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Horae ad usum Parisiensem. Antecipação medieval do surrealismo

Grandes Heures de Jean de Berry Fol. 12v

Há muito que andava à pesca do livro Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry], concluído em 1409. Acabo de o encontrar na Biblioteca Nacional de França. Reservados às elites, luxuosamente ilustrados com gravuras fabulosas, os livros de horas multiplicam-se durante a Baixa Idade Média. Correspondem a uma viragem da relação dos cristãos com o divino: a oração, retomada várias vezes, a horas certas, ao dia, é assumida em ambiente privado com recurso à mediação de imagens. Sobreviveram milhares de livros de horas. Em Portugal, o mais célebre é o Livro de Horas de D. Manuel (entre c. 1517 e c. 1538), publicado pela Imprensa Nacional e Casa da Moeda (1983).

Com capa original de veludo violeta, com dois fechos de ouro, rubi, safira e seis pérolas, o manuscrito das Grandes Heures de Jean de Berry (300X400 mm) é composto por 126 folios (252 páginas) com calendário (f. 1-6), horas de Nossa Senhora (f. 8-42), sete salmos da penitência e litania dos santos (f. 45-52), pequenas horas da cruz (f. 53-55) e do Espírito Santo (f. 56-58), grandes horas da Paixão (f. 61-85) e do Espírito Santo (f. 86-101) e ofícios dos mortos (f. 106-123). O livro está disponível, para consulta e descarga, no seguinte endereço https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Segue uma montagem de uma das primeiras Horas de Nossa Senhora, acompanhada por uma galeria com iluminuras provenientes das margens, uma autêntica “antecipação” medieval do surrealismo do século XX (ver outros casos de “antecipação” histórica do surrealismo nos artigos: https://tendimag.com/2020/03/24/aula-imaterial-4-maneirismo-e-surrealismo-sonhar-o-pesadelo/; https://tendimag.com/2020/04/04/aula-imaterial-5-maneirismo-e-surrealismo-2-humanoides/; https://tendimag.com/2012/05/05/braccelli-a-maneira-surrealista/).

Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry]. Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Galeria: Gravuras nas margens das Grandes Heures de Jean de Berry (carregar para aumentar). Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510.

Alterações climáticas e crise na Idade Média

Da Biblia Pauperum, iluminada em Erfurt por altura da Grande Fome de 1315-1317. A Morte surge como um leão cuja longa calda termina em bola de fogo – o Inferno. A boca aberta, destacada a vermelho, representa a Fome.

