O espelho da morte

Considerado o “símbolo dos símbolos” (Robert Régor Mougeot, Le miroir, symbole des symboles. Éditions du Cosmogone, 2011), habituámo-nos a associar o espelho à reflexão, à verdade, à realidade, ao conhecimento de si, ao puro, à alma e ao divino..

“Que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e a consciência: Como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, lê-se num espelho chinês do museu de Hanói, sê claro e brilhante e reflete o que está no teu coração” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont S.A., 1982, p. 536).

O espelho brilha, também, como “emblema da pintura” (Soko Phay-Vakalis. Le miroir comme emblème de la peinture : ses figurations et transfigurations de Vermeer à Richter. Thèse de Doctorat en Arte et Archéologie, Université de Paris VIII, 1999):

“Por isso costumo dizer entre os meus amigos que aquele Narciso que, de acordo com os poetas, se transformou em flor, foi o inventor da pintura. Como a pintura é a flor de toda arte, a ela se aplica bem toda a história de Narciso. Que outra coisa se pode dizer ser a pintura senão o abraçar com arte a superfície da fonte?” (Leon Battista Alberti, De Pictura, 1435,  1989.p. 96-97).

Este recurso ao espelho como modo de representação fidedigna da realidade assoberbou a pintura do renascimento; será preciso aguardar o século XX para que, em obras como as de Edvard Munch e René Magritte, o espelho em vez de refletir distorce a realidade.

Todos estes atributos são luminosos, solares. Mas existe o outro lado da lua. Mais obscuro, que remete para o impuro, a tentação, a desgraça, o submundo, o diabo e a morte. Narciso não é apenas aquele que se descobre no espelho de água, é também aquele que, na sequência, morre por inanição.

O espelho é caraterizado pela duplicidade. Reúne dois mundos. Quem vê e o que é visto; de fora e de dentro, o aqui e o além.

“Na Idade Média, sustentava-se que os demónios se refugiavam nos espelhos. Quebrá-los liberta todos os maus espíritos dispostos a exercer os seus malefícios” (Daniel Lacotte, Éviter de briser un miroir. Historia, À l’origine des superstitions, special N°6 daté Juillet-août 2012: https://www.historia.fr/il-%C3%A9tait-une-superstition/%C3%A9viter-de-briser-un-miroir). “Existe um costume popular que consiste em cobrir todos os espelhos na divisão da casa onde o morto repousa antes da sua última viagem porque se pensa que o espelho tem a faculdade de reter a alma do defunto” (Thomas Grison, Le symbolisme du miroir, MdV éditeur, 2015). Neste e noutros casos, o espelho absorve.

O espelho pode, também, situar-se no limiar, na transição entre o aqui e o além, entre mundos distintos, senão opostos. Por exemplo, o mundo e o submundo, a vida e a morte, o real e a fantasia (como no romance de Lewis Carroll, Alice Através do Espelho, editado em 1872). Neste sentido, o espelho costuma assumir-se como símbolo de uma porta que, como o portal da ficção científica, permite a transição de um para outro mundo. Na peça de teatro Orfeu de Jean Cocteau, estreada em 1926, o anjo Heurtebise, antes de conduzir Orfeu ao submundo, confidencia:

“Confio-vos o segredo dos segredos. Os espelhos são as portas pelas quais a Morte vai e vem. (…) Olhe-se, aliás, num espelho e verá a Morte a trabalhar como as abelhas num cortiço de vidro” (Jean Cocteau,1926).

03. A donzela. Excerto da Dança da Morte copiada por Wermher von Zimmen. 1540

O espelho, lugar de passagem, não separa mas conjuga, une, abre o diálogo com o mesmo e com o outro.

