Archive | Política RSS for this section

Espantalhos

Max Ernst. Birds also Birds, Fish, Snake and Scarecrow. c. 1921

Quase não vejo televisão. Ligo-a sempre num “canal de notícias”. Não tarda alguém a misturar notícia e opinião com ares de não saber o que diz. Às vezes, até duvido da boa fé. Por exemplo, ainda ontem um telejornal apresentou de uma forma deveras insólita, parcial e perversa os resultados do concurso para médicos de medicina geral e familiar. Talvez a informação e a urgência excedam as disponibilidades de jornalistas. Alérgico a influenciadores intrusivos, desligo o televisor, razão por que, não mudando, religo fatalmente um canal de notícias. Prefiro ler alguém que não pretende pensar por mim mas fazer-me pensar. Por exemplo, o Eduardo Lourenço:

“Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar. Um criador não é um homem que sonha, mas um homem que faz sonhar. Ser grande pensador ou grande criador é fazer pensar e sonhar uma inumerável sucessão de homens e de tempos. Esta condição original dos pensadores e dos poetas explica o mistério aparente do triunfo histórico das obras obscuras, das sinfonias incompletas, das estátuas partidas. Toda a grande obra é obscura e incompleta e essa obscuridade e imperfeição são a sombra necessária à visão do sol contínuo que lhes constitui o cerne.” (“A arte ou as estátuas partidas”, Agosto de 1954, Da Pintura. Lisboa: Gradiva, 2017, pp. 120-121).

Segue a canção “Paranoimia” dos Art of Noise. “Paranoimia” resulta da junção de “paranoia” e “insónia”: estar com medo e incapaz de dormir. Há quem ande a semear “paranoimia”, insegurança e desassossego, talvez para colher avatares do Big Brother e admiráveis mundos novos.

The Art of Noise. Paranoimia. In Visible Silence. 1986. Com Max Headroom, Paranoimia, 2017
Queen. Radio Ga Ga. Bohemian Rhapsody. 1984
Roger Waters. Amused to Death. Amused to Death. 1992

Fruta

Sara Bernardo

Ontem, segunda, dia 22 de maio, foi alterada a data, para as 18 horas de sábado, dia 27, dos próximos encontros de futebol do S.L. Benfica e do F.C. Porto. Está em jogo a conquista, e a celebração, do título. Como é possível que uma decisão que interfere expressivamente na atividade de um País seja tomada de segunda para sábado? Os maneiristas afinal estavam certos: a razão, a estabilidade e a previsibilidade valem pouco; a vida depende do destino, do acaso, do último lançamento de dados.

A conversa sobre o surrealismo e o maneirismo começa, precisamente, no mesmo dia apenas uma hora antes. A divulgação foi iniciada na quinta-feira passada. Até então não teria custado antecipar o encontro uma hora, para as 16:00. Perde-se a vontade de projetar e promover o que quer que seja. Para compensar, o público, embora provavelmente mais reduzido, será, por filtragem, cinco estrelas.

Imagem: Giuseppe Arcimboldo, Cabeça reversível com cesta de frutas , 1590

Num país retangular que não cuida de se cuidar, o mais avisado é desviar a atenção. Por exemplo, para o rio, o mar, a brisa, as nuvens, as sereias, as amazonas e as musas. E fruta, muita fruta! Maçãs, melancias, maracujás. Com a espanhola Sandra Bernardo.

Sandra Bernardo. Fruta. Trópico ideal. 2018

Desorientação

Os contrapoderes andam agitados, incisivos e imaginativos. Das pulgas fazem elefantes. Com a arte da comichão e do coçar.

Distinguem-se várias propensões, umas, por exemplo, apostadas na correção e no resgate, outras na transgressão e na renovação. Para onde oscilamos? Coexistindo, algumas tendência podem dominar as demais. A dominação torna-se hegemónica quando os dominados adotam a linguagem dos dominantes. Em que estado estamos? Enfim, poderão os contrapoderes aspirar à hegemonia?