“A Grande fome de 1315-1317 na Europa (também datada entre 1315-1322) foi a primeira de uma série de crises sociais em larga escala que atingiram a Europa no início do século XIV, causando milhões de mortes por um grande número de anos, marcando assim o fim de um período anterior de prosperidade no continente durante o século XIII. Iniciando com um tempo ruim na primavera de 1315, a alteração climatológica acabou por provocar quebras universais das colheitas entre a primavera de 1315, que se acentuaram no verão de 1316 até ao verão de 1317. A Europa não se recuperou totalmente até 1322. Foi um período marcado por níveis extremos de crimes, doenças, mortes em massa e infanticídio. Houve consequências para a Igreja Católica, os Estados nacionais, a demografia do continente a sociedade europeia como um todo. A grande fome de 1315 contribuiu para potencializar as futuras calamidades do século XIV. (…) Para a maioria das pessoas não havia o suficiente para comer e a vida era relativamente curta. Atendendo aos registos respeitantes à Família Real Britânica, a melhor e mais abonada da sociedade, a expectativa de vida média em 1276 era de 35,28 anos. Entre 1301 e 1325, durante a Grande Fome, reduziu-se para 29,84 anos. Durante a peste negra, caiu para 17,33 anos (…) Na primavera de 1315, chuvas caíram chuvas acima do normal na maior parte da Europa. Na primavera e no verão, continuou chovendo e a temperatura manteve-se fria. Nestas condições, os grãos não germinavam. (…) As taxas de produção de trigo (o número de sementes que uma pessoa poderia consumir por semente plantada) estavam em queda desde 1280 (…) Numa situação de bom tempo, a taxa era de 7:1, enquanto nos anos ruins descia até 2:1, isto é, para cada semente plantada, duas sementes eram colhidas, uma para o ano que vem, e uma para alimentação. Por comparação, a agricultura moderna possui taxas de 200:1 ou mais (..,) Os alimentos para os animais não podiam ser curados, deixando de existir ração para o gado. Os preços dos alimentos começaram a subir. Os preços na Inglaterra dobraram entre a primavera e o meio do verão. O sal, a única maneira de curar e preservar a carne, era difícil de obter, porque a água não evaporava com o tempo húmido: subiu de 30 para 40 xelins. Na província da Lorena, o trigo subiu 340% e os camponeses não tinham com que pagar o pão. As reservas de grãos para emergências de longo prazo estavam confinadas aos nobres e lordes. (,,,) Na primavera de 1316, continuava chovendo sobre uma população europeia desprovida de energias e reservas para se sustentar. Todos os segmentos da sociedade, dos nobres aos camponeses, foram afetados, especialmente os camponeses, que representavam 95% da população, e não possuíam suporte social. Para prover algum alívio, o futuro foi sacrificado, matando animais de reprodução, consumindo sementes de plantação, abandonando as crianças (…)  e negando alimentos aos idosos para dar hipóteses de sobrevivência às gerações jovens. As crónicas da época descrevem muitos incidentes de canibalismo. (…) O pico da fome foi atingido em 1317 quando o tempo húmido terminou. Finalmente, no verão, o tempo regressou ao padrão normal. As pessoas estavam tão enfraquecidas por doenças como pneumonia, bronquite e tuberculose, e muitas das reservas de sementes haviam sido consumidas, que apenas em 1325 os níveis de alimentos voltaram para condições relativamente normais anteriores à fome. (…) É estimado que entre 10%-25% da população de muitas cidades e vilas pereceram. Enquanto a Peste Negra (1338-1375) mataria mais em números reais, para muitos, a Grande Fome foi pior como calamidade social: a peste aniquilava uma área em alguns meses, a Grande Fome castigou durante anos, arrastando o sofrimento das pessoas que morriam lentamente de fome, enfrentavam canibalismo, infanticídio e crime descontrolado.” (A partir de Wikipedia, Grande Fome de 1315–1317: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Fome_de_1315%E2%80%931317. Acedido em 19/07/2022).

When God saw that the world was so over proud,
He sent a dearth on earth, and made it full hard.
A bushel of wheat was at four shillings or more,
Of which men might have had a quarter before….
And then they turned pale who had laughed so loud,
And they became all docile who before were so proud.
A man’s heart might bleed for to hear the cry
Of poor men who called out, “Alas! For hunger I die …!” (Poema de Eduardo II, c. 1321).

Imagem: Grandes Heures de Jean de Bérry. Séc. XIV-XV.

Feliz Natal!

Maestro Venceslao. Gennaio nel Ciclo dei mesi di Torre Aquila (detalhe). Al Castello del Buonconsiglio. Trento. Ca. 1400.

Com este cântico de Natal renascentista, desejo, para esta quadra natalícia, muita felicidade tranquila, que, embora devagar, cava mais fundo.

Jean Mouton (1459-1522). “Nesciens mater”. Pelo coro El León de Oro (LDO). 18 de Março de 2012, na Catedral de Oviedo, sob a direção de Peter Phillips.

O espelho da morte

Considerado o “símbolo dos símbolos” (Robert Régor Mougeot, Le miroir, symbole des symboles. Éditions du Cosmogone, 2011), habituámo-nos a associar o espelho à reflexão, à verdade, à realidade, ao conhecimento de si, ao puro, à alma e ao divino..