“Tal como Heurtebise, que age no ponto de intersecção de dois espaços – o sagrado e o profano – e realiza a perfeita conjunção de ambos, o espelho constitui o ponto de intersecção entre o real e o suprarreal. O espelho seria então a materialização do ponto supremo de que fala Breton em seus Manifestes du Surréalisme:
“Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.” (Fachin, Lídia. Alguns aspectos da teatralidade em Orphée, de Jean Cocteau. Itinerários: Revista de Literatura, n. 1, 1990: http://hdl.handle.net/11449/107926).

04. Dança da morte de Basel. Mulher nobre. Por Matthæus Merian. Ca. 1649.

A interação entre mundos, mediada pelo espelho, entre o homem e a morte é dinâmica, imanente, dialógica, irredutível e insuperável.

“O espelho parece absorver, e o ser que nele se reflete, e o ser que olha a imagem. O germe ou o ramo parece absorver tanto a árvore da qual ele provém, quanto a árvore que provém dele” (Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, Arguments, 1968, p. 300).

A morte refletida no espelho de um ser humano não significa, forçosamente, a hora da partida, antes a oportunidade de se consciencializar da sua finitude e respetivas consequências. Uma advertência semelhante ao dito dos esqueletos músicos da Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (sobre as danças da morte ou macabras, ver O Louco e a Morte: https://tendimag.com/2013/09/12/o-louco-e-a-morte/):

Vós, que um destino comum
Faz viver em condições tão diversas,
Vós dançareis todos esta dança
Um dia, os bons como os malvados.
Os vossos corpos serão comidos pelos vermes.
Lamentavelmente! Olhem-nos:
Mortos, podres, pestilentos, esqueléticos;
Como nós somos, assim vós sereis”.
(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485).

A morte, o espelho e a vida, os mortos, a porta e os vivos, configuram um todo composto por entidades coexistentes, diferentes, dinâmicas e conflituais, mas interdependentes e interativas. Simbolizam um memento mori. Embora a morte, com a sua procissão de horrores, se anuncie como uma fatalidade, a salvação ou a condenação derivam dos benefícios e dos malefícios da provação terrena.

05. Livro de Horas. Circa1490., Bilioteca Mazarine, Paris.

Nas danças da morte de Wernhe von Zimmern e Matthaeus Merian (figuras 3 e 4), uma nobre bela vê-se a um espelho exibido por um esqueleto. Cada um engloba um duplo memento mori, o primeiro, o espelho da morte, contido no segundo, a dança macabra, dança que exprime a universalidade e a igualdade perante a morte: todos morremos sem distinções estatutárias. Cada “vivo” é precedido e seguido por esqueletos que o conduzem ao túmulo. Entre as figuras mais recorrentes, destacam-se um imperador, um rei, um papa, um monge e uma mulher bela, porventura nobre (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_macabra).

06. Lukas Furtenagel. O pintor Hans Burgkmair e a sua esposa Anna. 1529. Vienna Kunsthistorisches Museum.

Na Idade Média, havia quem encarasse a beleza feminina como uma bênção. “Para além de um corpo e de um rosto perfeitos, a mulher bela é a incarnação do esplendor divino” (Jean-Jacques Wunenburger, Le Miroir, le Secret et le Sacré: https://ostium.sk/language/sk/le-miroir-le-secret-et-le-sacre/). No Discours de la beauté des dames, publicado postumamente em 1578, Ange Firenzula (1493-1543), escreve: “a beleza é percebida como um reflexo pelo qual se anima e brilha um mundo ideal, o universo da perfeição divina”. Umberto Eco confirma: característica do amor cortês, “a “donna angelicata“ tornou-se na via da salvação (…) um meio de ascender a Deus, já não motivo de erro, de pecado, (…) mas caminho para uma espiritualidade mais elevada” (Histoire de la beauté, 2004). Esta versão positiva da beleza feminina expande-se na arte do Renascimento (para o caso da poesia portuguesa, consultar: Micaela Ramon, «Tratado da beleza feminina segundo Camões. Entre imitação e invenção»: http://hdl.handle.net/1822/61304).

