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Berenice

“A principal regra é agradar e sensibilizar. Todas as outras existem para alcançar esta primeira” (Jean Baptiste Racine. Prefácio a Bérénice. 1670).

“Que o dia recomece e que o dia acabe, sem que jamais Tito possa ver Berenice” (Racine, Bérénice, Ato IV, Cena 5). Pois, hoje, Berenice visitou Tito. Chamo-lhe Berenice em homenagem a Racine. É a mais extrovertida das antigas alunas, tão jovem quanto eu. Trouxe alegria, energia, abraços e doces, incluindo o bolo que, durante uma das edições da Escola da Primavera, confidenciei preferir. Fico-lhe a dever um momento, como diria Racine, de prazer e emoção. Fiquei tão comovido com o seu gesto, que me permito brincar, partilhando uma ideia que, provavelmente, não lhe vai ser de nenhuma utilidade. Conheço o seu entusiasmo pela sociologia, mas também pelo vestuário, pela moda, pelo design e pela sua terra. A arte, o sentimento e gosto. Como passatempo, para os momentos de lazer, proponho-lhe um tema de investigação: “a influência da indústria têxtil na elegância vimaranense”. Não tanto pela vertente do vestuário, da moda e do design, mas pelo labirinto desafiante da organização e da mundividência sociais. Talvez um dia, quem sabe, pudesse inspirar uma dissertação de doutoramento em sociologia. Talvez “dê pano para mangas”. Como a Berenice sabe, tenho o vício de brincar a sério. Várias teses, algumas das quais me coube a sorte de orientar, sugerem que o modelo de industrialização do vale do Ave, em particular a relação dos patrões com as empresas e a cidade, propiciou a persistência histórica de uma espécie de “sociedade cortesã”, com convívio seleto de famílias aristocratas, burguesas e mistas, no berço de Portugal. Persistência que deixou, porventura, algumas marcas. Tito está a provocar Berenice, a sua vocação e o seu bairrismo, e não devia! Devia ter juízo, limitar-se a deliciar-se com mais uma fatia de bolo, uma rabanada ou uma colher de aletria.

Seguem a canção Titus et Bérénice, de Bénabar, e um excerto da ópera Bérénice, de Michael Jarrel, dois espelhos da verdade a refletir a Berenice antes e depois da tentação. “Quem se supera uma vez, pode superar-se sempre” / “Qui se vainc une fois peut se vaincre toujours” (Pierre Corneille, Tite et Bérénice, Ato II, Cena 2, 1670).

Bénabar. Titus et Bérénice (Version acoustique). Com Isabelle Nanty. Inspiré de faits réels. 2014.
Bérénice (excerto), de Michael Jarrell, com Barbara Hannigan, Palais Garnier, 2018.

O espelho da morte

Considerado o “símbolo dos símbolos” (Robert Régor Mougeot, Le miroir, symbole des symboles. Éditions du Cosmogone, 2011), habituámo-nos a associar o espelho à reflexão, à verdade, à realidade, ao conhecimento de si, ao puro, à alma e ao divino..

“Que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e a consciência: Como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, lê-se num espelho chinês do museu de Hanói, sê claro e brilhante e reflete o que está no teu coração” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont S.A., 1982, p. 536).

O espelho brilha, também, como “emblema da pintura” (Soko Phay-Vakalis. Le miroir comme emblème de la peinture : ses figurations et transfigurations de Vermeer à Richter. Thèse de Doctorat en Arte et Archéologie, Université de Paris VIII, 1999):

“Por isso costumo dizer entre os meus amigos que aquele Narciso que, de acordo com os poetas, se transformou em flor, foi o inventor da pintura. Como a pintura é a flor de toda arte, a ela se aplica bem toda a história de Narciso. Que outra coisa se pode dizer ser a pintura senão o abraçar com arte a superfície da fonte?” (Leon Battista Alberti, De Pictura, 1435,  1989.p. 96-97).

Este recurso ao espelho como modo de representação fidedigna da realidade assoberbou a pintura do renascimento; será preciso aguardar o século XX para que, em obras como as de Edvard Munch e René Magritte, o espelho em vez de refletir distorce a realidade.