“Que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e a consciência: Como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, lê-se num espelho chinês do museu de Hanói, sê claro e brilhante e reflete o que está no teu coração” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont S.A., 1982, p. 536).

O espelho brilha, também, como “emblema da pintura” (Soko Phay-Vakalis. Le miroir comme emblème de la peinture : ses figurations et transfigurations de Vermeer à Richter. Thèse de Doctorat en Arte et Archéologie, Université de Paris VIII, 1999):

“Por isso costumo dizer entre os meus amigos que aquele Narciso que, de acordo com os poetas, se transformou em flor, foi o inventor da pintura. Como a pintura é a flor de toda arte, a ela se aplica bem toda a história de Narciso. Que outra coisa se pode dizer ser a pintura senão o abraçar com arte a superfície da fonte?” (Leon Battista Alberti, De Pictura, 1435,  1989.p. 96-97).

Este recurso ao espelho como modo de representação fidedigna da realidade assoberbou a pintura do renascimento; será preciso aguardar o século XX para que, em obras como as de Edvard Munch e René Magritte, o espelho em vez de refletir distorce a realidade.

Todos estes atributos são luminosos, solares. Mas existe o outro lado da lua. Mais obscuro, que remete para o impuro, a tentação, a desgraça, o submundo, o diabo e a morte. Narciso não é apenas aquele que se descobre no espelho de água, é também aquele que, na sequência, morre por inanição.

O espelho é caraterizado pela duplicidade. Reúne dois mundos. Quem vê e o que é visto; de fora e de dentro, o aqui e o além.

“Na Idade Média, sustentava-se que os demónios se refugiavam nos espelhos. Quebrá-los liberta todos os maus espíritos dispostos a exercer os seus malefícios” (Daniel Lacotte, Éviter de briser un miroir. Historia, À l’origine des superstitions, special N°6 daté Juillet-août 2012: https://www.historia.fr/il-%C3%A9tait-une-superstition/%C3%A9viter-de-briser-un-miroir). “Existe um costume popular que consiste em cobrir todos os espelhos na divisão da casa onde o morto repousa antes da sua última viagem porque se pensa que o espelho tem a faculdade de reter a alma do defunto” (Thomas Grison, Le symbolisme du miroir, MdV éditeur, 2015). Neste e noutros casos, o espelho absorve.

O espelho pode, também, situar-se no limiar, na transição entre o aqui e o além, entre mundos distintos, senão opostos. Por exemplo, o mundo e o submundo, a vida e a morte, o real e a fantasia (como no romance de Lewis Carroll, Alice Através do Espelho, editado em 1872). Neste sentido, o espelho costuma assumir-se como símbolo de uma porta que, como o portal da ficção científica, permite a transição de um para outro mundo. Na peça de teatro Orfeu de Jean Cocteau, estreada em 1926, o anjo Heurtebise, antes de conduzir Orfeu ao submundo, confidencia:

“Confio-vos o segredo dos segredos. Os espelhos são as portas pelas quais a Morte vai e vem. (…) Olhe-se, aliás, num espelho e verá a Morte a trabalhar como as abelhas num cortiço de vidro” (Jean Cocteau,1926).

03. A donzela. Excerto da Dança da Morte copiada por Wermher von Zimmen. 1540

O espelho, lugar de passagem, não separa mas conjuga, une, abre o diálogo com o mesmo e com o outro.

“Tal como Heurtebise, que age no ponto de intersecção de dois espaços – o sagrado e o profano – e realiza a perfeita conjunção de ambos, o espelho constitui o ponto de intersecção entre o real e o suprarreal. O espelho seria então a materialização do ponto supremo de que fala Breton em seus Manifestes du Surréalisme:
“Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.” (Fachin, Lídia. Alguns aspectos da teatralidade em Orphée, de Jean Cocteau. Itinerários: Revista de Literatura, n. 1, 1990: http://hdl.handle.net/11449/107926).

