Ousadia serena para almas céticas

O artigo anterior contemplou a cantora Angel Olsen. Quem escuta Angel Olsen arrisca ocorrer-lhe Sharon Van Etten. Partilharam, aliás uma música: “Like I Used To” (1991). Nascida em Belleville, New Jersey, em 1981, Sharon Van Etten editou o seu primeiro álbum, “Because I Was In Love”, em 2009. Desde então publicou cinco álbuns: Epic (2010), tramp (2012), Are We There (2014), Remind Me Tomorrow (2019) e We’ve Been Going About This All Wrong (2022).
Com uma voz ligeiramente rouca, as “suas músicas “Suas são sinceras sem serem excessivamente sérias; sua poesia é franca, mas não aberta e sua voz elegante é envolta em suficiente tristeza para não soar muito pura ou confiante”. A elegância de uma ousadia serena. E alguma intimidade sombria. Dedico estas quatro músicas, uma por álbum por data decrescente, às almas céticas que dobram os anos como quem muda de pântano.
Recomendo o artigo “Santuário da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima”, um texto curioso com imagens magníficas, de Eduardo Pires de Oliveira, no blogue margens: https://margens.blog/2022/12/30/santuario-da-boa-morte-correlha-ponte-de-lima/
Um pouco de amor e melancolia

We live together in a photograph of time” / Vivemos juntos numa fotografia do tempo (Antony And The Johnsons. Fistful Of Love)
Regularmente, o Tendências do Imaginário faz questão de introduzir uma pausa na conversa para “dar música”. Abrir uma janela lúdica entre artigos porventura mais densos. Que músicas? Quaisquer, de preferência que exprimam um gosto ou um estado de alma a partilhar. Estranho? O blogue é omnívoro e não possui contrato de exclusividade com assuntos ditos sérios nem é alérgico ao prazer. Não é só pela razão que se conhece e ainda menos se sente, se abraça, o mundo (Blaise Pascal, Pensées, 1670). Faz parte da sabedoria não espalmar a vibração dos sentidos, dos sentimentos e das emoções.
Angel Olson lançou este ano a canção Big Time. Associando Woman (2016) obtém-se um belo par que transmuta a melancolia em lamento e melodia, arte de que é mestre Antony. Recorde-se, por exemplo, Fistful Of Love. Um jeito de se deixar embalar em dia de chuva indolente.
O riso da velha grávida (margens)
Coloquei um artigo com características pouco habituais no blogue margens. É enorme, original, surpreendente e irreverente. Um regresso lúdico, mas aplicado, ao grotesco mais delirante e desconcertante. Espreite! Basta um click no endereço ou na imagem seguintes: https://margens.blog/2022/12/19/o-riso-da-velha-gravida-revisto-e-aumentado/.

Prenda de Natal. As imagens também rezam

Durante a Baixa Idade Média, a experiência e o sentimento do religioso alteraram-se. Acentua-se a humanização do divino. O céu e o inferno aproximam-se da vida quotidiana. A relação com o sagrado intensifica o sensorial e o emocional. Implementa-se a oração no espaço privado. As imagens, utilizadas para a difusão da doutrina da Igreja, afirma-se, também, como mediação na comunicação com o Além. O prazer da imagem expande-se e diversifica-se. Este é o contexto em que aparecem e se multiplicam, a partir do séc. XIII, os livros de horas, suportes da oração em privado. Dispendiosos, de fabrico demorado em oficinas especializadas, são inicialmente uma exclusividade da realeza, da alta nobreza e do alto clero. Prezados, símbolos de estatuto, preservados na esfera privada e motivo de colecionismo, sobreviveram à destruição que vitimou outros tipos de obras de arte. Só na Bibliothèque Nationale de France, na British Library e na Morgan’s Library, os exemplares contam-se aos milhares. Rica e minuciosamente ilustrados, sobressaem como fontes documentais do quotidiano e do imaginário medievais.