Mas, na Idade Média, predomina outra perspetiva: a mulher, sobretudo bela, presta-se ao pecado. Presa fácil da vaidade e da luxúria, encobre um ninho de tentações, perigos e vícios. O espelho distingue-se, aliás, como um dos principais símbolos da vaidade. Compreende-se, assim, a presença da mulher bela e do espelho nas danças macabras, presença que se presta a várias leituras: ora espelho da morte, ora espelho da vaidade, ora ambos.

07. Detalhe do Políptico da Morte.1775. Museo Nacional del Virreinato,Tepotzotlán, México.

Nas figuras 5 a 7, as pinturas circunscrevem-se exclusivamente a espelhos da morte. Na mais antiga, um excerto de um livro de horas do século XVI, o espelho reflete um rosto esverdeado, no mínimo, de um moribundo. Das três figuras, é a única em que o espelho permanece nas “mãos” de um esqueleto, a “morte seca”. No retrato com o pintor Hans Furtenagel acompanhado pela mulher (1529), surgem no espelho duas cabeças em decomposição, uma espécie de transis (sobre os transis, ver Transi 1: As artes da morte: https://tendimag.com/2017/01/10/transi-1-as-artes-da-morte/). Na terceira figura, um excerto do Políptico da Morte, da coleção do Museo Nacional del Virreinato, aparece no espelho apenas uma caveira. Um dito alude à passagem: “Aprended vivos de mí, que há de ayer a Oy, ver como me ves fuí, y calavera, ya soy”. Estes dois espelhos da morte, mais recentes, dispensam a ajuda dos esqueletos.

08. La Muerta Viva. Anónimo. Coleção de Ramón Gómez de la Serna. Torreón de Velasquez, Madrid.

No quadro La Muerta Viva (figura 8), “uma dama vê-se ao espelho com metade do corpo como esqueleto, imaginativa representação da proximidade entre a vida e a morte” (Atmósferacine, En las afueras de la Cinelandia de Ramón Gómez de la Serna, conducidos por Jordi Costa: https://atmosferacine.com/2019/10/11/en-las-afueras-de-la-cinelandia-de-ramon-gomez-de-la-serna-conducidos-por-jordi-costa/). Assistimos a uma nova variante de multiplicação de motivos: o espelho da morte reflete a parte esquelética de uma morta viva, metade pele e carne, metade osso, um memento mori bastante comum (ver Vida de esqueleto I: A carne e o osso: https://tendimag.com/2017/09/26/vida-de-esqueleto-i-a-carne-e-o-osso/). Em suma, La Muerte Viva confronta-nos com uma unidade híbrida.

 No conjunto, estas quatro figuras ilustram a diversidade de formas passíveis de invocar o indesejável e incontornável destino do ser humano: o moribundo, o transi, a morte seca… Um misto de realidade e imaginação.

09. Mulher Nobre. Dança Macabra de Basel. Por Mattheus Merian. 1621. Em cima, dito da Morte: “Mulher nobre, pare de arrumar o seu cabelo. / Você deve dançar agora aqui comigo. / Eu não poupo o seu cabelo amarelo, / O que vê você no espelho transparente?”. Resposta da Mulher Nobre: “Oh, medo e angústia, o que aconteceu comigo? / Eu vi a morte no espelho. / Sua figura horrível apavorou-me, / Por isso o coração no meu corpo está frio”.

É tempo de fazer um intervalo. O excerto da Dança Macabra de Basel (figuras 9 a 11) oferece-se como um bom pretexto para cruzar a realidade mais ou menos imaginada com a ficção mais ou menos fundada. O desvio pode ser o melhor atalho.