04. Dança da morte de Basel. Mulher nobre. Por Matthæus Merian. Ca. 1649.

A interação entre mundos, mediada pelo espelho, entre o homem e a morte é dinâmica, imanente, dialógica, irredutível e insuperável.

“O espelho parece absorver, e o ser que nele se reflete, e o ser que olha a imagem. O germe ou o ramo parece absorver tanto a árvore da qual ele provém, quanto a árvore que provém dele” (Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, Arguments, 1968, p. 300).

A morte refletida no espelho de um ser humano não significa, forçosamente, a hora da partida, antes a oportunidade de se consciencializar da sua finitude e respetivas consequências. Uma advertência semelhante ao dito dos esqueletos músicos da Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (sobre as danças da morte ou macabras, ver O Louco e a Morte: https://tendimag.com/2013/09/12/o-louco-e-a-morte/):

Vós, que um destino comum
Faz viver em condições tão diversas,
Vós dançareis todos esta dança
Um dia, os bons como os malvados.
Os vossos corpos serão comidos pelos vermes.
Lamentavelmente! Olhem-nos:
Mortos, podres, pestilentos, esqueléticos;
Como nós somos, assim vós sereis”.
(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485).

A morte, o espelho e a vida, os mortos, a porta e os vivos, configuram um todo composto por entidades coexistentes, diferentes, dinâmicas e conflituais, mas interdependentes e interativas. Simbolizam um memento mori. Embora a morte, com a sua procissão de horrores, se anuncie como uma fatalidade, a salvação ou a condenação derivam dos benefícios e dos malefícios da provação terrena.

05. Livro de Horas. Circa1490., Bilioteca Mazarine, Paris.

Nas danças da morte de Wernhe von Zimmern e Matthaeus Merian (figuras 3 e 4), uma nobre bela vê-se a um espelho exibido por um esqueleto. Cada um engloba um duplo memento mori, o primeiro, o espelho da morte, contido no segundo, a dança macabra, dança que exprime a universalidade e a igualdade perante a morte: todos morremos sem distinções estatutárias. Cada “vivo” é precedido e seguido por esqueletos que o conduzem ao túmulo. Entre as figuras mais recorrentes, destacam-se um imperador, um rei, um papa, um monge e uma mulher bela, porventura nobre (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_macabra).

06. Lukas Furtenagel. O pintor Hans Burgkmair e a sua esposa Anna. 1529. Vienna Kunsthistorisches Museum.

Na Idade Média, havia quem encarasse a beleza feminina como uma bênção. “Para além de um corpo e de um rosto perfeitos, a mulher bela é a incarnação do esplendor divino” (Jean-Jacques Wunenburger, Le Miroir, le Secret et le Sacré: https://ostium.sk/language/sk/le-miroir-le-secret-et-le-sacre/). No Discours de la beauté des dames, publicado postumamente em 1578, Ange Firenzula (1493-1543), escreve: “a beleza é percebida como um reflexo pelo qual se anima e brilha um mundo ideal, o universo da perfeição divina”. Umberto Eco confirma: característica do amor cortês, “a “donna angelicata“ tornou-se na via da salvação (…) um meio de ascender a Deus, já não motivo de erro, de pecado, (…) mas caminho para uma espiritualidade mais elevada” (Histoire de la beauté, 2004). Esta versão positiva da beleza feminina expande-se na arte do Renascimento (para o caso da poesia portuguesa, consultar: Micaela Ramon, «Tratado da beleza feminina segundo Camões. Entre imitação e invenção»: http://hdl.handle.net/1822/61304).

Mas, na Idade Média, predomina outra perspetiva: a mulher, sobretudo bela, presta-se ao pecado. Presa fácil da vaidade e da luxúria, encobre um ninho de tentações, perigos e vícios. O espelho distingue-se, aliás, como um dos principais símbolos da vaidade. Compreende-se, assim, a presença da mulher bela e do espelho nas danças macabras, presença que se presta a várias leituras: ora espelho da morte, ora espelho da vaidade, ora ambos.