Todos estes atributos são luminosos, solares. Mas existe o outro lado da lua. Mais obscuro, que remete para o impuro, a tentação, a desgraça, o submundo, o diabo e a morte. Narciso não é apenas aquele que se descobre no espelho de água, é também aquele que, na sequência, morre por inanição.

O espelho é caraterizado pela duplicidade. Reúne dois mundos. Quem vê e o que é visto; de fora e de dentro, o aqui e o além.

“Na Idade Média, sustentava-se que os demónios se refugiavam nos espelhos. Quebrá-los liberta todos os maus espíritos dispostos a exercer os seus malefícios” (Daniel Lacotte, Éviter de briser un miroir. Historia, À l’origine des superstitions, special N°6 daté Juillet-août 2012: https://www.historia.fr/il-%C3%A9tait-une-superstition/%C3%A9viter-de-briser-un-miroir). “Existe um costume popular que consiste em cobrir todos os espelhos na divisão da casa onde o morto repousa antes da sua última viagem porque se pensa que o espelho tem a faculdade de reter a alma do defunto” (Thomas Grison, Le symbolisme du miroir, MdV éditeur, 2015). Neste e noutros casos, o espelho absorve.

O espelho pode, também, situar-se no limiar, na transição entre o aqui e o além, entre mundos distintos, senão opostos. Por exemplo, o mundo e o submundo, a vida e a morte, o real e a fantasia (como no romance de Lewis Carroll, Alice Através do Espelho, editado em 1872). Neste sentido, o espelho costuma assumir-se como símbolo de uma porta que, como o portal da ficção científica, permite a transição de um para outro mundo. Na peça de teatro Orfeu de Jean Cocteau, estreada em 1926, o anjo Heurtebise, antes de conduzir Orfeu ao submundo, confidencia:

“Confio-vos o segredo dos segredos. Os espelhos são as portas pelas quais a Morte vai e vem. (…) Olhe-se, aliás, num espelho e verá a Morte a trabalhar como as abelhas num cortiço de vidro” (Jean Cocteau,1926).

03. A donzela. Excerto da Dança da Morte copiada por Wermher von Zimmen. 1540

O espelho, lugar de passagem, não separa mas conjuga, une, abre o diálogo com o mesmo e com o outro.

“Tal como Heurtebise, que age no ponto de intersecção de dois espaços – o sagrado e o profano – e realiza a perfeita conjunção de ambos, o espelho constitui o ponto de intersecção entre o real e o suprarreal. O espelho seria então a materialização do ponto supremo de que fala Breton em seus Manifestes du Surréalisme:
“Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.” (Fachin, Lídia. Alguns aspectos da teatralidade em Orphée, de Jean Cocteau. Itinerários: Revista de Literatura, n. 1, 1990: http://hdl.handle.net/11449/107926).

04. Dança da morte de Basel. Mulher nobre. Por Matthæus Merian. Ca. 1649.

A interação entre mundos, mediada pelo espelho, entre o homem e a morte é dinâmica, imanente, dialógica, irredutível e insuperável.

“O espelho parece absorver, e o ser que nele se reflete, e o ser que olha a imagem. O germe ou o ramo parece absorver tanto a árvore da qual ele provém, quanto a árvore que provém dele” (Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, Arguments, 1968, p. 300).

A morte refletida no espelho de um ser humano não significa, forçosamente, a hora da partida, antes a oportunidade de se consciencializar da sua finitude e respetivas consequências. Uma advertência semelhante ao dito dos esqueletos músicos da Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (sobre as danças da morte ou macabras, ver O Louco e a Morte: https://tendimag.com/2013/09/12/o-louco-e-a-morte/):

Vós, que um destino comum
Faz viver em condições tão diversas,
Vós dançareis todos esta dança
Um dia, os bons como os malvados.
Os vossos corpos serão comidos pelos vermes.
Lamentavelmente! Olhem-nos:
Mortos, podres, pestilentos, esqueléticos;
Como nós somos, assim vós sereis”.
(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485).

A morte, o espelho e a vida, os mortos, a porta e os vivos, configuram um todo composto por entidades coexistentes, diferentes, dinâmicas e conflituais, mas interdependentes e interativas. Simbolizam um memento mori. Embora a morte, com a sua procissão de horrores, se anuncie como uma fatalidade, a salvação ou a condenação derivam dos benefícios e dos malefícios da provação terrena.

