Aula imaterial 5. Maneirismo e surrealismo 2. Humanoides
Isto não é uma aula. Uma aula, hoje, requer outros suportes. Se alguém aprender alguma coisa, é por engano.
O barroco é profundamente sensorial e naturalista, apela gozosamente para as seriações fruídas na variedade incessante do mundo físico, ao passo que o maneirismo, sob o domínio do “disegno” interiore, da Idea, se distancia da realidade física e do mundo sensório, preocupado com problemas filosófico -morais, com fantasmas interiores e com complexidades e subtilezas estilísticas; o barroco é uma arte acentuadamente realista e popular, animada de um poderoso ímpeto vital, comprazendo-se na sátira desbocada e galhofeira, dissolvendo deliberadamente a tradição poética petrarquista, ao passo que o maneirismo é uma arte de elites avessa ao sentimento “democrático” que anima o barroco, anti-realista, impregnada de um importante substrato preciosista e cortês, representado sobretudo pelo filão petrarquista; o barroco caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela proliferação dos elementos decorativos, pelo senso da magnificência que se revela em todas as suas manifestações, tanto nas festas de corte como nas cerimónias fúnebres, contrariamente ao maneirismo, mais sóbrio e mais frio, introspectivo e cerebral, dilacerado por contradições insolúveis; o barroco tende frequentemente para o ludismo e o divertimento enquanto o maneirismo aparece conturbado por um “pathos” e uma melancolia de raízes bem¬ fundas (Vítor Aguiar e Silva, Teoria da Literatura).
Alguns traços do maneirismo ressurgem no surrealismo: a exacerbação criativa do artista, a distância face à realidade, a valorização da “subtileza estilística”…
Quando participei, em 2007, na organização de uma exposição de homenagem a Jerónimo Baía, monge poeta do Mosteiro de Tibães, interessei-me pelo maneirismo. Para esta aula de diálogo entre o maneirismo e o surrealismo, convoco três gravuristas: o alemão Wenzel Jamnitzer (1508-1585); o alemão Lorenz Stoer (1537-1621); e o italiano Giovanni Battista Braccelli (1584-1650). É uma tentação associar estes três gravuristas a alguns artistas surrealistas.
No próximo vídeo, os desenhos da obra Perspectiva Corporum Regularium (1568), de Jamnitzer, e os desenhos de M. C. Escher cotejam-se, desprendendo-se a sensação de um certo ar de família. O facto de Escher possuir uma gravura de Jamnitzer acresce como um indício factual.
As construções mentais de Lorenz Stoer, designadamente as paisagens urbanas com figuras geométricas, revelam alguma afinidade com as gravuras de Escher. Jamnitzer, Stoer e Escher são “artistas conceptuais”. Ver o vídeo Paisagens Geométricas, com gravuras da obra Geometria et Perspectiva (1567) de Lorenz Stoer.
A galeria de imagens de M. C. Escher complementa o vídeo de Stoer. Não se pretende sugerir que Escher se inspirou em Stoer. Apenas sustentar que ambos partilham determinados esquemas mentais, tais como a propensão para a geometrização da realidade, geometrização, por vezes, distorcida, inteletiva e idiossincrática.
Escher. Tower of Babel. 1928 Escher. Life and street. 1937 Escher. Cycle. 1938 Escher. Balcony. 1945 Escher. Up and down. 1947 EScher. The waterfall. 1961 Escher. Côncavo e convexo. 1955
Dos gravuristas maneiristas considerados, Braccelli é aquele que mais se aproxima do surrealismo. Distingue-se pela construção fantástica de figuras humanoides estilizadas, publicadas em Bizzarie di varie figure (1624).
É uma tentação esboçar pontes entre Braccelli, M. C. Escher e Salvador Dali. Comecemos, porém, com Giorgio di Chirico, precursor do surrealismo. Os seres solitários e melancólicos, de Giorgio di Chirico, e as figuras bizarras de Braccelli convergem, pelo menos, no seguinte aspecto: retratam humanoides, compostos por objectos, sem rosto e descarnados.
Giorgio di Chirico. Le rêve transformé. 1913 Giorgio di Chirico. Hector and Andromache. 1917 Giorgio di Chirico. The disturbing muses. 1918 Giorgio di Chirico. La commedia e la tragedia. 1926
Confrontar obras de arte descontextualizadas não é recomendável. Não obstante, ousamos suspender temporariamente a sociologia e a semiótica para dar asas à imaginação.
Braccelli p 27 M.C. Escher, Ring. 1955
Braccelli p 42 M.C. Escher. Bond of Union. 1956
Braccelli p 45 Salvador Dali. Ilustração da edição de 1946 do Don Quixote de Cervantes
Salvador Dali assume as suas afinidades e ligações. Convocou François Desprez, convoca, também, Braccelli. Deu o nome Braccelli a uma gravura e a uma peça de design (Braccelli Lamp). Assinou a escultura de homenagem a Braccelli no Château de Vascoeil (ver imagens).
Braccelli Lamp, by Salvador Dali. Conceived in the 1930’s, first production in the 1990’s Château de Vascoeuil Hommage à Braccelli par Salvador Dali Salvador Dali. ‘Braccelli’ the Warrior with a Corpse. Torero Series. 1985
Este texto aproxima-se de um exercício ou de um divertimento. Aprende-se com o divertimento? A infância é, porventura, a idade da vida em que mais se aprende, aprende-se o mundo, a brincar.
Peregrinámos um longo percurso para saber o que já se sabe: a afinidade entre o maneirismo e o surrealismo. Valeu a pena? Depende da maneira como se caminha. Pode-se ir em fila ou pelos muros. Quem descobre o descoberto desfruta do treino e do prazer de descobrir. A excelência actual aposta mais na didáctica do descoberto e menos na didáctica da descoberta.
Isto não é uma aula. É um contributo original para a sociologia e a semiótica da arte. Corre-se o risco de aprender.
Termino com um documentário sobre o surrealismo, que tem a lucidez de começar pelo dadaismo.
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