07. Detalhe do Políptico da Morte.1775. Museo Nacional del Virreinato,Tepotzotlán, México.

Nas figuras 5 a 7, as pinturas circunscrevem-se exclusivamente a espelhos da morte. Na mais antiga, um excerto de um livro de horas do século XVI, o espelho reflete um rosto esverdeado, no mínimo, de um moribundo. Das três figuras, é a única em que o espelho permanece nas “mãos” de um esqueleto, a “morte seca”. No retrato com o pintor Hans Furtenagel acompanhado pela mulher (1529), surgem no espelho duas cabeças em decomposição, uma espécie de transis (sobre os transis, ver Transi 1: As artes da morte: https://tendimag.com/2017/01/10/transi-1-as-artes-da-morte/). Na terceira figura, um excerto do Políptico da Morte, da coleção do Museo Nacional del Virreinato, aparece no espelho apenas uma caveira. Um dito alude à passagem: “Aprended vivos de mí, que há de ayer a Oy, ver como me ves fuí, y calavera, ya soy”. Estes dois espelhos da morte, mais recentes, dispensam a ajuda dos esqueletos.

08. La Muerta Viva. Anónimo. Coleção de Ramón Gómez de la Serna. Torreón de Velasquez, Madrid.

No quadro La Muerta Viva (figura 8), “uma dama vê-se ao espelho com metade do corpo como esqueleto, imaginativa representação da proximidade entre a vida e a morte” (Atmósferacine, En las afueras de la Cinelandia de Ramón Gómez de la Serna, conducidos por Jordi Costa: https://atmosferacine.com/2019/10/11/en-las-afueras-de-la-cinelandia-de-ramon-gomez-de-la-serna-conducidos-por-jordi-costa/). Assistimos a uma nova variante de multiplicação de motivos: o espelho da morte reflete a parte esquelética de uma morta viva, metade pele e carne, metade osso, um memento mori bastante comum (ver Vida de esqueleto I: A carne e o osso: https://tendimag.com/2017/09/26/vida-de-esqueleto-i-a-carne-e-o-osso/). Em suma, La Muerte Viva confronta-nos com uma unidade híbrida.

 No conjunto, estas quatro figuras ilustram a diversidade de formas passíveis de invocar o indesejável e incontornável destino do ser humano: o moribundo, o transi, a morte seca… Um misto de realidade e imaginação.

09. Mulher Nobre. Dança Macabra de Basel. Por Mattheus Merian. 1621. Em cima, dito da Morte: “Mulher nobre, pare de arrumar o seu cabelo. / Você deve dançar agora aqui comigo. / Eu não poupo o seu cabelo amarelo, / O que vê você no espelho transparente?”. Resposta da Mulher Nobre: “Oh, medo e angústia, o que aconteceu comigo? / Eu vi a morte no espelho. / Sua figura horrível apavorou-me, / Por isso o coração no meu corpo está frio”.

É tempo de fazer um intervalo. O excerto da Dança Macabra de Basel (figuras 9 a 11) oferece-se como um bom pretexto para cruzar a realidade mais ou menos imaginada com a ficção mais ou menos fundada. O desvio pode ser o melhor atalho.

10. Seculum Vanitas. Livro de horas. Itália. Ca 1480.

Por uma vez, cumpre à pessoa em trânsito, a “nobre bela”, segurar o espelho (figura 9). A posição do espelho, a postura e o olhar da nobre bela e do morto esboçam uma triangulação. Se na gravura a imagem refletida é, do ponto de vista da nobre bela, a do morto, não é de todo inconcebível que o olhar do morto também procure no espelho a imagem da nobre bela. Um morto a ver a vida ao espelho? Ao espelho da morte, corresponderá, no além, um espelho da vida? Certo é que, no imaginário dos vivos, a morte não desdenha ver-se ao espelho. Por exemplo, em pose (na figura 10, face a um espelho de vaidade?), enquanto descansa (na figura 11, a observar a vida?) ou enquanto reza (na figura 13, com os mortos pelos vivos?). O que vê a morte ao espelho? As imagens disponíveis insistem em manter o segredo.