05. Livro de Horas. Circa1490., Bilioteca Mazarine, Paris.

Nas danças da morte de Wernhe von Zimmern e Matthaeus Merian (figuras 3 e 4), uma nobre bela vê-se a um espelho exibido por um esqueleto. Cada um engloba um duplo memento mori, o primeiro, o espelho da morte, contido no segundo, a dança macabra, dança que exprime a universalidade e a igualdade perante a morte: todos morremos sem distinções estatutárias. Cada “vivo” é precedido e seguido por esqueletos que o conduzem ao túmulo. Entre as figuras mais recorrentes, destacam-se um imperador, um rei, um papa, um monge e uma mulher bela, porventura nobre (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_macabra).

06. Lukas Furtenagel. O pintor Hans Burgkmair e a sua esposa Anna. 1529. Vienna Kunsthistorisches Museum.

Na Idade Média, havia quem encarasse a beleza feminina como uma bênção. “Para além de um corpo e de um rosto perfeitos, a mulher bela é a incarnação do esplendor divino” (Jean-Jacques Wunenburger, Le Miroir, le Secret et le Sacré: https://ostium.sk/language/sk/le-miroir-le-secret-et-le-sacre/). No Discours de la beauté des dames, publicado postumamente em 1578, Ange Firenzula (1493-1543), escreve: “a beleza é percebida como um reflexo pelo qual se anima e brilha um mundo ideal, o universo da perfeição divina”. Umberto Eco confirma: característica do amor cortês, “a “donna angelicata“ tornou-se na via da salvação (…) um meio de ascender a Deus, já não motivo de erro, de pecado, (…) mas caminho para uma espiritualidade mais elevada” (Histoire de la beauté, 2004). Esta versão positiva da beleza feminina expande-se na arte do Renascimento (para o caso da poesia portuguesa, consultar: Micaela Ramon, «Tratado da beleza feminina segundo Camões. Entre imitação e invenção»: http://hdl.handle.net/1822/61304).

Mas, na Idade Média, predomina outra perspetiva: a mulher, sobretudo bela, presta-se ao pecado. Presa fácil da vaidade e da luxúria, encobre um ninho de tentações, perigos e vícios. O espelho distingue-se, aliás, como um dos principais símbolos da vaidade. Compreende-se, assim, a presença da mulher bela e do espelho nas danças macabras, presença que se presta a várias leituras: ora espelho da morte, ora espelho da vaidade, ora ambos.

07. Detalhe do Políptico da Morte.1775. Museo Nacional del Virreinato,Tepotzotlán, México.

Nas figuras 5 a 7, as pinturas circunscrevem-se exclusivamente a espelhos da morte. Na mais antiga, um excerto de um livro de horas do século XVI, o espelho reflete um rosto esverdeado, no mínimo, de um moribundo. Das três figuras, é a única em que o espelho permanece nas “mãos” de um esqueleto, a “morte seca”. No retrato com o pintor Hans Furtenagel acompanhado pela mulher (1529), surgem no espelho duas cabeças em decomposição, uma espécie de transis (sobre os transis, ver Transi 1: As artes da morte: https://tendimag.com/2017/01/10/transi-1-as-artes-da-morte/). Na terceira figura, um excerto do Políptico da Morte, da coleção do Museo Nacional del Virreinato, aparece no espelho apenas uma caveira. Um dito alude à passagem: “Aprended vivos de mí, que há de ayer a Oy, ver como me ves fuí, y calavera, ya soy”. Estes dois espelhos da morte, mais recentes, dispensam a ajuda dos esqueletos.

08. La Muerta Viva. Anónimo. Coleção de Ramón Gómez de la Serna. Torreón de Velasquez, Madrid.

No quadro La Muerta Viva (figura 8), “uma dama vê-se ao espelho com metade do corpo como esqueleto, imaginativa representação da proximidade entre a vida e a morte” (Atmósferacine, En las afueras de la Cinelandia de Ramón Gómez de la Serna, conducidos por Jordi Costa: https://atmosferacine.com/2019/10/11/en-las-afueras-de-la-cinelandia-de-ramon-gomez-de-la-serna-conducidos-por-jordi-costa/). Assistimos a uma nova variante de multiplicação de motivos: o espelho da morte reflete a parte esquelética de uma morta viva, metade pele e carne, metade osso, um memento mori bastante comum (ver Vida de esqueleto I: A carne e o osso: https://tendimag.com/2017/09/26/vida-de-esqueleto-i-a-carne-e-o-osso/). Em suma, La Muerte Viva confronta-nos com uma unidade híbrida.

