Tolos e burros

Sem hipóteses e sem metas também se faz caminho. Descobre-se e aprende-se. Com hipóteses e com metas muitas vezes só se descobre o que já se sabe. Deparei com este livro sobre a festa dos loucos numa travessia movida a curiosidade. Gosto mais de encontrar um búzio adormecido num charco do que uma ilha com GPS. O autor é Mr. Du Tilliot, o título Mémoires pour servir à l’histoire de la fête des fous (Lausanne e Geneva, 1741). Interesso-me pela festa dos loucos, que foi popular durante a Idade Média e desapareceu por volta do século XVII. Li muitas descrições da Festa dos Loucos, mas nenhuma de um autor do século XVIII.

The Festival of Fools. after 1570. After Pieter Bruegel.

The Festival of Fools. after 1570. After Pieter Bruegel.

“Elegia-se nas Igrejas Catedrais um Bispo ou um Arcebispo dos Loucos, e a sua eleição era confirmada por muitas bobices ridículas que serviam de consagração, em seguida promoviam-no a oficial pontífice, para dar a benção pública loucamente ao povo, transportando a Mitra, a Cruz e, mesmo, a cruz arquiepiscopal. Mas as Igrejas Isentas, ou que recebem imediatamente da Santa Sede, elegiam um Papa dos Loucos (unum Papam fetuorum) a quem também se dava, com grande derisão, os ornamentos do papado, de modo a que pudesse agir e oficiar solenemente como o Santo Padre.

Os Pontífices e as Dignidades desta espécie eram assistidos por um clero também licencioso. Viam-se os Clérigos e os Padres fazer na Festa uma mistura horrorosa de loucuras e impiedades durante o serviço Divino ao qual só assistiam, nesse dia, com roupas de Mascarada e Comédia. Uns estavam mascarados, ou com as caras manchadas, que metiam medo ou que faziam rir, outros com roupas de mulheres ou de pantomimos, como os atores de Teatro. Dançavam no coro e cantavam canções obscenas. Os diáconos e os subdiáconos entregavam-se ao prazer de comer chouriços e salsichas no Altar, debaixo do nariz do padre oficiante: jogavam às cartas e aos dados: colocavam no Incensário pedaços de calçado velho para dar a respirar um mau odor. Após a missa, cada um corria, saltava e dançava pela igreja com tanta impudência que alguns não tinham vergonha de se entregar a extremas indecências, e de se despojar completamente: em seguida faziam-se conduzir pelas ruas em tonéis cheios de imundícies, tomando prazer em arremessá-las à populaça que acudia à sua volta. Paravam e faziam com os seus corpos movimentos e posturas lascivas, que acompanhavam com palavras impúdicas. Os mais libertinos dentre os Seculares misturavam-se no meio do clero, para assumir também algumas personagens de loucos em trajes eclesiásticos, de Monges e Religiosas” (Mr. Du Tilliot, Mémoires pour servir à l’histoire de la fête des fous, 1741, pp. 5-6).

After Pieter Bruegel the Elder. Feast of Fools. After 1570.

After Pieter Bruegel the Elder. Feast of Fools. After 1570.

“Mas não era só nas Catedrais e nas Colegiadas que se fazia a festa dos loucos. Esta impiedade acontecia, inclusivamente, nos Mosteiros dos Monges e das Religiosas. Ficamos a conhecer pela queixa que Nandé escreveu a Gallendi em 1645 , sobre os costumes abusivos que se praticam em Aix, no dia do Corpo de Deus durante a procissão do Santo Sacramento, que em determinados Mosteiros de Provence se celebra  a festa dos Inocentes com Cerimónias tão impertinentes e tão loucas, como se faziam outrora as solenidades aos falsos Deuses. O exemplo que avança comprova-o. Nunca, diz ele, os Pagãos solenizaram com tanta extravagância as suas festas cheias de superstições e de erros como se soleniza a festa dos Inocentes em Antibes entre os Cordeliers. Nem os Religiosos Padres, nem os Guardas vão ao Coro nesse dia. Os irmãos Laicos, os Irmãos-Corta-Couve, que fazem o peditório, aqueles que trabalham na cozinha, os ajudantes de cozinha, os que tratam dos jardins, tomam o seu lugar na Igreja e dizem que vão produzir um ofício conveniente a tal festa, uma vez que são os loucos e os furiosos, e dizendo-o assim o fazem. Vestem ornamentos sacerdotais, todos despedaçados, e virados do avesso. Seguram nas suas mãos livros virados ao contrário, lidos de frente para trás, fazendo de conta que os leem com óculos a que retiraram os vidros, e aos quais adaptaram cascas de laranja, o que os torna disformes, e tão horríveis, que é preciso ver para crer, sobretudo que, após terem soprado nos incensários que abanam nas mãos por derisão, a cinza cobre a cabeça de uns e outros. Nestes atavios não cantam nem Hinos, nem Salmos, nem Missas correntes; mas resmungam determinadas palavras confusas, e dão gritos tão loucos, tão desagradáveis e tão discordantes, como uma vara de porcos a grunhir: de tal modo que as bestas brutas não celebrariam pior o ofício do dia. Porque mais valeria, efetivamente, trazer as bestas brutas para a Igreja, para louvar o Criador ao seu jeito, e seria, certamente, uma santa prática a seguir, do que aguentar estas pessoas que gozando Deus, com semelhantes louvores, são mais loucos e mais insensatos do que os animais mais insensatos e mais loucos” (Mr. Du Tilliot, Mémoires pour servir à l’histoire de la fête des fous 1741, pp. 19-20).

Estes relatos apontam para a Festa dos Loucos como um momento catártico pautado pela confusão e pela inversão. O episódio dos livros lidos e virados do avesso é sintomático. A festa dos loucos encerra, no entanto, outras dimensões que foram evidenciadas por Mikhail Bakhtine: a experiência da liberdade através do mergulho num caos revitalizador e da turbulência colectiva utópica.

Le livre de Lancelot du Lac. Autres romans arthuriens. Nord de France. 13e siècle.

Le livre de Lancelot du Lac. Autres romans arthuriens. Nord de France. 13e siècle.

Tenho-me interessado mais pela Festa do Burro do que pela Festa dos Loucos. São congéneres e há quem as confunda. No entanto, o burro que entra na Igreja montado por uma bela donzela, uma alusão à fuga para o Egipto, é apanágio da Festa do Burro. Bem como o burro montado ao contrário pelo arcebispo “faz de conta”. Por acréscimo, a missa centra-se toda na figura do burro. Cânticos zurrados culminam com o público a bramir no fim da missa. Mas ainda não é desta vez que me proponho falar da Festa do Burro.

O Clemencic Consort publicou, em 1985, uma excelente colectânea com cânticos da missa do burro. Selecionei a Kyrie Asini – Litanie. Uma pérola que não devia partilhar, mas quem chegou a este ponto do artigo merece recompensa. Como falso consolo, atentem que mais seca do que o ler foi traduzi-lo do francês arcaico.

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4 responses to “Tolos e burros”

  1. Beatriz Martins says :

    Boa opção, “os burros”, tolos já não são tema. Contagiante a tradução do Francês arcaico! 🙂

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