11. Jan Mandijn. A tentação de Santo Antão. 1540–1550. Quadro e detalhe.

Nesta imprudência de cruzar a realidade imaginada com a ficção fundada, aflora a tentação de acrescentar a reciprocidade à interdependência, à interação e ao trânsito entre os mundos da vida e da morte. Esta aberração promete um argumento desafiante para um próximo artigo.

12. Heure de la Vierge en latin et en Français à usage de Paris . Anónimo. Finais do século XV.

Despeço-me com uma fábula. A vida, a morte e o espelho esboçam um triângulo, uma totalidade plural e problemática. Michel Maffesoli diria uma “harmonia conflitual” (Comunidade de destino, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 273-283, jan./jun. 2006, p. 273). Basta uma anomalia ou uma falha na triangulação para abalar essa harmonia. O espelho da morte representa uma ameaça, mas no futuro; já a falha num dos vértices provoca uma desgraça, já no presente. Por exemplo, quando o espelho não reflete a imagem, se quebra ou é ignorado.

Na Grécia Antiga, o espelho, reservado às mulheres, era considerado como o reflexo da alma. Nas práticas divinatórias, a quebra do espelho implicava a maldição para aquele que o consultava. Os romanos avançaram com a superstição, ainda atual, de que um espelho partido inicia sete anos de azar. No conto “o espelho da morte”, de Miguel de Unanumo, a jovem enferma Matilde morre precisamente no dia em que não quis olhar-se ao espelho:

“Passou a noite chorando e ansiando e na manhã seguinte não quis olhar-se ao espelho. E a Virgem de Fresneda, Mãe de compaixões, ouvindo os rogados de Matilde, aos três meses da festa levava-a para que brincasse com os anjos.” (Miguel de Unamuno, O Espelho da Morte, conto, 1913).

13. Edvard Munch. A menina doente. 1896. Com o espelho por detrás da almofada.

Ocorre o inverso com o espelho, agora da verdade. da “menina bexigosa” do poema de Sidónio Muralha: “A menina bexigosa viu-se ao espelho / Soltou-se do vestido e viu-se nua / Está agora vestida de vermelho, / Inerte, no passeio da rua”. Juntas, as duas narrativas engendram uma espécie de duplo vínculo: “preso por ter cão, preso por não ter”. Não há arte de escapar à morte!

Menina bexigosa
A menina bexigosa viu-se ao espelho
Soltou-se do vestido e viu-se nua
Está agora vestida de vermelho,
Inerte, no passeio da rua
Antes fora alegria e alvoroço
Mas num baile ninguém a foi buscar
Morreu o sonho no seu corpo moço
Passou a noite a chorar
Tanto chorou que lhe chamaram louca
Cada qual lhe levava o seu conselho
Mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
E a menina bexigosa viu-se ao espelho
Depois, fecharam a janela
Vieram os vizinhos: ‘Pobre mãe…’
Vieram os amigos: ‘Pobre dela…’
‘Era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem’
E dão-lhe beijos na testa
Beijos correctos pois ninguém, ninguém
Soube em vida matar a sua sede
‘A menina bexigosa portava-se tão bem’
O espelho continua na parede.
(Sidónio Muralha, Menina Bexigosa, 1973).

Manuel Freire – “Menina Bexigosa” (1973) poema de Sidónio Muralha.

