O amor pela dúvida

Geniais! O anúncio e o teste. O valor reside na ideia; a técnica acompanha. O teste é duplamente virtuoso: como revelação e como comunicação: cada um convence-se a si próprio.
O que significa o resultado do teste? Herança de uma história que reservou o acesso à notoriedade aos homens? Uma memória coletiva seletiva que retém os nomes masculinos? Por que não, também, uma idiossincrasia pessoal?
Segue o anúncio Supradyn Memory Test, da Supradyn, bem como uma canção muito especial, com uma letra também inspiradora: Les gens qui doutent, de 1974, por Anne Sylvestre.
Les gens qui doutent – Anne Sylvestre (Paroles)
J’aime les gens qui doutent
Les gens qui trop écoutent
Leur cœur se balancer
J’aime les gens qui disent
Et qui se contredisent
Et sans se dénoncer
J’aime les gens qui tremblent
Que parfois ils nous semblent
Capables de juger
J’aime les gens qui passent
Moitié dans leurs godasses
Et moitié à côté
J’aime leur petite chanson
Même s’ils passent pour des cons
J’aime ceux qui paniquent
Ceux qui sont pas logiques
Enfin, pas “comme il faut”
Ceux qui, avec leurs chaînes
Pour pas que ça nous gêne
Font un bruit de grelot
Ceux qui n’auront pas honte
De n’être au bout du compte
Que des ratés du cœur
Pour n’avoir pas su dire :
“Délivrez-nous du pire
Et gardez le meilleur”
J’aime leur petite chanson
Même s’ils passent pour des cons
J’aime les gens qui n’osent
S’approprier les choses
Encore moins les gens
Ceux qui veulent bien n’être
Qu’une simple fenêtre
Pour les yeux des enfants
Ceux qui sans oriflamme
Et daltoniens de l’âme
Ignorent les couleurs
Ceux qui sont assez poires
Pour que jamais l’histoire
Leur rende les honneurs
J’aime leur petite chanson
Même s’ils passent pour des cons
J’aime les gens qui doutent
Mais voudraient qu’on leur foute
La paix de temps en temps
Et qu’on ne les malmène
Jamais quand ils promènent
Leurs automnes au printemps
Qu’on leur dise que l’âme
Fait de plus belles flammes
Que tous ces tristes culs
Et qu’on les remercie
Qu’on leur dise, on leur crie :
“Merci d’avoir vécu
Merci pour la tendresse
Et tant pis pour vos fesses
Qui ont fait ce qu’elles ont pu”
Demasiado velho para sonhar

Há notícias funestas que ameaçam as identidades das pessoas e dos lugares. Em má hora alguém se lembrou de minerar o território do Fojo junto ao Parque Nacional da Peneda-Gerês. A causa é a extracção do lítio e outras substâncias. A consequência é a perfuração do Fojo, com explosões e químicos à mistura. É difícil imaginar pior cenário. São lugares que resistiram a desafios de milhões de anos. Sossega-me acreditar que em Portugal se gosta do País. Gostam as pessoas, os animais e até os políticos. Tenho fé que a caravana, como outras, acabará por passar. O Fojo faz parte do “reino maravilhoso” que Miguel Torga pressente quando sobe rumo a Castro Laboreiro. É enorme o que está em risco: o ser, o estar, o sentir e o prazer das fragas, das águas, dos vales, das plantas, dos animais e, naturalmente, dos homens. Homens estúpidos que optam pelo que os prejudica. Que protegem a natureza com palavras e protocolos. O pior é que a minha geração está “demasiado velha para sonhar”.
Nada daquilo que mostra o anúncio Dream, da WCFF, devia acontecer. E, no entanto, está a chegar ao fim… Junto a canção When I Grow Too Old To Dream, interpretada por Nicki Parrot, com Rossano Sportiello.
Publicidade consagrada
O crescimento de anúncios consagrados a causas públicas é exponencial. Hoje, dia 1 de Outubro, na página Culturpub , seis dos dez novos anúncios são dedicados a causas:
- Alzheimer: E-Axz. Memory Error; da Entel (Perú);
- Antidroga: I Got This , da Face the Music and Recovery Unplugged (USA);
- LGBT: Love, do Canal Digital (Noruega);
- Violência sexual: It’s Illogical: The Wedding Caterer, da It’s on us (USA);
- Doação de órgãos: Speed dating as you’ve seen it before, da Speed Donating (UK);
- Prevenção rodoviária: When you get home, da Road safety (Holanda).
Outros anúncios:
- Um hambúrger salva uma criança: Icelandic boy, da Chicken Licken (África do Sul);
- Um Audi defende-se de condutores palhaços, Clowns, da Audi (UK);
- Uma mama espacial aleita crianças: Spaceship, da Rakunoh Mother, Japão;
- Uma carreira desportiva original, History is history, da Gatorade (USA).
Com ou sem causas, não há anúncio que não seja interessado. Alguns têm, inclusivamente, “interesse no desinteresse” (Bourdieu, Pierre, 1976, “Le champ scientifique”, Actes de la recherche en sciences sociales Année 1976 Volume 2 Numéro 2 pp. 88-104). Muitos não são interessantes. Importa, actualizar as ferramentas de análise dos anúncios publicitários.
Dos seis anúncios “consagrados”, destaco três:
- I Got This, pela exibição da miséria humana, com laivos de desrespeito e, até, sarcasmo para com as vítimas a resgatar. Lembra, pelo modo e pela música, o anúncio Unsweetened Truth, da America Legacy Foundation/Truth.
- Love, pela exibição eufórica do amor (homossexual) consubstanciado num beijo inesperado entre dois homens num santuário da masculinidade (um estádio de futebol).
- When you get home centra-se na relação entre um polícia e uma criança vítima de um acidente rodoviário.
Marca: Face the Music and Recovery Unplugged. Título: I got this. Agência: Ari Merkin. Direcção: Jared Knecht. USA, Setembro 2017.
Marca: Canal Digital. Título: Love. Agência: Try, Oslo. Direcção: Martin Werner. Noruega, Setembro 2017.
Marca: Road Safety. Título: When you get home. Produção: 25FPS Amsterdam. Direcção: Ben Brand. Setembro 2017. Carregar na imagem para aceder ao vídeo.
Originalidades
O anúncio Original is never finished chapter3, da Adidas, arrisca tornar-se num marco no mundo da publicidade. Tema arrojado, imagens primorosas e intertextualidade subtil. Ironicamente, a originalidade é declamada com citações. A originalidade não acaba, recria-se. Por exemplo, a canção do anúncio, My Way, associada a Paul Anka e Frank Sinatra, é, afinal, uma originalidade francesa: Comme d’habitude (1967), com autoria e interpretação de Claude François. Nada como ser original graças à originalidade dos outros. Ser original em segunda mão. Reoriginalidades.
Marca: Adidas. Título: Original is never finished chapter3. Agência: Johannes Leonardo New York. Estados Unidos, Agosto 2017.
O romantismo atribui a originalidade ao indivíduo e ao génio. Esquece que a originalidade requer poder. Para ser original, a inteligência e a criatividade não bastam. Sem posição, alavanca e recursos, resulta improvável o reconhecimento como original. A originalidade é cada vez mais um luxo da academia dos Balnibarbos (Swift, Jonathan, 1726, As Viagens de Gulliver, Terceira Parte, Capítulo V). Não tarda a originalidade ser instituída por decreto. “Segundo publicação no Diário da República (…), está aberto concurso para originais (…) O júri é composto por clones especialistas na padronização do espírito”.
Não se deve brincar com coisas sérias! Caminhamos para um mundo que não sabe distinguir entre originalidade e repetição. Receio que as tendências actuais na organização da actividade científica (infografias, concursos, avaliação, financiamento) concorram para um menosprezo crescente do valor da originalidade.
Optimismo
Perco-me nas origens, mas não consigo recomeçar. Este anúncio não me assenta bem, é optimista. Mas gosto de o ver e, ainda mais, de o ouvir:
“Ensinei aos homens a ver o copo meio cheio, mas, sobretudo, a poder enchê-lo”.
“Não me recuso a ver a infelicidade, mas recuso ver uma fatalidade”.
Marca: Carrefour. Título: Je suis l’optimisme. Agência: Publicis K4. França, Março 2016.
Mergulho inglório
Mergulhar vestido numa piscina para resgatar um boneco de peluche talvez seja humano. Ter caprichos é, com certeza, humano. Dos 0 aos 150 anos. A cadeia de hotéis Sheraton mima, pelos vistos, os clientes, mesmo aqueles que atiram outros objectos em vez de bonecos para a piscina.
Marca: Sherato, Título: We dive in and go beyond. Agência: Venables Bel & Partners San Francisco. USA, Abril 2017.
Proporcionou-se ver um telejornal. Crise da Síria, atentados contra os coptas no Egipto, cerimónia em memória do atentado na Suécia, funeral do polícia morto no atentado de Londres, tiroteio numa escola nos Estados Unidos e… um jovem convidou uma actriz para a festa dos finalistas. Ela agradece, mas não pode, está ausente. A comunicação é um circo ou sou eu o palhaço?
O Ditador Caprichoso
A paródia arremeda a realidade para a subverter, pela farsa, pela caricatura, pela ironia, pelo sarcasmo. Desarma, por exemplo, o poder cobrindo-o de ridículo. Rir do mal faz bem? A quem? Ao ditador caprichoso ou à vítima indefesa? A resposta não é óbvia (Georges Balandier, O Poder Em Cena, 1ª ed. 1980). O imaginário é complexo. Entre ingredientes, receitas e cozedura, a pastelaria simbólica é imprevisível.
Marca: Cha Time. Título: You’ve Never Had Iced Tea Like This Before. Agência: The Sphere Agency. Direcção: Tyler Clayton. Austrália, Abril 2016.
Realidade virtual
No anúncio australiano Eagle Woman, da 8 Bar, uma mulher voa como uma águia e levita como um santo. Sem levitação, o voo seria pesado. Por sinal, já conseguimos imitar o voo dos pássaros, por exemplo, com modalidades desportivas como a asa-delta ou o wingsuit.
Jean Duvignaud, Françoise Duvignaud e Jean-Pierre Corbeau recolheram milhares de relatos de sonhos. Muitos franceses sonham com voar, em particular os membros das novas classes médias (Duvignaud, Jean et alii, La banque des rêves, Paris, Payot, 1979).
Não sou dado a profecias, mas, quando a poesia se alucina, não resisto. A realidade virtual apossar-se-à nos próximos tempos da rampa tecnológica. Com que impacto? Creio que antes do Juízo Final, mais do que a imersão num simulacro pré-fabricado, vamos aceder ao espectáculo da própria “alma”, desde a cave até ao sótão (Bachelard, Gaston, La Poétique de l’Espace, Paris, PUF, 1957) e do recalcado ao sublimado. Em suma, o inconsciente e o não-consciente. Todo o icebergue! Uma experiência “terrível”.
Na sanefa das escadas de acesso ao coro alto do Mosteiro de Tibães, aguarda-nos a seguinte inscrição: “Terribilis este locus iste, vere, hic domus dei est, et porta coeli” (“Este lugar é terrível. Esta é a casa de Deus e a porta do céu”: Oliveira, Paulo, “O coro alto da igreja do mosteiro de Tibães”, Minia, nº13, IIIª série, 2014). Nem terríveis, nem extraordinários, eu e o Paulo Oliveira vamos dar uma aula aberta, com visita, no Mosteiro de Tibães, subordinada ao tema O espaço fala – O Coro Alto e o Escadório das Virtudes do Mosteiro de Tibães. No âmbito do Programa Doutoral de Estudos Culturais, terá lugar no dia 26 de Abril, às 14:30. Apareça, será bem-vindo.
Marca: 8Bar. Título: Eagle Woman. Agência: DDN Melbourne. Direcção: Tim Bullock. Austrália, Março 2016.
Malmequer
Desfolhar anúncios publicitários como quem desfolha um malmequer.
Gosto! Anúncio com humor fantástico centrado no tema da luz. A morte que precede a lâmpada Ocedel tem tanto de catastrófico como de risonho e promissor. O anúncio progride sob o signo do amor e da esperança. A figura do homem vaga-lume é luminosa.
Marca: Ocedel. Título: Firefly Man. Agência: Nitto Tokio. Japão, Dezembro 2015.
Não gosto! Anúncio bem concebido e bem realizado, centrado na interacção trágica entre o amor e a morte. Nem sequer falta o “beijo da morte”! A morte é medonha, fatal, e a vida pecadora e frágil. Após décadas de planalto, vislumbram-se montanhas de medo. O medo propaga-se nas nossas sociedades. Porventura, mais do que a liquidez, as condutas de risco e o tribalismo. Não aprecio a educação pelo medo. Já há medo quanto baste! Livrai-nos de sociedades assustadas!
Anunciante: Western Cape Government. Título: The First Kiss. Agência: Y&R Capetown. África do Sul, Março 2016.
Renascimento mecânico
Alguns profetas proclamaram o fim das narrativas. Entretanto, as narrativas continuam, algumas colossais, tais como o (neo)liberalismo e o terrorismo. Este anúncio indiano é uma narrativa de morte e renascimento, cujos protagonistas são objectos técnicos. O equivalente dos brinquedos de E.T.A. Hoffmann. O heróico porta-aviões Vikrant renasce, por transmutação, no motociclo Bajaj V. A aura dos símbolos também se transfere.
Marca: Bajaj V. Título: Rebirth. Agência: Leo Burnett. Direcção: Rajesh Saathi. Índia, Fevereiro 2016.