10. Seculum Vanitas. Livro de horas. Itália. Ca 1480.

Por uma vez, cumpre à pessoa em trânsito, a “nobre bela”, segurar o espelho (figura 9). A posição do espelho, a postura e o olhar da nobre bela e do morto esboçam uma triangulação. Se na gravura a imagem refletida é, do ponto de vista da nobre bela, a do morto, não é de todo inconcebível que o olhar do morto também procure no espelho a imagem da nobre bela. Um morto a ver a vida ao espelho? Ao espelho da morte, corresponderá, no além, um espelho da vida? Certo é que, no imaginário dos vivos, a morte não desdenha ver-se ao espelho. Por exemplo, em pose (na figura 10, face a um espelho de vaidade?), enquanto descansa (na figura 11, a observar a vida?) ou enquanto reza (na figura 13, com os mortos pelos vivos?). O que vê a morte ao espelho? As imagens disponíveis insistem em manter o segredo.

11. Jan Mandijn. A tentação de Santo Antão. 1540–1550. Quadro e detalhe.

Nesta imprudência de cruzar a realidade imaginada com a ficção fundada, aflora a tentação de acrescentar a reciprocidade à interdependência, à interação e ao trânsito entre os mundos da vida e da morte. Esta aberração promete um argumento desafiante para um próximo artigo.

12. Heure de la Vierge en latin et en Français à usage de Paris . Anónimo. Finais do século XV.

Despeço-me com uma fábula. A vida, a morte e o espelho esboçam um triângulo, uma totalidade plural e problemática. Michel Maffesoli diria uma “harmonia conflitual” (Comunidade de destino, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 273-283, jan./jun. 2006, p. 273). Basta uma anomalia ou uma falha na triangulação para abalar essa harmonia. O espelho da morte representa uma ameaça, mas no futuro; já a falha num dos vértices provoca uma desgraça, já no presente. Por exemplo, quando o espelho não reflete a imagem, se quebra ou é ignorado.

Na Grécia Antiga, o espelho, reservado às mulheres, era considerado como o reflexo da alma. Nas práticas divinatórias, a quebra do espelho implicava a maldição para aquele que o consultava. Os romanos avançaram com a superstição, ainda atual, de que um espelho partido inicia sete anos de azar. No conto “o espelho da morte”, de Miguel de Unanumo, a jovem enferma Matilde morre precisamente no dia em que não quis olhar-se ao espelho:

“Passou a noite chorando e ansiando e na manhã seguinte não quis olhar-se ao espelho. E a Virgem de Fresneda, Mãe de compaixões, ouvindo os rogados de Matilde, aos três meses da festa levava-a para que brincasse com os anjos.” (Miguel de Unamuno, O Espelho da Morte, conto, 1913).

13. Edvard Munch. A menina doente. 1896. Com o espelho por detrás da almofada.

Ocorre o inverso com o espelho, agora da verdade. da “menina bexigosa” do poema de Sidónio Muralha: “A menina bexigosa viu-se ao espelho / Soltou-se do vestido e viu-se nua / Está agora vestida de vermelho, / Inerte, no passeio da rua”. Juntas, as duas narrativas engendram uma espécie de duplo vínculo: “preso por ter cão, preso por não ter”. Não há arte de escapar à morte!

Menina bexigosa
A menina bexigosa viu-se ao espelho
Soltou-se do vestido e viu-se nua
Está agora vestida de vermelho,
Inerte, no passeio da rua
Antes fora alegria e alvoroço
Mas num baile ninguém a foi buscar
Morreu o sonho no seu corpo moço
Passou a noite a chorar
Tanto chorou que lhe chamaram louca
Cada qual lhe levava o seu conselho
Mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
E a menina bexigosa viu-se ao espelho
Depois, fecharam a janela
Vieram os vizinhos: ‘Pobre mãe…’
Vieram os amigos: ‘Pobre dela…’
‘Era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem’
E dão-lhe beijos na testa
Beijos correctos pois ninguém, ninguém
Soube em vida matar a sua sede
‘A menina bexigosa portava-se tão bem’
O espelho continua na parede.
(Sidónio Muralha, Menina Bexigosa, 1973).

Manuel Freire – “Menina Bexigosa” (1973) poema de Sidónio Muralha.

Tags: , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Leave a Reply

Discover more from Tendências do imaginário

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading