avança devagar colado ao chão. Acaba de ultrapassar as 800 000 visualizações. Com 302 artigos publicados e 141 243 visualizações no ano 2018. Sobressaem três países: Brasil, Portugal e Estados Unidos (ver gráfico 1). O gráfico 2 apresenta os dez artigos mais consultados em 2018. Obrigado, pela visita!


Perguntar não ofende

“O Tango é uma tradição que se desloca. Este estado deslocado diferencia-o dos folclores fazendo dele uma cultura de viagem. Viagem dos imigrantes que escrevem o seu próprio romance, passo a passo, na cidade de Buenos Aires. Este romance é um livro aberto à estrutura destroçada. Mesmo nesta cidade, os Argentinos vivem como gente de viagem. Com um instrumento sob o braço ou uma melodia assobiada no canto dos lábios, eles põem em prática a teoria da viagem” (Nathalie Clouet : http://francoisheim.com/arpaban-tango.html).
Passar, mentalmente, pelo Rio da Prata comporta riscos. Por exemplo, o risco de conjeturar. Se “perguntar não ofende”, permito-me perguntar: se o tango canta as pessoas que se deslocam, que viajam, o fado quem canta e o que canta? A viagem dos que ficam?