Jean de Vallois, Duque de Berry (1340-1416), colecionador “compulsivo” de obras de arte e “curiosidades” possuía vários livros de horas. Entre estes, os célebres Les Grandes Heures de Jean de Berry (1407-1409) e Les Très Riches Heures du Duc de Berry (1413-1416). É convidado a “folhear” o primeiro na galeria seguinte com a lista completa das páginas capitulares. No conjunto, o volume tem 126 folhas ilustradas (39,7 × 29,5 cm). O artigo Horae ad usum Parisiensem. Antecipação medieval do surrealismo acrescenta uma seleção das figuras fantásticas das margens do livro.
Galeria de imagens: Páginas capitulares do livro de horas Les Grandes Heures de Jean de Berry






















Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/
A descarga (download) integral de Les Grandes Heures de Jean de Berry (78.2 MB) está disponível no seguinte endereço (link): https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510/#
Se após a “leitura” das imagens das Grandes Horas de Jean de Berry sobrar algum tempo, pode ainda assistir ao concerto de música sacra espanhola (Llibre Vermell de Montserrat e Cantigas de Santa Maria), na catedral românica de Elne, durante o festival de radio France et Montpellier Languedoc-Roussillon 2013, com interpretação da Maîtrise de Radio France e Les Musiciens de Saint-Julien. Para aceder a este concerto, carregar na imagem seguinte ou no endereço https://margens.blog/2022/12/25/prenda-de-natal-os-anjos-tambem-cantam/, do blogue Margens. Aproveite a folga para perder tempo. Há quem preencha o vazio a fazer posts. Não é exemplo. É vício.

De criação recente, cozido no mesmo forno, o blogue margens é parceiro do Tendências do Imaginário. Embora com vocações e composições diferentes, apostam na simbiose e na complementaridade, sem inibição de mútua remissão. O custo desta dança resume-se a um clique.
Queima-santos

Ontem à noite vi o filme Diamantino (2018), de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que uma colega amiga, a Isabel Macedo, teve a gentileza de me proporcionar. Mais um caso em que o humor e a fantasia se insinuam como via de acesso à realidade! Quase premonitório.
No rescaldo do Mundial de Katar, surpreendi-me a cogitar sobre o poder do pontapé. Um único pontapé é capaz de consagrar ou humilhar, de promover um jogador, ou uma equipa, a herói divino ou reduzi-lo a figurante desgraçado. No Mundial, foram muitos, demasiados, os jogos decididos por desempate por grandes penalidades. Até a final! Manifesta-se assombroso o alcance planetário de um simples pontapé! Pontapé na bola; pontapé no mundo! Resulta resplendor ou apagamento, anjo ou besta. Fenómeno pouco lógico, porventura mágico-religioso. Em verdade vos digo, a sensatez humana não vale um tostão.
Eutirox é um medicamento incómodo. Tomado de manhã em jejum, convém aguardar meia hora até ao pequeno almoço. No intervalo, acontece recostar-me a ouvir música e voltar a adormecer. Momento propício a sonhos que o acordar costuma recordar.
Hoje, em sonho, regressei à infância, irritado com a nomeada de queima-santos atribuída aos residentes de Prado (São Lourenço), minha terra natal. Desviado o olhar para o mapa, os limites da freguesia começam a expandir-se até coincidir com o País, Portugal (Santa Maria), agora travestido de “mátria” de queima-santos! Novo salto até à Alumiada a S. Tomé, na freguesia de Penso, em Melgaço. Fachos de palha de centeio incendeiam a noite (ver vídeo 3). Os participantes acabam por se juntar numa fogueira colossal (vídeo). Mas, em vez de São Tomé, aparecem São Cristiano e São Fernando, consumidos pelas chamas como o boneco, também de palha, do “entroido” de Castro Laboreiro. Tomados por uma fé avessa a falhas (pecados? traições?), atentos aos profetas da comunicação social, os queima-santos sentam-se à volta da fogueira, à espera de novas epifanias, novos êxtases e novas santificações.
Acordei envergonhado com o meu subconsciente.
Há vinte anos escrevi um artigo dedicado ao futebol. Desde então muita água correu; o texto permaneceu enxuto. Permito-me recolocá-lo.
Maquilhagem da Alma
You can leave now if you want to
I’ll still be around
This parade is almost over
And I’m still your clown
(Angel Olsen. Woman. My Woman. 2016)

O anúncio “quase perfeito” She, da J&B, lembra o vídeo musical Every Time the Sun Comes Up, da Sharon Van Etten: ênfase na idade, nas rugas, na maquilhagem (vídeo 1). She, o nome da canção célebre que acompanha o anúncio, lembra ainda uma outra canção, homónima, da jovem norte-americana Alice Phoebe Lou (vídeo 2). Por seu turno, Alice Phoebe Lou, quando canta She, lembra uma fada Sininho impetuosa (vídeo 3).
Sharon Van Etten
Anúncio quase perfeito

De qualquer ângulo, o anúncio “She/Abuelo”, da J&B Spain, é quase perfeito. Só não é perfeito porque a perfeição não existe.
Circuito de Generosidade


