Espantalhos


Quase não vejo televisão. Ligo-a sempre num “canal de notícias”. Não tarda alguém a misturar notícia e opinião com ares de não saber o que diz. Às vezes, até duvido da boa fé. Por exemplo, ainda ontem um telejornal apresentou de uma forma deveras insólita, parcial e perversa os resultados do concurso para médicos de medicina geral e familiar. Talvez a informação e a urgência excedam as disponibilidades de jornalistas. Alérgico a influenciadores intrusivos, desligo o televisor, razão por que, não mudando, religo fatalmente um canal de notícias. Prefiro ler alguém que não pretende pensar por mim mas fazer-me pensar. Por exemplo, o Eduardo Lourenço:

“Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar. Um criador não é um homem que sonha, mas um homem que faz sonhar. Ser grande pensador ou grande criador é fazer pensar e sonhar uma inumerável sucessão de homens e de tempos. Esta condição original dos pensadores e dos poetas explica o mistério aparente do triunfo histórico das obras obscuras, das sinfonias incompletas, das estátuas partidas. Toda a grande obra é obscura e incompleta e essa obscuridade e imperfeição são a sombra necessária à visão do sol contínuo que lhes constitui o cerne.” (“A arte ou as estátuas partidas”, Agosto de 1954, Da Pintura. Lisboa: Gradiva, 2017, pp. 120-121).
Segue a canção “Paranoimia” dos Art of Noise. “Paranoimia” resulta da junção de “paranoia” e “insónia”: estar com medo e incapaz de dormir. Há quem ande a semear “paranoimia”, insegurança e desassossego, talvez para colher avatares do Big Brother e admiráveis mundos novos.
Fruta

Ontem, segunda, dia 22 de maio, foi alterada a data, para as 18 horas de sábado, dia 27, dos próximos encontros de futebol do S.L. Benfica e do F.C. Porto. Está em jogo a conquista, e a celebração, do título. Como é possível que uma decisão que interfere expressivamente na atividade de um País seja tomada de segunda para sábado? Os maneiristas afinal estavam certos: a razão, a estabilidade e a previsibilidade valem pouco; a vida depende do destino, do acaso, do último lançamento de dados.

A conversa sobre o surrealismo e o maneirismo começa, precisamente, no mesmo dia apenas uma hora antes. A divulgação foi iniciada na quinta-feira passada. Até então não teria custado antecipar o encontro uma hora, para as 16:00. Perde-se a vontade de projetar e promover o que quer que seja. Para compensar, o público, embora provavelmente mais reduzido, será, por filtragem, cinco estrelas.
Imagem: Giuseppe Arcimboldo, Cabeça reversível com cesta de frutas , 1590
Num país retangular que não cuida de se cuidar, o mais avisado é desviar a atenção. Por exemplo, para o rio, o mar, a brisa, as nuvens, as sereias, as amazonas e as musas. E fruta, muita fruta! Maçãs, melancias, maracujás. Com a espanhola Sandra Bernardo.
Desorientação
Os contrapoderes andam agitados, incisivos e imaginativos. Das pulgas fazem elefantes. Com a arte da comichão e do coçar.
Distinguem-se várias propensões, umas, por exemplo, apostadas na correção e no resgate, outras na transgressão e na renovação. Para onde oscilamos? Coexistindo, algumas tendência podem dominar as demais. A dominação torna-se hegemónica quando os dominados adotam a linguagem dos dominantes. Em que estado estamos? Enfim, poderão os contrapoderes aspirar à hegemonia?

Convido, a despropósito, ao confronto de algumas músicas de duas bandas britânicas com registos divergentes: energia, senão entusiasmo, dos Orchestral Manoeuvres In The Dark, dos anos 1980, e apelo, senão súplica, dos London Grammar, dos anos 2010.
Imagem: René Magritte. Reprodução proíbida. 1937
Tecnocracia e (in)consistência política
No momento preciso em que as notas de dez e vinte euros caíam nas minhas mãos, tive a sensação física de que a tecnocracia de Bruxelas tomava o poder, e que o simples gesto de pegar nessas notas assinava o meu consentimento (Alain-Gérard Slama, Chroniques des peurs ordinaires : Journal de l’année 2002, 2003).
Um último apontamento sobre o “ideal tipo” de tecnocracia, assunto que, por sinal, pouco me entusiasma.