Morrer de riso

‘The Dawnce of Makabre’ from Carthusian miscellany, Yorkshire or Lincolnshire ca. 1460-1500. BL, Add 37049, fol. 32r

Na Idade Média, a morte ri: nos triunfos da morte, nas danças macabras ou no assédio às donzelas. Morre-se de riso? Consta que existe uma hilaridade fatal: as vítimas morrem, literalmente, de excesso de riso. O filósofo grego Crisipo de Solis morreu a ver o seu cavalo comer figos; no século XV, o rei Martim I de Aragão morreu com um ataque de riso; mais recentemente, em 2003, Damnoen Saen-um, um vendedor de sorvetes tailandês, morreu de riso enquanto dormia (ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hilaridade_fatal).

No palco, só, Bourvil recorda uma anedota fatal que um amigo lhe contou. Quem ouvir a anedota morre. Oito minutos quase sem palavras, mas sempre a comunicar. É obra e talento.

André Bourvil. C’est l’histoire du jockey qui… / Une histoire à mourir de rire. 1962.

Deambulação

Caravaggio. Adoração dos pastores. 1609.

Raramente encontro o que procuro. Também não armazeno. Tenho as redes folgadas. Nada como parar de procurar. Deambular pelos labirintos. Andar sem destino com pés estrábicos. Ouvir música, por exemplo. Diferente, de preferência. Cativam-me duas músicas, Qui creavit coelum (anónimo) e Nesciens mater (Jean Mouton), do álbum Christmas Music From Medieval And Renaissance Europe. Para não fechar os olhos, escolho a Adoração dos Pastores, de Caravaggio. Sabe bem reencontrar o que já se tem.

Qui creavit coelum (Anónimo) Christmas Music From Medieval And Renaissance Europe. The Sixteen feat. director: Harry Christophers. 1987
Nesciens mater (Jean Mouton) Christmas Music From Medieval And Renaissance Europe. The Sixteen feat. director: Harry Christophers. 1987

Amor em tempo de feira

Pieter Brueghel the Younger – Return from the Fair. 1620-1630.

“Scarborough Fair” é uma balada britânica de origem medieval em que uma pessoa pede à pessoa amada proezas impossíveis. Um tema recorrente no universo dos contos. Scarborough é uma cidade que tinha, na Idade Média, uma das feiras mais importantes de Inglaterra. Segue a balada em duas versões: instrumental clássica, interpretada por Anna Comellas (violoncelo) e Rosalind Beall (guitarra); e canção pop, interpretada por Simon e Garfunkel. Pode encontrar a letra e a tradução da balada neste endereço: https://pt.wikipedia.org/wiki/Scarborough_Fair .

Scarborough Fair. Interpretes: Anna Comellas (violoncelo) e Rosalind Beall (guitarra). Arranjo de Jerry Schnider.
Scarborough Fair. Simon & Garfunkel. Álbum: Parsley, Sage, Rosemary and Thyme (1966). Ao vivo em Central Park. 1981.

Procissão erótica

A academia é bipolar: Excitante para quem adere ao jogo, depressiva para quem o dispensa.

Figura 1. Trois phallus portant une vulve couronnée en procession. Enseigne en plomb, fin du XIVe siècle, Paris, Musée National du Moyen Âge.

Deus existe? A morte existe? E o sexo existe? Três nós cegos do nosso entendimento dados a recalcamentos e sublimações. Existem véus que não cobrem a realidade mas toldam o olhar, como cataratas no cristalino. Por conveniência, hipocrisia, pudor. No entanto, o sexo existe! Faz parte do triângulo da nossa obsessão quotidiana: Deus, morte e sexo. Com duas faces tensas: sol e lua, diurno e nocturno, taça e gládio, carne e espírito. Como redimir a alma quando a verdade é pecadora?

O Museu de Cluny, perto da Sorbonne, possui uma peça rara e ousada: uma insígnia erótica, do século XIV ou XV, composta por três falos antropomórficos que conduzem, em procissão solene, numa espécie de andor, uma vulva coroada (Figura  1). Presa no chapéu ou na capa, presume-se que esta insígnia, ou amuleto, era utilizada em espaços e situações especiais, tais como os prostíbulos e os rituais de fertilidade. Esta escultura em chumbo é minúscula. Mas a arte e o imaginário não se medem aos palmos. Segue uma pequena reportagem.