No anúncio “Noel 2022”, da Coop, uma corrente de entreajuda forma uma roda: quem recebe um gesto de generosidade prossegue-o até regressar ao primeiro par, num encadeamento circular que lembra o circuito Kula das ilhas Trobriand (Bronislaw Malinowski). Bonito? Muito. Improvável? Bastante. Possível? Talvez, durante o Natal. Pelo menos, na imaginação. A roda da vida a sobrepor-se às danças da morte e dos tolos.
Dança macabra. Mosteiro dos Bernardinos. Séc. XVII. Cracóvia.
Neil Young. Old Man

Mais música, outro “dinossauro”: Neil Young. Resulta estimulante vê-lo a interpretar “Ohio”, com 73 anos, no concerto Farm Aid de 2018. Não menos impressionante a performance a solo, sem qualquer acompanhamento, oito anos antes, no Farm Aid de 2010. Para concluir, um recuo a 1971: “Old man”, ao vivo na BBC, com 26 anos.
Cirurgia à memória coletiva

Interessa-me a questão da destruição da arte. É uma modalidade de erosão da memória coletiva mais frequente do que estamos, espontaneamente, inclinados a pensar. A arte não detém, contudo, o exclusivo. Longe disso. Existem outros mundos alvo de apagamento da memória coletiva, alguns relativamente próximos da arte. É o caso de espaços de diversão e lazer tais como a Feira Popular de Lisboa ou o Palácio de Cristal do Porto devorados pela reconversão urbana. Em Braga, sucedeu algo semelhante à Bracalândia.

A propósito da exposição e do livro de fotografias, ambos com a mesma designação (Despedido), de Valter Vinagre (Narrativa, Alvalade), o jornal Público / ípsilon de hoje (18 de Dezembro de 2022, 7:46), dedica um artigo de fundo, da autoria de Sérgio B. Gomes, às “feridas” e às “cicatrizes” da Feira Popular de Lisboa, com o título “Notícias de um fantasma: Feira Popular de Lisboa”. Ousando extrair dois parágrafos, recomendo a leitura.
Nas sete fotografias de destruição da feira escolhidas por Vinagre — as mesmas, tanto para o livro (edição da Pierrot Le Fou, com ensaio de Emília Tavares), como para a exposição — só se vislumbram pormenores em segundos planos que identificam Lisboa. Este “fotografar de dentro para dentro” foi uma opção deliberada na tentativa de provocar “mais curiosidade” e de alargar o campo de discussão. “Ao fechar estas imagens, posso falar mais amplamente sobre destruição de memória colectiva, porque não as vemos apenas como fotografias de entulho da antiga Feira Popular, mas de qualquer processo de destruição de memória colectiva. Claro que elas pertencem a uma geografia, neste caso lisboeta, mas eu quero falar de um problema que é mundial, sobretudo das grandes cidades.
Se se perguntar hoje porque é que a Feira Popular de Lisboa acabou (ou foi acabando, consoante quem perguntar), a resposta pode ser tudo menos evidente ou simples. Um pouco como se se perguntar no Porto porque é que o antigo Palácio de Cristal foi destruído. Aqui, a resposta pode ser: porque a cidade não tinha um espaço para organizar o Campeonato Mundial e Europeu de Hóquei em Patins Masculino de 1952. Mas é sempre mais complexo do que um facto, um soluço, uma dificuldade, a falta de um campo de patinagem, um presidente, um vereador. E não é por acaso que muitos, dentro e fora do Porto, se referem ao actual Super Bock Arena — Pavilhão Rosa Mota como “Palácio de Cristal”. Será um sinal de que as cidades são as pessoas, o usufruto que delas fazem, carregado com os seus imaginários, os seus quotidianos? Que cidade é Lisboa agora? É de ruínas que ainda falamos? “É. Quando olho para a cidade hoje, sobretudo a cidade que foi despejada, vejo-a cheia de cores, mas o que está à minha frente parece um filme — o que nos é dado a ver, porque já só quase vemos a cidade de fora —, é como se fosse um cenário. Os que viveram a cidade antes não conseguem abstrair-se do que existia. Por muito que gostemos de ver os bairros de Lisboa sem a decrepitude ou com condições de habitabilidade infra-humanas, aquilo que aconteceu é que deixou de ser isto para ser um artifício, um lugar a que não se tem acesso — ou melhor, só se entra nele se for para trabalhar, não para viver, porque não há poder económico para viver na cidade.
(Sérgio B. Nunes. Público / ýpsilon. “Notícias de um fantasma: Feira Popular de Lisboa”. Jornal Público, 18 de Dezembro de 2022, 7:46)