 No conjunto, estas quatro figuras ilustram a diversidade de formas passíveis de invocar o indesejável e incontornável destino do ser humano: o moribundo, o transi, a morte seca… Um misto de realidade e imaginação.

09. Mulher Nobre. Dança Macabra de Basel. Por Mattheus Merian. 1621. Em cima, dito da Morte: “Mulher nobre, pare de arrumar o seu cabelo. / Você deve dançar agora aqui comigo. / Eu não poupo o seu cabelo amarelo, / O que vê você no espelho transparente?”. Resposta da Mulher Nobre: “Oh, medo e angústia, o que aconteceu comigo? / Eu vi a morte no espelho. / Sua figura horrível apavorou-me, / Por isso o coração no meu corpo está frio”.

É tempo de fazer um intervalo. O excerto da Dança Macabra de Basel (figuras 9 a 11) oferece-se como um bom pretexto para cruzar a realidade mais ou menos imaginada com a ficção mais ou menos fundada. O desvio pode ser o melhor atalho.

10. Seculum Vanitas. Livro de horas. Itália. Ca 1480.

Por uma vez, cumpre à pessoa em trânsito, a “nobre bela”, segurar o espelho (figura 9). A posição do espelho, a postura e o olhar da nobre bela e do morto esboçam uma triangulação. Se na gravura a imagem refletida é, do ponto de vista da nobre bela, a do morto, não é de todo inconcebível que o olhar do morto também procure no espelho a imagem da nobre bela. Um morto a ver a vida ao espelho? Ao espelho da morte, corresponderá, no além, um espelho da vida? Certo é que, no imaginário dos vivos, a morte não desdenha ver-se ao espelho. Por exemplo, em pose (na figura 10, face a um espelho de vaidade?), enquanto descansa (na figura 11, a observar a vida?) ou enquanto reza (na figura 13, com os mortos pelos vivos?). O que vê a morte ao espelho? As imagens disponíveis insistem em manter o segredo.

11. Jan Mandijn. A tentação de Santo Antão. 1540–1550. Quadro e detalhe.

Nesta imprudência de cruzar a realidade imaginada com a ficção fundada, aflora a tentação de acrescentar a reciprocidade à interdependência, à interação e ao trânsito entre os mundos da vida e da morte. Esta aberração promete um argumento desafiante para um próximo artigo.

12. Heure de la Vierge en latin et en Français à usage de Paris . Anónimo. Finais do século XV.

Despeço-me com uma fábula. A vida, a morte e o espelho esboçam um triângulo, uma totalidade plural e problemática. Michel Maffesoli diria uma “harmonia conflitual” (Comunidade de destino, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 273-283, jan./jun. 2006, p. 273). Basta uma anomalia ou uma falha na triangulação para abalar essa harmonia. O espelho da morte representa uma ameaça, mas no futuro; já a falha num dos vértices provoca uma desgraça, já no presente. Por exemplo, quando o espelho não reflete a imagem, se quebra ou é ignorado.

Na Grécia Antiga, o espelho, reservado às mulheres, era considerado como o reflexo da alma. Nas práticas divinatórias, a quebra do espelho implicava a maldição para aquele que o consultava. Os romanos avançaram com a superstição, ainda atual, de que um espelho partido inicia sete anos de azar. No conto “o espelho da morte”, de Miguel de Unanumo, a jovem enferma Matilde morre precisamente no dia em que não quis olhar-se ao espelho:

“Passou a noite chorando e ansiando e na manhã seguinte não quis olhar-se ao espelho. E a Virgem de Fresneda, Mãe de compaixões, ouvindo os rogados de Matilde, aos três meses da festa levava-a para que brincasse com os anjos.” (Miguel de Unamuno, O Espelho da Morte, conto, 1913).