Convido, a despropósito, ao confronto de algumas músicas de duas bandas britânicas com registos divergentes: energia, senão entusiasmo, dos Orchestral Manoeuvres In The Dark, dos anos 1980, e apelo, senão súplica, dos London Grammar, dos anos 2010.

Imagem: René Magritte. Reprodução proíbida. 1937

Orchestral Manoeuvres In The Dark. Electricity. Orchestral Manoeuvres in the Dark. 1980
Orchestral Manoeuvres In The Dark. Enola Gay. Organisation. 1980
London Grammar. Nightcall. If You Wait. 2013
London Grammar. Hey Now. If You Wait. 2013

Tecnocracia e (in)consistência política

No momento preciso em que as notas de dez e vinte euros caíam nas minhas mãos, tive a sensação física de que a tecnocracia de Bruxelas tomava o poder, e que o simples gesto de pegar nessas notas assinava o meu consentimento (Alain-Gérard Slama, Chroniques des peurs ordinaires : Journal de l’année 2002, 2003).

Um último apontamento sobre o “ideal tipo” de tecnocracia, assunto que, por sinal, pouco me entusiasma.

A ação tecnocrata preza, por princípio, o consenso entre os decisores. Importa que os objetivos e os métodos sejam incontroversos. A ausência de consenso interno insinua-se como uma pedra na engrenagem. Por isso os tecnocratas dispensam tanto tempo, energia e recursos em negociações preparatórias de “decisões conjuntas”. Não é descabido conjeturar que a dificuldade em alcançar consensos justifica a dualidade e a inconsistência das políticas tecnocráticas.

Extremam-se, por exemplo, as medidas para salvar o próximo do consumo do tabaco ativo ou passivo. Este empenho esmorece, porém, quando estão em causa outros vícios e dependências, não menos adversos à “saúde” individual e coletiva, tais como a droga, o álcool ou o jogo. É desconcertante este desconcerto!

Manuel Freire. Pequenos Deuses Caseiros. EP Abaixo D. Quixote. 1973

Iluminados e viciados

René Magritte. O Principio do Prazer. 1937

O último artigo do Tendências do Imaginário, “Convencer ou obrigar”, denso e elíptico, oferece-se como um fragmento, logo ferido de incompletude. Pode, assim, suscitar, alguma curiosidade. Pergunta uma amiga:

Concordo plenamente com a tua publicação ” convencer ou obrigar “. Mas fiquei curiosa, ao ver surgir esse desabafo, sem específico desenvolvimento.

Algum gatilho em particular que despoletou essa revolta?

A resposta será sucinta mas clara.

Entendo-me submetido ao exemplo mais extremo de tecnocracia com propensão autocrática de que tenho conhecimento na história da humanidade. Refiro-me ao Conselho Europeu. Traça objetivos com metas absolutas e distantes, por vezes com décadas de antecipação, e desdobra-se em normas e diretrizes, por seu turno reproduzidas e implementadas, porventura com excesso de zelo, por cada governo nacional.

René Magritte. O Presente. 1938

Independentemente do contexto europeu, Portugal é pródigo em exemplos específicos. Creio ser o caso do recente pacote “Mais Habitação”. O problema é remoto, notório e grave. Entretanto, pouco ou nada se fez, promoveu, sensibilizou, motivou ou incentivou. De um momento para o outro, obriga-se e proíbe-se! Restaura ou arrenda o imóvel ou alguém se encarregará, segundo o projeto de lei, de o fazer por ti; por outro lado, se o imóvel se situa nesta ou naquela localidade, segundo o mapa aprovado, assim será ou não permitido investir em alojamento local. Institui-se, deste modo, uma desigualdade entre os cidadãos com base no território.

