Salto de assunto em assunto com a ligeireza de um comentador de caixinha mágica. Acabo uma conversa sobre surrealistas e maneiristas, logo inicio um capítulo, com prazo para o do Dia da Nação, sobre a implementação de zonas industriais no interior do País. Entretanto, relaxo: ontem, a Deriva, uma iniciativa do curso de mestrado em Comunicação, Arte e Cultura; hoje, passagem pelo blog e massagem musical. Procuro um CD adormecido há anos e encontro o Trading Snakeoil for Wolftickets, do Gary Jules, editado em 2001. Seguem “o mundo maluco”, “a janela quebrada” e “algo mais”.
Gary Jules c/ Mylène Farmer. Mad World. Trading Snakeoil for Wolftickets. 2001. Timeless 2013 Live DVD
Gary Jules. Broke Window. Trading Snakeoil for Wolftickets. 2001
Gary Jules. Something Else. Trading Snakeoil for Wolftickets. 2001
Salvador Dali. A Descoberta da América por Cristóvão Colombo. 1959
Descobrir, descobrir, descobrir… Não-sei-quês e quase-nadas inesperados. Descobrir sem repouso. Dias sonhados e noites despertas, a fio, a escapar à sombra. Só ou acompanhado, mas a sair de si, desamarrar, derivar e perder-se. Distorcer ecos e ressonâncias. Rasgar o selo da perfeição. Descobrir e descobrir-se, exorbitar mesmo quando o corpo encolhe. E agradecer. Hoje, a tendência aponta para encobrir e desencobrir, desvendar, o que é diferente. Uma coisa é um rio turbulento, outra um pântano turvo. Descubra, descubra-se [salvo seja] e não hesite em abraçar o outro, manancial de surpresas, como a inquieta mas discreta guitarra de Juan José Robles. A música é um cúmplice infinito.
Juan José Robles. El Árbol Torcido. In-Quietud. 2019
O início da conversa dedicada aos “antepassados do surrealismo” mantém-se às 17 horas, do dia 27 de maio, no Museu D. Diogo de Sousa. Prevê-se não exceder os 60 minutos. Concluirá com um pequeno convívio.
Ontem, segunda, dia 22 de maio, foi alterada a data, para as 18 horas de sábado, dia 27, dos próximos encontros de futebol do S.L. Benfica e do F.C. Porto. Está em jogo a conquista, e a celebração, do título. Como é possível que uma decisão que interfere expressivamente na atividade de um País seja tomada de segunda para sábado? Os maneiristas afinal estavam certos: a razão, a estabilidade e a previsibilidade valem pouco; a vida depende do destino, do acaso, do último lançamento de dados.
A conversa sobre o surrealismo e o maneirismo começa, precisamente, no mesmo dia apenas uma hora antes. A divulgação foi iniciada na quinta-feira passada. Até então não teria custado antecipar o encontro uma hora, para as 16:00. Perde-se a vontade de projetar e promover o que quer que seja. Para compensar, o público, embora provavelmente mais reduzido, será, por filtragem, cinco estrelas.
Imagem: Giuseppe Arcimboldo, Cabeça reversível com cesta de frutas , 1590
Num país retangular que não cuida de se cuidar, o mais avisado é desviar a atenção. Por exemplo, para o rio, o mar, a brisa, as nuvens, as sereias, as amazonas e as musas. E fruta, muita fruta! Maçãs, melancias, maracujás. Com a espanhola Sandra Bernardo.
Os contrapoderes andam agitados, incisivos e imaginativos. Das pulgas fazem elefantes. Com a arte da comichão e do coçar.
Distinguem-se várias propensões, umas, por exemplo, apostadas na correção e no resgate, outras na transgressão e na renovação. Para onde oscilamos? Coexistindo, algumas tendência podem dominar as demais. A dominação torna-se hegemónica quando os dominados adotam a linguagem dos dominantes. Em que estado estamos? Enfim, poderão os contrapoderes aspirar à hegemonia?
Convido, a despropósito, ao confronto de algumas músicas de duas bandas britânicas com registos divergentes: energia, senão entusiasmo, dos Orchestral Manoeuvres In The Dark, dos anos 1980, e apelo, senão súplica, dos London Grammar, dos anos 2010.
Imagem: René Magritte. Reprodução proíbida. 1937
Orchestral Manoeuvres In The Dark. Electricity. Orchestral Manoeuvres in the Dark. 1980
Orchestral Manoeuvres In The Dark. Enola Gay. Organisation. 1980
Nas últimas décadas não publiquei os resultados da maior parte das investigações. Alguns apontamentos no blogue Tendências do Imaginário e um ou outro artigo por convite foram as exceções. Acumulei, entretanto, “legos” de conhecimento. Dando a vida voltas, entendo, agora, partilhá-los. Encetei várias conversas, montagens dos referidos legos: “Amor e morte nas esculturas funerárias”, em outubro, “Apontamentos sobre o ensino da arte” e “O olhar de Deus na cruz: o Cristo estrábico”, em novembro, “Vestir os nus: censura e destruição da arte”, em fevereiro e “A ambivalência do crime na arte”, em maio. “Antepassados do surrealismo: O Maneirismo, será a próxima, no dia 27 de maio, às 17 horas, no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Outras se seguirão, a um ritmo, previsivelmente, mais razoável.