13. Edvard Munch. A menina doente. 1896. Com o espelho por detrás da almofada.

Ocorre o inverso com o espelho, agora da verdade. da “menina bexigosa” do poema de Sidónio Muralha: “A menina bexigosa viu-se ao espelho / Soltou-se do vestido e viu-se nua / Está agora vestida de vermelho, / Inerte, no passeio da rua”. Juntas, as duas narrativas engendram uma espécie de duplo vínculo: “preso por ter cão, preso por não ter”. Não há arte de escapar à morte!

Menina bexigosa
A menina bexigosa viu-se ao espelho
Soltou-se do vestido e viu-se nua
Está agora vestida de vermelho,
Inerte, no passeio da rua
Antes fora alegria e alvoroço
Mas num baile ninguém a foi buscar
Morreu o sonho no seu corpo moço
Passou a noite a chorar
Tanto chorou que lhe chamaram louca
Cada qual lhe levava o seu conselho
Mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
E a menina bexigosa viu-se ao espelho
Depois, fecharam a janela
Vieram os vizinhos: ‘Pobre mãe…’
Vieram os amigos: ‘Pobre dela…’
‘Era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem’
E dão-lhe beijos na testa
Beijos correctos pois ninguém, ninguém
Soube em vida matar a sua sede
‘A menina bexigosa portava-se tão bem’
O espelho continua na parede.
(Sidónio Muralha, Menina Bexigosa, 1973).

Manuel Freire – “Menina Bexigosa” (1973) poema de Sidónio Muralha.

Deixa-me chorar

Caricatura do ano 1724, representando Farinelli em trajes femininos.

A música Lascia ch’io pianga, de Händel, integra a banda sonora do filme Farinelli, famoso castrato do século XVIII. Nesta interpretação, a voz é uma combinação de um contratenor e de uma soprano.

Händel. Lascia ch’io pianga. Ópera Rinaldo (HWV 7), de 1711

Morrer de riso

‘The Dawnce of Makabre’ from Carthusian miscellany, Yorkshire or Lincolnshire ca. 1460-1500. BL, Add 37049, fol. 32r

Na Idade Média, a morte ri: nos triunfos da morte, nas danças macabras ou no assédio às donzelas. Morre-se de riso? Consta que existe uma hilaridade fatal: as vítimas morrem, literalmente, de excesso de riso. O filósofo grego Crisipo de Solis morreu a ver o seu cavalo comer figos; no século XV, o rei Martim I de Aragão morreu com um ataque de riso; mais recentemente, em 2003, Damnoen Saen-um, um vendedor de sorvetes tailandês, morreu de riso enquanto dormia (ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hilaridade_fatal).

No palco, só, Bourvil recorda uma anedota fatal que um amigo lhe contou. Quem ouvir a anedota morre. Oito minutos quase sem palavras, mas sempre a comunicar. É obra e talento.

André Bourvil. C’est l’histoire du jockey qui… / Une histoire à mourir de rire. 1962.

O mundo na mão (extended version)

Folk Meeting : Odetta, Joan Baez, Maria Carta, Amália Rodrigues (Musica sì e I lunedì del Sistina). Concerto de inícios dos anos setenta editado em 2013.

“Sopra, sopra, vento hibernal, não és tão desapiedado quanto a humana ingratidão” (William Shakespeare. Como vos agradar. 1623).
“ Bendita a hora que o esqueci por ser ingrato / E deitei fora as cinzas do seu retrato” (Amália Rodrigues: Só à noitinha).

Discriminação, exclusão, dominação, exploração são flagelos da humanidade. Preocupo-me, sobretudo, com a injustiça. Não poupa vivos nem mortos. “Personally, I can’t believe she’s not more well-known than she is” (https://www.youtube.com/watch?v=GOk2M6C9dck).

Estamos a falar de Odetta (1930-2008), compositora, cantora e activista social norte-americana. Talentosa, original e influente. No início dos anos setenta, cantou com Amália Rodrigues, Joan Baez e Maria Carta no Teatro Sistina, em Roma. He´s got the whole world in his hand (1957) foi uma das canções interpretadas. Acrescento duas: Hit or Miss (1970) e Another Man Done Gone (1956).

Ao original, o público preferiu o cover. Acontece! O Tendências do Imaginário sonha despertar a memória adormecida. Por um mundo maior.

Não resisto a recolocar dois anúncios com músicas de Odetta.