O gatilho, confesso, é a fuga para frente da cruzada antitabaco. A antiguidade, a sistematicidade e a brutalidade das campanhas adotadas, algumas lesivas dos direitos dos cidadãos consignados na Constituição da República, não têm sido contempladas com resultados expressivos. Para que se inaugure em 2040 “uma geração livre de tabaco”, não se vislumbra alternativa à obstinação em obrigar e proibir: só fumarás e comprarás, alimentarás o vício, em espaços cada vez mais reduzidos, até te sentires como pareces ser concebido: uma aberração e um pária nocivo, circunstancialmente tolerado por lei e vergonhosamente lucrativo em matéria de impostos.

Esta “explicação” configura uma exceção. Continuarei a ser esfíngico na escrita e a apostar na interpretação alheia.

Isabelle Mayereau. Crocodiles. Déconfiture. 1979
Isabelle Mayereau. Bureau. Déconfiture. 1979

Crocodiles (Isabelle Mayereau)

Vous qui refaites le monde avec des gants de boxe
Qui n’avez qu’une idée être premiers au box
Office des PDG
Vous écrasez les gens, vous marchez sur leur tête
Vous y cognez dedans, un peu comme à la fête
Décidés
Et vous grimpez l’échelle des coefficients
Agendas de croco, Mercedes six-cent
Six-cent
Six-cent
Vous qui manipulez les gens comme des mounaques
Qui en faites du mou à chat par kilos et en vrac
Dégueulasse
Vous glissez dans l’ velours de ces bureaux foncés
Aux senteurs de havane légèrement sucrées
Efficaces
Et vous prenez le pas de tous ces géants
Qui ont fait l’Amérique d’un seul coup de dents
De dents
De dents
Et vous écrasez tout pour un seul bout de fric
Vos mots, c’est pas des mots mais c’est des coups de trique
Mais hélas
Vous ne pourrez jamais pénétrer dans ma tête
Y fourrer vos doigts sales en forme de chronomètres
Carapace
Et vous prenez le pas de tous ces volcans
Qui ont vomi leur âme, c’était noir dedans
Dedans
Dedans
Vous qui refaites le monde avec des gants de boxe
Qui n’avez qu’une idée être premiers au box
Office des PDG
Vous écrasez les gens, vous marchez sur leur tête
Vous y cognez dedans, un peu comme à la fête
Décidés
Vous nagez dans des eaux mais ce n’est pas le Nil
On vous appelle parfois, parfois les crocodiles
Codiles
Crocodiles

Convencer ou obrigar

George Grosz. O Eclipse do Sol. 1926

A tecnocracia aspira a racionalizar, senão otimizar, através da ciência e da técnica, a relação entre, por um lado, os recursos e os meios disponíveis e, por outro, os fins assumidos. Pode obter algum sucesso quando estes são materiais. Tende, porém, a encalhar quando são iminentemente pessoais e sociais, quando não é apenas questão de mobilizar recursos e valores “objetivos” mas convicções e vontades. Confrontados com esta dificuldade, os tecnocratas democratas tendem a transformar-se em tecnocratas autocratas. Convencidos, não convencem, obrigam.

Francisco Fanhais. Cantilena (poema de Sebastião da Gama). 1969

Margens. Passo a passo

Pé ante pé, o blogue Margens lembra a neta: de ensaio em artigo, começa a andar. Devagar, para não cansar, vai plantando um pomar de ideias, uma horta de novidades, com alguns morangos silvestres a insinuar-se nas bordas dos regos de água. Sem chavões, sem palas, sem filtros, sem revisões cegas… Mas com nervo, fibra e autoria assumida. Folhas soltas que ressoam num espelho d’água danças envolventes que lembram uma folia portuguesa. “A coisa prometendo”, aguarda-se, com alguma ansiedade, a estreia, a pegada pioneira, dos demais autores deste pequeno círculo, um ninho de iniciativas, dedicado à cultura, à arte e ao imaginário.

