Archive | Dezembro 2016

Um ano novo cheio de ideias próprias!

 

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Ano novo, cabeça nova. A gata não se engana: é tempo de cuidar das ideias. Coitada da gata! Alvo de violência simbólica! Estou a pensar enveredar pela carreira de artista. Já são 35 anos de carreira académica. Vou fazer instalações. Esta, com uma gata sábia com um rolo de papel higiénico na cabeça, chama-se: Upside down 3. Para compensar, dedico uma música à minha gata. Chama-se Dueto Para Gatos, atribuído a Rossini, mas que, de facto, resulta de uma compilação de excertos das suas óperas.

Discriminação in utero

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AMCV – Associação de Mulheres Contra a Violência

Assim começa a discriminação.

“Já chegaram os resultados dos testes. O vosso bebé tem uma condição genética que pode suscitar vários desafios: preconceito, discriminação, violência física, psicológica, sexual, violação, sequestro, vinda forçada para o mercado (…) sexual. O vosso bebé é do sexo feminino. É uma rapariga”

Pressupõe-se que os bebés que nascem com outra “condição genética” não estão expostos a estes desafios? Negligenciáveis, não serão! É urgente enfrentar a violência independentemente da “condição” em que a vítima nasce.

Anunciante: AMVC – Associação de Mulheres Contra a Violência. Agência: FUEL LISBOA. Direcção: Fred Oliveira. Portugal, Dezembro de 2016.

Desenganos

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O esquema adoptado por estes anúncios é corrente. Fabricam-se expectativas até à caricatura e remata-se com uma inversão de sentido bem humorada: os pais alheam-se da performance dos filhos; o avô, afinal, podia dispensar o inglês.

Estima-se em 95% os residentes do Reino Unido que falam inglês como primeira língua. Os restantes falam quase todos inglês como segunda língua. Existem, porém, minorias linguísticas. Por exemplo, as línguas da Ásia do Sul (2,7%) e outras línguas europeias tais como o italiano, o polaco, o grego e o turco (Fonte: http://www.bbc.co.uk/languages/european_languages/countries/uk.shtml). Se não me engano, para azar, ou sorte, do avô, os netos falam polaco como primeira língua. Ao aprender inglês, o avô não perdeu tempo (o anúncio é de uma escola de línguas). O inglês é a língua franca do planeta! No mundo, 942 milhões de pessoas falam inglês como primeira língua (339 milhões) ou como segunda língua (603 milhões). Menos, no entanto, que o mandarim, falado por 1 090 milhões de pessoas. O seguinte gráfico foi construído a partir da informação facultada pela Wikipedia, com base na edição 2015 do Ethnologue – SIL International (https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_languages_by_total_number_of_speakers).

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Línguas mais faladas no mundo (em milhões) – Ethnologue 2015.

Dois ou três apontamentos: cerca de 13% da população mundial fala inglês como primeira ou segunda língua; o português ainda é a sexta língua mais falada no mundo; cerca de 11% da população mundial fala uma língua ibérica (português ou espanhol). Em suma, fica a impressão de que o inglês não é a língua do mundo; é, outrossim, a língua do poder no mundo.

Marca: Canal +. Título: Dads. Agência: BETC. Direcção: Martin Werner. França, Abril 2016.

Marca: Allegro. Título: English. Agência: Bardzo Sp. z o.o. Warsaw. Direcção: Jesper Ericstam. Polónia, Novembro 2016.

Perfeição

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Perfeito é aquilo que nunca precisará de ser refeito (André Gide. Oeuvres complètes. 1933).

Duvidava da perfeição até encontrar este anúncio. Perfeito é algo que se perfez. Perfazer significa “conduzir qualquer coisa até ao seu completo desenvolvimento” ou “completar uma soma até que não falte nada”. Pois este anúncio perfez-se: tem tudo e não lhe falta nada.