Odetta. He’s got the whole world in his hand. At the Gate of Horn. 1957. Ao vivo em 1993.
Odetta. Hit or Miss. Odetta Sings, 1970.
Odetta. Another Man gone Done. Odetta Sings Ballads and Blues. 1956.
Marca: Adidas. Título: Carry. Agência: TBWA\CHIAT\DAY, USA, San Francisco, Direção: Chuck McBride. EUA, 2004.
Marca: Southern Comfort. Título: Beach. Whatever’s Comfortable. Agência: Wieden + Kennedy, New York. Direção: Tim Godsall. EUA, Julho 2012.

Encontro de Sociologia no mosteiro de Tibães

O Encontro de Sociologia traz-me afastado da música e do blogue. Mas é uma iniciativa compensadora. Seguem o cartaz, o texto de divulgação, o programa e a imagem do íman que será oferecido durante o Encontro.

Cartaz Encontro Sociologia

O Encontro de Sociologia congrega todos os alunos dos cursos de Sociologia da Universidade do Minho (licenciatura, mestrados e doutoramento), bem como os docentes e os funcionários do Departamento de Sociologia. O Encontro decorre no dia 18 de Abril, durante a tarde, no Mosteiro de Tibães. Para a deslocação entre a Universidade e o Mosteiro, haverá dois autocarros que partem às 13 horas junto à pastelaria Montalegrense e regressam às 19 horas. O Encontro inclui visita guiada ao Mosteiro, um dos mais belos exemplares da arte barroca em Portugal, uma conferência e um espetáculo com música, teatro e vídeo protagonizado por estudantes de Sociologia.

Contamos com a presença de todos!
A Direção do Departamento de Sociologia

Programa

14h00 | Visita guiada ao Mosteiro

16h00 | Sessão de Abertura

Rui Vieira de Castro, Reitor da Universidade do Minho,
Helena Sousa, Presidente do Instituto de Ciências Sociais
Albertino Gonçalves, Diretor do Departamento de Sociologia
Maria de Lurdes Rufino, Coordenadora do Mosteiro de Tibães
Joana Mota Silva, Presidente do NECSUM

Conferência “Vigilância, segurança e crime: desafios para a Sociologia”

por Helena Machado, Departamento de Sociologia da Universidade do Minho.

17h00 | Espetáculo de Música, Teatro e Vídeo pelos alunos dos cursos do Departamento de Sociologia

Moderação: José Cunha Machado, Diretor adjunto do Departamento de Sociologia & Joana Mota Silva, Presidente do NECSUM.

19h00 | Encerramento.

Imagem do íman alusivo ao encontro

Imagem do íman alusivo ao Encontro de Sociologia.

Sincronia

Danish Ballet

O som e a imagem, feitos um para o outro, como Ulisses e Penélope, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta. Nas curta-metragens Creation e Swan Lake, do Royal Danish Theater, a imagem e o som entrelaçam-se. Não há primeiro nem segundo. Dão os passos e os saltos em conjunto. Graças ao talento do “Composer & Sound designer” Martin Dirkov. Uma última nota: é curiosa a assunção da cultura como sobressalto.

Anunciante: Royal Danish Theater. Título: Creation. Agência: Wichmann/Schmidt. Direcção: Casper Balslev. Som: Martin Dirkov. Dinamarca, Maio 2016.

Anunciante: Royal Danish Ballet. Título: Swan Lake. Produção: New Land. Direcção: Casper Balslev. Som: Martin Dirkov. Dinamarca, Fevereiro 2015.

A tentação surrealista: António Pedro

01. Catálogo da Exposição António Pedro 1909 1966.

01. Catálogo da Exposição António Pedro 1909-1966.

Para variar, já fez sol em Moledo do Minho. Nada como um cigarro! Em frente, do outro lado da rua, a casa de António Pedro. Nascido em 1909, “o gigante esquecido” (Vasco Rosa, Jornal Observador, 17 de Agosto de 2016) é uma figura incontornável da arte portuguesa do século XX. De muitos modos e feitios. Foi pintor, escultor, escritor, poeta, dramaturgo, encenador, jornalista, radialista, galerista… Passou a infância em Moledo do Minho, estudou na Galiza, em Coimbra e em Lisboa. Entre 1934 e 1935, viveu em Paris, tendo frequentado o Instituto de Arte e Tecnologia da Universidade da Sorbonne. Junto com 25 artistas dos movimentos surrealista e Dada, entre os quais Joan Miró, Hans Harp, Sonia Delauney, Marcel Duchamp, Wassily Kandisnky e Francis Picabia, assinou, em 1936, o Manifeste Dimensioniste (carregar para aceder ao pdf). Em 1941, expõe a sua obra no Brasil. Entre 1944 e 1945, foi cronista e crítico de arte na BBC, em Londres.