O artigo mais recentes, Viúvas de Braga… sem filtros, da Anabela Ramos, é uma delícia. Abre o apetite, dá vontade de experimentar comer viúvas. E mais não digo! Está acessível no seguinte endereço: https://margens.blog/2023/04/20/viuvas-de-bragasem-filtros/.

Manuel Machado. La Folia Dos Estrellas Le Siguem. Folia portuguesa do séc. XVII. Pelo Ensemble CIRCA 1500.

Avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Relatórios

O blogue Margens acaba de publicar uma análise das repercussões da Capital Europeia da Cultura em 2012 no desenvolvimento do concelho de Guimarães, volvidos dez anos, da autoria de Samuel Silva, que integrou a equipa, que coordenei, do Instituto de Ciências Sociais responsável, a seu tempo, pela avaliação dos impactos sociais e culturais do evento. Pelo interesse, oportunidade e lucidez, recomendo o artigo E tudo se transforma? (https://margens.blog/2023/04/15/e-tudo-se-transforma/).

Aproveito o ensejo para partilhar dois relatórios, em português e inglês, da avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, publicados em 2012 e 2013: intercalar (fevereiro de 2013) e final (setembro de 2013).

Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Intercalar – Fevereiro 2013 – Universidade do Minho:

Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Final – Setembro 2013 – Universidade do Minho:

O Homem sem Qualidades e a Banalidade do Mal

O primeiro de abril também é dia de persistir na aproximação da verdade.

“O problema com um criminoso nazista como Eichmann é que ele insistia em renunciar a qualquer traço pessoal. Como se não tivesse sobrado ninguém para ser punido ou perdoado. Repetidas vezes ele protestava rebatendo as questões da promotoria dizendo que não tinha feito nada por iniciativa própria. Que jamais fizera algo premeditadamente para o bem ou para o mal. Apenas cumprira ordens. Esta desculpa típica dos nazistas torna claro que o maior mal do mundo é o mal perpetrado por ninguém. Males cometidos por homens sem qualquer motivo, sem convicção, sem razão maligna ou intenções demoníacas. Mas seres humanos que se recusam a ser pessoas. E é este fenómeno que eu chamei a ‘banalidade do mal’ (Hannah Arendt).

Hannah Arendt e a banalidade do mal (legendado). Fragmento extraído do filme “Hannah Arendt” – 2012

O trem da outra margem

Monte de Santa Tecla

“Nós somos os fillos lingüísticos das nosas criadas, as criadas que nos criaron” (Xavier Alcalá, escritor amigo de Andrés do Barro).

“O Tren”, galego; “O Tren”, castelán… O galego, todo proibido. Ou seja, tinha todo grabado. Enton paseina poñendo “O Trem”, portugués… E pasou! (Andrés do Barro sobre a aprovação de “O Tren” pela censura).

Encostado à Galiza, do Monte de Santa Tecla sopram memórias húmidas como as canções de Andrés do Barro (1947-1989) dedicadas à emigração e à separação: “O Tren”, “Teño Saudade”, “Adeus Adeus”… Andrés do Barro foi um dos primeiros músicos a cantar em galego e “O Tren” a única canção do País em língua não castelhana a conquistar o topo de vendas. Algumas composições lembram os contemporâneos Aguaviva e Patxi Andion, outras os anos sessenta e a música tradicional galega.

Seguem cinco canções de Andrés do Barro. Aconselho, ainda, o documentário “Andrés do Barro. No Bico un Cantar”, da Televisión de Galícia, emitido no dia 9 de janeiro de 2013, cujo endereço é http://www.crtvg.es/tvg/a-carta/andres-do-barro?t=1089

Andrés do Barro. Adeus Adeus. Me llamo Andrés Lapique do Barro. 1970
Andrés do Barro. Teño Saudade. O Tren. 1970
Andrés do Barro. Meu Amor. O Tren. 1970
Andrés do Barro. O Tren. O Tren. 1970. Do filme En la red de mi canción, de 1971
Andrés do Barro. Amor D.F. O Tren. 1970