Pobres dos ricos
“A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente.”
(Amália Rodrigues, Uma casa portuguesa, letra de Reinaldo Ferreira, 1953)
A alegria da pobreza só tem par na tristeza da riqueza. Como diria o Marquês de Sade, “toda a felicidade do mundo está na imaginação”. Com este andar, o meu povo vai rebentar de felicidade. Uma espécie de Big Bang da imaginação. Sem imaginação, como vão ficar tristes os ricos. Pobres dos ricos, são tão ricos!
Marca: Jechange.fr. Título: Sacrifices. Agência: Altmann+Pacreau. Direcção: Jérôme Langlade. França, Fevereiro, 2015.
Amália Rodrigues. Uma casa portuguesa. 1953.
Alucinação
Michel Gondry é um cineasta francês que ganhou um Óscar com o filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2005). A par de Chris Cunningham e Spike Jonze, Michel Gondry é um dos mais destacados realizadores de vídeos musicais. Dirigiu vários anúncios publicitários. É conhecido pelo efeito Gondry, uma variante complexa da técnica de frozen. Os seus vídeos propõem uma relação com o espaço e um encadeamento de sequências alucinantes. Seguem duas relíquias: o anúncio Flashbacks (1997), para Smirnoff, e o vídeo musical Like a Rolling Stone (1995), dos Rolling Stones, um dos primeiros vídeos em que Michel Gondry recorre ao efeito Gondry.
Marca: Smirnoff. Título: Flashbacks. Agência: Lowe-Horward-Spink. Direcção: Michel Gondry. UK, 1997.
Rolling Stones. Like a Rolling Stone. Michel Gondry. 1995.
Vitalidade
Este anúncio, Construye, da FAD (Fondación de Ayuda contra la Drogadicción), configura um chamamento. Dispensa focalizar-se no resgate de almas perdidas em comboios fantasmas ou em resorts do inferno. Apela à vitalidade criativa e ao reconforto pessoal. Create / construye, eis o lema. Afinal, é possível consciencializar sem condenar. Um anúncio exemplar.
Anunciante: FAD (Fondación de Ayuda conta la Drogadicción). Título: Construye/Create. Agência: Publicis. Espanha, Março 2015.
O burro e a violência doméstica
Na França pós-renascentista, o marido agredido ou dominado pela mulher era colocado às arrecuas num burro, com a cauda na mão. Neste preparo, percorria, injuriado e ridicularizado, as ruas da cidade. Em Inglaterra, era atrelado a uma carroça e coletivamente humilhado (Bough, Jill, Donkey, London, Reaktion Books, Ltd, 2011. p. 17). Estes costumes lembram-me as apupadas, que, ainda não vai muito tempo, fustigavam, pela noite dentro, o casamento de viúvos, velhos e noivos com grande diferença de idade.
Nos séculos XVII e XVIII, em França e em Inglaterra, existiam maridos agredidos e dominados pelas esposas. A sociedade não só conhecia a existência do fenómeno, como previa formas de o corrigir. Vigorava o patriarcado. Um homem vítima da mulher configurava uma inversão inadmissível dos papéis de género. Homem que é homem é dono da casa. Se é vítima da mulher que não espere solidariedade mas vexame.
Volvidos dois séculos, as nossas instituições, nacionais e internacionais, resolveram experimentar o efeito Pigmaleão. Estudaram a violência doméstica confinando-se às mulheres. Confirmaram, naturalmente, que só havia mulheres vítimas de maus tratos domésticos! Admitia-se a existência de um número reduzido de homens possivelmente vítimas da autodefesa feminina. Esqueceram-se, porventura, que esses homens tinham direitos e que os direitos não se medem aos palmos. Orientei uma investigação numa instituição de apoio à vítima. Durante a observação, apresentaram-se alguns homens. Não voltaram. Ou a solução foi súbita ou a esperança morreu. A Pós-modernidade não cumpriu o que prometeu: acabar com grandes narrativas e ideologias. Há casos em que se restauram. O patriarcalismo e o feminismo até podem complementar-se! A cegueira em relação à violência doméstica ancora-se em estereótipos tais como: “um homem é um homem” e “a mulher é quem sofre”.
Foi preciso aguardar pelos anos setenta pelo início, nos Estados-Unidos, de estudos envolvendo homens e mulheres (para o “estado da arte”, a partir de 111 estudos, http://www.cronicas.org/informe111.pdf). Os resultados são “surpreendentes”: as taxas dos homens aproximam-se das taxas das mulheres (ver http://www.fact.on.ca/Info/dom/george94.htm).
Não sou especialista em violência doméstica, mas pergunto: Já avaliaram e adaptaram os dispositivos de apoio à vítima de modo a atender quem necessita como necessita? Vários autores sustentam que as políticas zarolhas de luta contra a violência doméstica têm agravado a situação. É verdade?
Tantos disparates em tão poucas letras merecem um passeio de burro. Com Napoleão Bonaparte, a caminho do exílio.
Fuga da rotina
A primeira parte do anúncio Routine Republic, da Taco Bell, lembra o filme Equilibrium (2002). Na República, totalitária, da Rotina, a passividade dos cidadãos é garantida pelo consumo de hamburgers. Em Libria a neutralização das emoções é assegurada por uma droga, o Prozium, injectada colectivamente ao som da propaganda do regime. Em ambos os casos, destaca-se o aparato policial.
Na segunda parte, esperava outra modalidade de libertação por parte do casal. No anúncio Odyssey (2002), da Levi’s (aceder http://tendimag.com/2011/09/16/libertacao/), o casal destrói os muros com o próprio corpo. Por seu turno, o muro dos Pink Floyd acaba, apesar de tudo, por se desmoronar. Em Berlim, aconteceu o que se sabe. No anúncio Routine Republic, a via de libertação resume-se a um pequeno buraco no muro, por onde passa uma pessoa de cada vez. No fim de contas, os dois jovens são desertores (defectors), não são libertadores. A passagem do muro é individual. O mundo permanece dual, maniqueísta. Do lado mau, o totalitarismo, a rotina, o inumano e o hamburger; do lado bom, a democracia, a festa, o humano e o Taco Bell.
Marca: Taco Bell. Título: Routine Republic. Agência: Deutsche. USA, Março 2015.
Sileno, o vinho e o burro
Não é apenas nas festas medievais ou durante a Bugiada de Sobrado que o burro é montado às avessas. Sileno, semideus, o mais velho dos sátiros, faz-se acompanhar por um burro. Constantemente ébrio, Sileno foi tutor de Dionísio, a quem passou a paixão pelo vinho. A sabedoria de Sileno reside na sua ebriedade. É sábio por não estar sóbrio. Cumpre ao burro aguentar esta carga obesa e periclitante. A posição mais típica de Sileno em cima do burro é às arrecuas. Montar um burro às avessas condiz com a figura de um semideus que se entrega ao vinho e ao sexo, semeando a confusão e a desordem.
Sileno gostava de visitar o mundo dos homens, mas nunca falava com eles. Exceto uma vez. Tão bêbado estava, que se perdeu do grupo que o acompanhava. O rei Midas encontrou-o e desafiou-o a dizer o que era melhor para os homens. Sileno calou-se, como era seu costume. Não falava com os homens. Mas rei Midas tanto insistiu, que Sileno quebrou, por uma única vez, o silêncio:
“– Ignóbil raça, essa a dos homens, efêmeros rebentos do acaso e dos maus dias. Tão afastados estais da natureza que nem mesmo sabeis o que é melhor para vós próprios. Seres patéticos; e tu, filho de Górgias e Cibele, a quem chamam de Midas, Rei da Frígia, nada mais és senão fiel representante desta raça. Não há dúvida, estás a altura dela. Não vês? Por quais tolas razões queres saber algo que para ti é inalcançável? O que é o melhor para os homens, tu me perguntas. Creia-me, para ti, melhor mesmo seria não sabê-lo. Porém, como estás obstinado, revelar-te-ei o que não precisas para te manteres são. O melhor para ti seria não teres vindo à luz, não teres nascido. Não ser, ser nada, isto seria o melhor para ti e para os demais da tua estirpe. Contudo, como hoje te encontras a distância do infinito de tal logro, resta-te ainda uma opção: agora, o melhor para ti é cedo morrer. Assim, retornarás a tua verdadeira condição pretérita, menor que o mínimo. “ (https://scribatus.wordpress.com/2013/08/24/sileno/).
O rei Midas deu abrigo a Sileno. Poucos dias depois, Dionísio vem buscar Sileno. Agradecido, diz a Midas para formular um desejo. O pedido foi que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Um presente envenenado. Mas essa já é outra história.
Sem sombra de defeito
Fazem tudo para nos fazer sentir mal. Que talento! E ainda regozijam. Não fossemos moles e até chateava. Mas não! Nem sequer nos fazemos rogados: vemos e partilhamos. Acima de um milhão de visualizações na Internet em poucos dias. Um belo anúncio. Valha-nos o humor e a criatividade. Resta-nos compreender e aceitar! É para a nossa salvação. Desculpem! É pela nossa saúde! A salvação do lado do corpo. Toca a prevenir vícios e defeitos… UnitedHealthCare. Registou? Tal como sopram os ventos, não tarda, bastará um pequeno defeito para sermos reciclados. Vade retro! Respire fundo. Há tanta gente a preocupar-se connosco, os anormais.
Anunciante: UnitedHealthCare. Título: Our song. Agência: Leo Burnett. USA, Março 2015.
Máscaras: Bugiada e James Ensor
Apeteceu-me revisitar a Bugiada de Sobrado. Desta vez, via Internet. As máscaras lembram James Ensor (Bélgica, 1860-1949). Não têm qualquer ligação, mas, ressalvando a obsessão de Ensor pelo tema da morte, é uma tentação ensaiar um diálogo. A cor, a fantasia e a exuberância justificam-no. Segue uma miscelânea de imagens da Bugiada e da obra de James Ensor.
A Bugiada de Sobrado é caracterizada por uma riqueza, uma originalidade, uma ancestralidade e uma participação popular notáveis. Chamo a atenção para a fotografia com o burro montado ao contrário. Tal como na Idade Média, durante a missa do burro (ver Figura 20, na página da direita, em baixo). Outrora como agora, o burro montado ao contrário significa a inversão do mundo, um mundo às avessas (sobre a missa do burro, ver http://tendimag.com/2015/02/19/tolos-e-burros/).
- 01. Bugiada
- 02. Bugiada
- 03. bugiada
- 04. James Ensor. Christ’s Entry into Brussels in 1889. 1888
- 05. Bugiada
- 06. James Ensor, La Mort et les masques. 1890
- 07. James Ensor.Death and the masks. 1900
- 08. bugiada
- 09. James Ensor. A Intriga, 1890
- 10. Bugiada
- 11. James Ensor. Masks Confronting Death. 1888, detail.
- 12. Bugiada
- 13. James Ensor Du rire aux larmes Laughter with the tears. 1908.
- 14. Bugiada.
- 15. James Ensor . Still Life in the Studio, Nature morte dans l’atelier, 1889
- 16. James Ensor. Astonishment of the Wouse mask. 1889
- 17. Bugiada
- 18. James Ensor. Masques regardant une tortue. 1894.
- 19. Bugiada
- 20. Macclesfield Psalter. 1330.
Riso e Maldade
O riso é malicioso? Só nos rimos do mal dos outros? Com maldade? Quanto mais insólita for a situação? Em grupo? Há anúncios que convocam esta maldade. No Tendências do Imaginário, são às dezenas. Nalguns casos, o riso é franco, noutros, corrosivo. Este anúncio, Introducing Bad Happy, da Mentos, integra uma série, mentos ementicons, todos com o mesmo sentido de humor.
Marca: Mentos. Título: Introducing Bad Happy. Agência: BBH London. Direcção: Mathew Pollock. UK, Fevereiro 2015.
A Folia de Vivaldi
Vi, vezes sem conta, nas aulas, Vivaldi, Un Prince à Venise (2006), de Jean-Louis Guillermou. Um filme pedagógico sobre a vida de Antonio Vivaldi (1678-1741). “O padre vermelho” torna-se famoso e admirado na Europa. Mas nos últimos anos de vida conhece dificuldades, hostilizado por parte do clero, ultrapassado pela moda e criticado por poetas e compositores, entre os quais Goldoni e Marcello. Vivaldi vê-se constrangido a vender parte das partituras e, com 63 anos, deixa Veneza rumo a Viena, onde, passados poucos meses, morre, sendo sepultado numa campa sem nome. A própria música entrou em hibernação. A maior parte do seu repertório foi (re)descoberta nos anos 1920’ e divulgada nos anos 1950’. A vida é assim feita: tudo que sobe pode descer e vice-versa, como as calças de ganga, o rugby, os tacões e os lenços de namorados.
Antonio Vivaldi compôs uma folia, música e dança de origem portuguesa (ver http://tendimag.com/2013/08/02/folia-portuguesa/). Ver e ouvir, na medida do possível, até ao fim.
Antonio Vivaldi. La Folia. Interpretação: Apollos’s Fire