“Antepassados do surrealismo: o maneirismo” perspetiva-se como uma conversa que convoca as principais componentes de um percurso que acumulou e montou, décadas a fio, um conjunto apreciável de legos resultantes de uma investigação caprichosa mas persistente. Associam-se-lhe textos emblemáticos, tais como “O delírio da disformidade” (2002); “Vertigens do barroco” (2007); “Dobras e fragmentos” (2009); e “Como nunca ninguém viu” (2011). Em suma, sintetiza, identifica, motiva e expõe, em jeito de balanço a partilhar.
À maneira das obras abordadas, a conversa deseja-se mais um espetáculo do que uma lição. Inspira-se mais na arte do que na ciência. Portanto, menos espírito de missão e mais instinto de prazer, próprio e alheio. Sobrará, mais ou menos a propósito, tempo para músicas, videoclipes e anúncios publicitários. O conteúdo essencial radica, porém, numa mão cheia de apresentações que confrontam artistas, por um lado, do auge do maneirismo da segunda metade do século XVI (e.g. François Desprez, Wenzel Jamnitzer, Lorenz Stoer, Giovanni Battista Braccelli e Giuseppe Arcimboldo) e, por outro, das vanguardas da primeira metade do século XX, mormente surrealistas, proto-surrealistas e, de algum modo, associáveis (e.g. Giorgio di Chirico, Max Ernst, René Magritte, Salvador Dali, mas também Pablo Picasso, Kasimir Malevich ou Mauritis C. Escher).
Cristalizar parte substantiva de uma vida num momento é aposta arriscada. Para partilhar, convém ser mais que um. Será grato contar com a sua presença.
Se fui estranho e estranhas foram as minhas figuras / Uma tal estranheza é fonte ao mesmo tempo de graça e arte; / E quem acrescenta aqui e acolá estranheza ao seu estilo, / Dá vida, força e espírito às suas pinturas (Giorgio Vasari. Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori – Vita di Piero di Cosimo, Pittor Fiorentino. Epitáfio. 1550)
Às voltas com os artistas maneiristas, deparei com meia dúzia de belas gravuras com rostos deveras feios da autoria de boémio (checo) Wenceslaus Hollar (1607-1677). Atendendo a que não vão ser contempladas na próxima conversa sobre a relação entre surrealistas e maneiristas, não resisto a partilhá-las.
Que o feio pode ser atraente é coisa assente. Se o belo vem acusando algum desgaste nos últimos séculos, o feio vai adquirindo protagonismo. E não apenas pela negativa. Demonstra-o, por exemplo, a recente dissertação do mestrado em Comunicação, Arte e Cultura do Pedro Abreu dedicada ao recurso ao feio na publicidade de automóveis.
Para compreensão dos contornos da estética do feio, aconselho duas obras clássicas: Do Grotesco e do Sublime, do Victor Hugo (1ª edição: 1827; anexo o respetivo pdf); e a Estética do Feio, publicada pelo alemão Karl Rosenkranz em 1853 (trad. francesa: Esthétique du Laid, Circé, 2004).
Como introdução às gravuras de Wenceslaus Hollar, pemito-me citar Sara Christova:
Através da sua obra, os maneiristas questionam a venerada aspiração à perfeição uma vez que sabem que tal não existe – somos todos perfeitamente imperfeitos. A ilustração pode captar estes defeitos de modo a provar ao mundo como até o pedaço de terra mais ténue pode tornar-se uma preciosa fonte de inspiração. Trata-se de mostrar até que ponto o feio pode ser belo e até que ponto o estranho é normal. O nosso mundo é magnificamente diversificado e imprevisível, e termos como “estranho” e “feio” não passam de meras ilusões do espírito nebuloso (Sara Christova, Defining the Strange and the Ugly Sara Christova, 2014: https://sarachristova.wordpress.com/2014/12/23/final-assignment/).
Two deformed heads facing each other, print, Wenceslaus Hollar, after Leonardo da Vinci. 1645Two deformed heads facing inwards, print, Wenceslaus Hollar, after Leonardo da Vinci. 1645Wenceslaus Hollar. A deformed couple facing each other. After Leonardo da Vinci. 1645Attributed to Wenceslaus Hollar. Two deformed heads facing each other. After Leonardo da Vinci. 1645Formerly attributed to Wenceslaus Hollar. Two deformed heads. After Leonardo da Vinci. 1645–50Wnceslaus Hollar. Two deformed heads facing each other. 1645
No momento preciso em que as notas de dez e vinte euros caíam nas minhas mãos, tive a sensação física de que a tecnocracia de Bruxelas tomava o poder, e que o simples gesto de pegar nessas notas assinava o meu consentimento (Alain-Gérard Slama, Chroniques des peurs ordinaires : Journal de l’année 2002, 2003).
Um último apontamento sobre o “ideal tipo” de tecnocracia, assunto que, por sinal, pouco me entusiasma.
A ação tecnocrata preza, por princípio, o consenso entre os decisores. Importa que os objetivos e os métodos sejam incontroversos. A ausência de consenso interno insinua-se como uma pedra na engrenagem. Por isso os tecnocratas dispensam tanto tempo, energia e recursos em negociações preparatórias de “decisões conjuntas”. Não é descabido conjeturar que a dificuldade em alcançar consensos justifica a dualidade e a inconsistência das políticas tecnocráticas.
Extremam-se, por exemplo, as medidas para salvar o próximo do consumo do tabaco ativo ou passivo. Este empenho esmorece, porém, quando estão em causa outros vícios e dependências, não menos adversos à “saúde” individual e coletiva, tais como a droga, o álcool ou o jogo. É desconcertante este desconcerto!
Manuel Freire. Pequenos Deuses Caseiros. EP Abaixo D. Quixote. 1973