Kate e Peter estão talhados um para o outro, mas não se conhecem. O cão dela chama-se Robin; o cão dele, Hood. Os sapatos prediletos de Kate foram desenhados pelo bisavô de Peter. O verso tatuado no braço de Kate pertence à canção preferida de Peter. Ela está a ler “Growing fruits”, ele, “Preserving fruits”. Quando ela veste azul, ele azul veste… O próprio ambiente coincide. Os cães condizem com os donos, ou vice-versa. Os quadros encaixam uns nos outros e a realidade encaixa-se nos quadros. E as cores? Não cansam de se casar umas com as outras. Mas Peter e Kate, apesar de tão próximos, permanecem alheios um ao outro. Até que o milagre do amor acontece. Uma alcoviteira? Uma flecha de Cupido? Uma agência de encontros? O mensageiro foi um brinco da Tous. Kate e Peter viram-se e, como previsto, apaixonaram-se. O todo ficou composto. Não são daqueles casais que começam perfeitos e acabam desfeitos. A perfeição existe, vi-a com os meus olhos. É um anúncio publicitário, onde tudo se harmoniza sem vestígio de falha. Esta história, mais do que terna, é geométrica. Com a actriz Gwyneth Paltrow, vencedora de um Óscar em 1998.

Marca: Tous. Título: Tender Stories Nº5. Agência: SCPF Madrid. Direcção: Victor Carrey. Espanha, Novembro 2016.

Em companhia da morte

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“Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar “aqui cheira a fôlego vivo”! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: “O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!” A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas. (Guimarães) (…)
Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, “para eles não virem comer as migalhas que ficaram na mesa”. No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou, e não se levanta a mesa que fica posta toda a noite” (Pedroso, Consiglieri, Tradições Populares Portuguesas, Braga, Edições Vercial, 2010-2012, p. 102-103).

A fronteira entre o mundo da vida e o mundo da morte constitui um dos temas mais complexos da relação com a morte. O que parece um abismo é, afinal, uma ponte, uma zona de contrabando macabro. A morte assombra os vivos e os mortos mantêm uma centelha de vida (fantasmas, almas penadas, mortos-vivos). Proliferam as crenças e os testemunhos sobre os prenúncios de morte, tais como os acompanhamentos ou as procissões de defuntos. Carmelo Lisón-Tolosana dedica uma parte da Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Akal, 1971) a este fenómeno conhecido na Galiza por “la santa compaña”. Muitas das lendas estudadas por Lisón-Tolosana também existiam na paróquia da minha infância.

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George Barros. Procissão dos Mortos. Brasil.

Se bem me lembro, um acompanhamento é uma procissão de almas de mortos, eventualmente de vivos, que ocorre normalmente de noite. Confina-se ao território da paróquia, que delimita demarcando uma espécie de comunidade de vivos e de mortos. A procissão é encabeçada por um vivo que leva uma cruz e o caldeiro de água benta. Para o comum dos mortais, a procissão não é visível, mas pode ser sensível: aragem, frio, cheiro a velas, som de passos… Existe o risco de um vivo ser incorporado na procissão. Uma forma de o evitar consiste em traçar um círculo no chão e deitar-se com o rosto virado para baixo até a procissão passar. Os vivos que encabeçam as procissões carecem ser substituídos. De outro modo, empalidecem, definham e morrem. Embora o comum dos mortais não consiga ver o acompanhamento, existem excepções, pessoas que, vendo a procissão, se inteiram das próximas mortes. Não é raro as pessoas “sentirem” a passagem do acompanhamento. Muitos o admitem. Há relatos aterradores: um morto da procissão deu uma vela a uma pessoa; ao acordar, não tinha uma vela mas um osso do fémur. Na minha paróquia “sabia-se” quem tinha o fado de ver os acompanhamentos e a sina de antever os mortos. Não eram, precise-se, figuras fictícias: tinham rosto e nome. São crenças, mas para quem acredita são verdades.

Vêm estas curiosidades a propósito do documentário galego Em Companhia da Morte, de 2011 (também acessível em http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2014/11/as-gentes-de-castro-laboreiro-e-os.html), que, durante 29 minutos, dá voz ao saber e à experiência de mulheres de Castro Laboreiro no que diz respeito a acompanhamentos e outros anúncios da morte.

Em Companhia da Morte. filmado por Vanessa Vila Verde, João Aveledo e Eduardo Maragoto. Filmes de Bonaval. Galiza, 2011. Duração: 29 minutos.

Além do documentário, acrescento dois episódios do filme Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky: e Ave Maria, com música de Franz Schubert. Ambos lembram outros mundos.

Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky.

Fantasia (1940) de Walt Disney: Ave Maria, com música de Franz Schubert.