A ação tecnocrata preza, por princípio, o consenso entre os decisores. Importa que os objetivos e os métodos sejam incontroversos. A ausência de consenso interno insinua-se como uma pedra na engrenagem. Por isso os tecnocratas dispensam tanto tempo, energia e recursos em negociações preparatórias de “decisões conjuntas”. Não é descabido conjeturar que a dificuldade em alcançar consensos justifica a dualidade e a inconsistência das políticas tecnocráticas.
Extremam-se, por exemplo, as medidas para salvar o próximo do consumo do tabaco ativo ou passivo. Este empenho esmorece, porém, quando estão em causa outros vícios e dependências, não menos adversos à “saúde” individual e coletiva, tais como a droga, o álcool ou o jogo. É desconcertante este desconcerto!
Convencer ou obrigar


A tecnocracia aspira a racionalizar, senão otimizar, através da ciência e da técnica, a relação entre, por um lado, os recursos e os meios disponíveis e, por outro, os fins assumidos. Pode obter algum sucesso quando estes são materiais. Tende, porém, a encalhar quando são iminentemente pessoais e sociais, quando não é apenas questão de mobilizar recursos e valores “objetivos” mas convicções e vontades. Confrontados com esta dificuldade, os tecnocratas democratas tendem a transformar-se em tecnocratas autocratas. Convencidos, não convencem, obrigam.
Margens. Passo a passo

Pé ante pé, o blogue Margens lembra a neta: de ensaio em artigo, começa a andar. Devagar, para não cansar, vai plantando um pomar de ideias, uma horta de novidades, com alguns morangos silvestres a insinuar-se nas bordas dos regos de água. Sem chavões, sem palas, sem filtros, sem revisões cegas… Mas com nervo, fibra e autoria assumida. Folhas soltas que ressoam num espelho d’água danças envolventes que lembram uma folia portuguesa. “A coisa prometendo”, aguarda-se, com alguma ansiedade, a estreia, a pegada pioneira, dos demais autores deste pequeno círculo, um ninho de iniciativas, dedicado à cultura, à arte e ao imaginário.
O artigo mais recentes, Viúvas de Braga… sem filtros, da Anabela Ramos, é uma delícia. Abre o apetite, dá vontade de experimentar comer viúvas. E mais não digo! Está acessível no seguinte endereço: https://margens.blog/2023/04/20/viuvas-de-bragasem-filtros/.
Avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Relatórios

O blogue Margens acaba de publicar uma análise das repercussões da Capital Europeia da Cultura em 2012 no desenvolvimento do concelho de Guimarães, volvidos dez anos, da autoria de Samuel Silva, que integrou a equipa, que coordenei, do Instituto de Ciências Sociais responsável, a seu tempo, pela avaliação dos impactos sociais e culturais do evento. Pelo interesse, oportunidade e lucidez, recomendo o artigo E tudo se transforma? (https://margens.blog/2023/04/15/e-tudo-se-transforma/).
Aproveito o ensejo para partilhar dois relatórios, em português e inglês, da avaliação dos impactos económicos e sociais da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, publicados em 2012 e 2013: intercalar (fevereiro de 2013) e final (setembro de 2013).
Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Intercalar – Fevereiro 2013 – Universidade do Minho:
Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura. Impactos Económicos e Sociais. Relatório Final – Setembro 2013 – Universidade do Minho:
O Homem sem Qualidades e a Banalidade do Mal
O primeiro de abril também é dia de persistir na aproximação da verdade.

“O problema com um criminoso nazista como Eichmann é que ele insistia em renunciar a qualquer traço pessoal. Como se não tivesse sobrado ninguém para ser punido ou perdoado. Repetidas vezes ele protestava rebatendo as questões da promotoria dizendo que não tinha feito nada por iniciativa própria. Que jamais fizera algo premeditadamente para o bem ou para o mal. Apenas cumprira ordens. Esta desculpa típica dos nazistas torna claro que o maior mal do mundo é o mal perpetrado por ninguém. Males cometidos por homens sem qualquer motivo, sem convicção, sem razão maligna ou intenções demoníacas. Mas seres humanos que se recusam a ser pessoas. E é este fenómeno que eu chamei a ‘banalidade do mal’ (Hannah Arendt).