02. António Pedro, Refoulement, 1936.

02. António Pedro, Refoulement, 1936.

Em 1933, cria a Galeria UP, a primeira a acolher em Portugal uma exposição de Helena Vieira da Silva (1935). Em 1940, participa, com dezasseis pinturas, na realização da primeira exposição surrealista em Portugal, na Casa Repe em Lisboa. Em 1947, integra o Grupo Surrealista de Lisboa.

04. António Pedro. O anjo da guarda. 1939.

04. António Pedro. O anjo da guarda. 1939.

Homem de teatro, foi director do Teatro Apolo, em Lisboa. Foi fundador e director, entre 1953 e 1962, do Teatro Experimental do Porto. Entre vários textos dramáticos, escreveu a Comédie en un acte. Viveu os últimos anos em Moledo do Minho onde faleceu no dia 17 de Agosto de 1966. Para uma apresentação mais detalhada e circunstanciada, sugiro o artigo “António Pedro Pintor”, de José-Augusto França, publicado na revista Portuguese Cultural Studies 5, Spring 2013 , bem como o vídeo António Pedro Presente! I apresentado, também, por José-Augusto França e publicado pela Companhia de Dança de Lisboa (ver vídeo 1).

05. António Pedro. Ilha do Cão. 1940. Ver vídeo 2.

05. António Pedro. Ilha do Cão. 1940. Ver vídeo 2.

Pesquisar imagens da arte portuguesa manifesta-se, muitas vezes, frustrante. Poucas estão acessíveis na Internet e com fraca resolução. Às vezes, só com a ajuda de uma lupa. Não sei se é por causa dos direitos, se é por causa dos tortos. Aposto nos tortos, mais precisamente, na aristocracia dos direitos e na irresponsabilidade dos tortos. No que respeita à obra de António Pedro, fiz o que pude, nem sempre bem. Vale a dezena de vídeos publicados pela Companhia de Dança de Lisboa.

Está fresco em Moledo. Apago o cigarro. António Pedro fumava. As andorinhas continuam a voar em bando à volta da sua casa.

António Pedro: Galeria de Imagens

Vídeo 1. ANTÓNIO PEDRO – 1909 / 1966 – Presente! ( I ). Companhia de Dança de Lisboa.

Vídeo 2. António Pedro – Óleos sobre tela, 1936 / 1946. Companhia de Dança de Lisboa.

Vídeo 3. António Pedro – Óleos sobre Tela – 1944, 1939 e 1936. Companhia de Dança de Lisboa.

Vídeo 4. “Tríptico solto de Moledo” 1943 – António Pedro. Companhia de Dança de Lisboa.

Vídeo 5. ” Paz Inquieta “- 1940 – António Pedro. Companhia de Dança de Lisboa.

Ventos

A edição da Deutsche Grammophon de 1970 do Concerto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo, interpretado por Narciso Yepes, incluía no lado B a Fantasía para un Gentilhombre. Habituei-me a virar o disco. Neste vídeo, observa-se Narciso Yepes a tocar uma guitarra de dez cordas.

Paula Rego. Inês de Castro. 2014.

Paula Rego. Inês de Castro. 2014.

De Espanha, também vêm bons ventos. Tenho andado às voltas com a história de Inês de Castro. Não sei se é uma tragédia, mas pontificam os excessos da fraqueza do poder. De Espanha, veio Inês de Castro, na comitiva de Constança, que casou com D. Pedro. Foi a incerteza quanto às reacções de Espanha que levou D. Afonso IV a decidir a morte de Inês de Castro. A meteorologia é complicada. Nem sempre se sabe de onde sopram que ventos.

Joaquín Rodrigo. Fantasía para un Gentilhombre. Interpretação de Narciso Yepes.