Reis Magos

De mago e de rei, todos temos um pouco
Assim como de sábio, de juiz e de louco
Adiantados, atrasados, parados ou sem alento
Guardamos sonhos maiores que o movimento (AG).

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Adoração dos magos. Sarcófago romano do séc. IV, proveniente do cemitério de Santa Inês. Museu Pio Christiano. Roma.

Journey of the Magi, álbum Barry & Beth Hall, A Feast of Songs: Holiday Music from the Middle Ages, 2002.

No friso de um sarcófago romano do séc. IV, figuram os três reis magos e respectivos camelos. Parecem clones. A estrela paira sobre a cabeça de Maria. Não há sinal do burro nem da vaquinha. O menino nasceu crescido. A música medieval, Journey of the Magi, é pequena mas encantadora.

As idades da vida

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01. Bartolomeus Anglicus. As seis idades do homem. Livre des propriétés des choses. 1480.

Para Pierre Bourdieu, “a juventude é apenas uma palavra”, ou seja, uma construção social arbitrária e, por acréscimo, polémica (Questions de Sociologie, Editions de Minuit, 1984). Anos antes, Philippe Ariès surpreendia ao afirmar que no Antigo Regime a infância e a juventude eram categorias praticamente inexistentes:

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02. Bartolomeus Anglicus. As três idades da vida. Le livre des propriétés des choses. 1480.

A sociedade do Antigo Regime “via mal a criança, e pior ainda o adolescente. A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje” (Ariès, Philippe, Historia Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Editora Ganabara, 1978, 1ª ed. 1973, p.10).

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03. Bartolomeus Anglicus. As quatro idades de um gentil homem. Le livre des propriétés des choses. 1480.

No início do século XX, Vilfredo Pareto pergunta quando começa a riqueza e quando chega a velhice. Ou seja, a partir de que valor uma pessoa se torna rica e a partir de que idade uma pessoa passa a velho? A Idade Média corrobora esta relatividade. A classificação das fases da vida é tudo menos consensual. Multiplicam-se as propostas. Consoante os autores e as abordagens, assim as idades da vida são três, quatro, sete ou, ainda, cinco, seis ou dez. Recorro a uma longa passagem do livro Uma História do Corpo na Idade Média, de Jacques Le Goff e Nicolas Truong (Lisboa, Teorema, 2005, pp. 79-81):

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04. Hans Baldung. As idades e a morte, c. 1540.

“As idades da vida na Idade Média relevam de um verdadeiro saber herdado da Antiguidade que o cristianismo irá interpretar num sentido muito mais escatológico, orientando a vida do homem para a história da salvação. (…)

O número 3 é o proposto por Aristóteles que, na Retórica, considera que a vida é composta por três fases: crescimento, estabilidade e declínio. Um arco biológico em que a idade adulta é o topo: “Todas as qualidades úteis que a juventude e a velhice tem separadamente, a maturidade possui-as juntas; mas em relação aos excessos e defeitos fica-se pela meia e conveniente medida” (…)

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05. Hans Baldung (1485-1545). Três idades da mulher e a morte. 1510.

O número 4, o mais importante na Idade Média, provém do filósofo grego Pitágoras que, segundo Diógenes Laertes, “divide a vida do homem em quatro partes, concedendo a cada parte vinte anos”. A estes quatro segmentos correspondem os quatro humores descritos na medicina de Hipócrates: a criança é húmida e quente, o jovem quente e seco, o homem adulto seco e frio, o velho é frio e húmido (…)

Hans baldung. O caminho para a morte.

06. Hans baldung. O caminho para a morte.

O número 7 é igualmente herança grega, retomada por Isidoro de Sevilha, que distingue o período que vai do nascimento aos sete anos (infantia), dos sete aos catorze anos (pueritia), dos catorze aos vinte e oito anos (adulescentia), dos vinte oito aos cinquenta anos (juventus), dos cinquenta aos sessenta anos (gravitas), depois dos sessenta (senectus) e para além disso com a palavra senium que corresponde à senilidade.

Quanto às cinco e seis idades da vida, são um legado dos Padres da Igreja. A Idade Média inventa apenas as doze idades da vida (…) A Idade Média conserva portanto o biologismo dos Antigos, mas ultrapassa-o ou atenua-o através de uma releitura simbólica. Os cristãos já não falam do declínio, mas de jornada contínua para o reino de Deus. Segundo Agostinho, o velho é mesmo considerado um novo homem que se prepara para a vida eterna.”