Les incroyables trésors de l’Histoire : Les pin’s érotiques du moyen-âge. Musée de Cluny. Le Point. França, Outubro 2013.

Desigualdade nas imagens de género

Tantos pénis pintados e esculpidos e tão poucas vaginas!… Uma discriminação que remonta a tempos imemoriais. Na pré-história a representação do pénis concorre com as esculturas de Vénus (Fig 1 a 3). Até os monólitos pecam por excesso. No antigo Egipto, os jardineiros da religião viram-se gregos para podar os falos das estátuas de deuses e faraós (Fig 4 e 5). Por seu turno, no império romano, os tintinábulos pendurados à entrada das casas eram compostos por falos inconfundíveis, eventualmente, voadores (Fig 6, 7 e 8).

Que fazer? Multiplicar as imagens de vaginas? Eliminar as relativas ao pénis? Cortar e tapar o sexo das esculturas e das pinturas com uma folha de figueira? “Vestir” a nudez do Juízo Final original de Michelangelo na Capela Sistina (ver Vestir os Nus: https://tendimag.com/2012/11/13/vestir-os-nus/)? Ou, ao jeito medieval, enveredar pela castração (Fig 9 a 11)?

Marca: ONF (Office National du Film du Canada). Título : Dessine-moi un Pénis. Agência : Rethink (Canada). Canadá, Março 2019.

No anúncio Dessine-moi un pénis, a ONF, um organismo público canadiano de produção e distribuição de filmes, estima que semelhante discrepância de género provém da nossa ignorância acerca do clítoris. Nem sequer o sabemos desenhar.

12. A flying penis copulating with a flying vagina. Gouache Credit: Wellcome Library, London. Wellcome Images.

Na realidade, segundo as estatísticas, existem na população mais vaginas do que pénis. O problema reside, porventura, no imaginário. Mas deixemos as retóricas. O guache A flying penis copulating with a flying vagina (Fig 12), da Welcome Collection, sugere uma solução paritária: um pénis para uma vagina ou uma vagina para um pénis, sem prejuízo de outras localizações e sexualidades.

Fantasia

Bruges. Bélgica. Fotografia de Joel Morais.

Don Quixote de la Mancha, depois da refrega com os gigantes transformados em moinhos de vento, virou-lhes as costas e entregou-se à leitura de um romance de cavalaria. Mas o Moinho da fotografia é de Bruges e não das bandas de Teboso. Aquele ponto negro não é o Don Quixote, mas o meu rapaz mais novo a comunicar com as estrelas. Adora fantasia, que lê e escreve com afinco. Dedico-lhe este artigo.

Marca: Bud Light. Título: Game of Thrones. Joust. Agência: Wieden+Kennedy. Estados Unidos, Fevereiro 2019.

A cerveja Bud Light apostou no Super Bowl. Estes dois anúncios passaram na fase final do campeonato de futebol americano. Assinados pela agência Wieden+Kennedy, são excelentes. Ressalte-se que um único anúncio, o primeiro, promove duas marcas: a Bud Light e o Game of Thrones. Tudo indica que é um expediente que vai vingar.

Marca: Bud Light. Título: Special Delivery. Agência: Wieden+Kennedy. Estados Unidos, Fevereiro 2019.

Cavaleiros, torneios, castelos e dragões são tópicos, eventualmente com ancoragem medieval, repletos de encantos. Não é de estranhar a opção pela música Arthur, de Rick Wakeman. Costuma associar-se o barroco e o faustoso. No caso de Rick Wakeman, o faustoso torna-se, algumas vezes, fastidioso.

Rick Wakeman. Arthur. The Myths and Legends of King Arthur and the Knights of the Round Table. 1975.