7. Hans Baldung. As Sete Idades da Mulher. Início do séc. XVI.

07. Hans Baldung. As Sete Idades da Mulher. Início do séc. XVI.

Os esquemas medievais relativos às idades da vida não eram encarados de um modo rígido. Um mesmo artista podia contemplar na sua obra esquemas distintos. Hans Baldung tem quadros com três (Figuras 4 e 5), cinco (Figura 6) e sete (Figura 7) idades da vida; por seu turno, Bartolomeu Anglicus fez gravuras com três (Figura 2), quatro (Figura 3) e sete (Figuras 1 e 8) idades da vida.

10. Bartolomeus Anglicus. As sete idades do homem. 1510.

08. Bartolomeus Anglicus. As sete idades do homem. 1510.

Ao contrário dos séculos seguintes, da modernidade, o homem medieval esquiva-se à representação aristotélica do curso da vida como um “arco biológico”, em que o adulto ascende ao topo e o idoso desce para o degrau mais baixo, próximo da morte  (Figuras 9 e 10). Nas imagens medievais, o idoso é colocado no mesmo patamar que o adulto (ver Figuras 1, 4, 5, 7 e 8).

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09 As idades do homem. Impresso por De Vosthem. Finais do séc. XVI.

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10. Anónimo. O percurso de vida do homem nas suas diferentes idades. Séc. XIX.

Filhos da madrugada

“O primeiro pássaro pega a minhoca, mas o segundo rato fica com o queijo” (Provérbio).

O homem medieval cresce até atingir um planalto em que o adulto e o idoso permanecem à mesma altura até à morte. A Idade Moderna altera esta representação do percurso da vida: ascensão até ao topo adulto e declínio até ao túmulo. Os dois lados da curva não têm o mesmo valor: o esquerdo é agradável e pujante, o direito é sofrido e frágil…

Hans von Marées. Die Lebensalter, 1877-8. Alte Nationalglerie, Berlin.

11. Hans von Marées. As Idades, 1877-8.

No mundo contemporâneo, continuamos a nascer, crescer, envelhecer e morrer. Muda, porém, a experiência e a representação do percurso da vida. Em Portugal, a esperança de vida rondava, em 1950, os 56 anos; em 2015, ascende aos 81 anos (fontes: OCDE, 1988, Le vieillissement social: conséquences pour la politique sociale, Paris; e INE, PORDATA). O “entardecer da vida” (Leandro, Maria Engrácia, “Assumir o entardecer da vida: novas atitudes se impõem”, Cadernos do Noroeste, Vol. 4, Nº 6-7, pp. 359-367) alonga-se. Nunca houve tantos idosos nas sociedades ocidentais. Em Portugal, em 1971, 28,5% da população era jovem e 9,7%, idosa; em 2016, 14,1% da população é jovem e 20,9% idosa (INE, PORDATA). Durante este período, a população idosa duplicou. Em 1960, havia 27,3 idosos por cem jovens; em 2016, são 143,9 (Fonte: INE, PORDATA). E no entanto… Estamos em vias de descobrir um teorema novo: existem populações que quanto maiores são menos se enxergam.

Gustav Klimt. As três idades da Mulher. 1905.

12. Gustav Klimt. As três idades da Mulher. 1905.

Gustav Klimt. A morte e a vida. 1915.

13. Gustav Klimt. A morte e a vida. 1915.

A representação das idades da vida na arte contemporânea não é unívoca. A disposição das personagens no quadro As Idades (1877-8), de Hans von Marées (Figura 11), lembra Hans Baldung (As idades da vida, Figura 6) e Bartolomeus Anglicus (As idades da vida, Figura 8). Mas o idoso não está nem à altura dos adultos, nem a um passo da sepultura. Curva-se junto das crianças como que a fechar um ciclo. Gustav Klimt aglomera as idades da vida num único bloco humano (Figura 12) exposto à morte (Figura 13). As idades distinguem-se, não se isolam nem se alinham.

A contemporaneidade é a era do audiovisual, que inclui a publicidade, um meio massivo de comunicação.

O anúncio Champagne (2002), da Xbox, propõe uma paródia absurda da representação moderna das idades da vida: a trajectória alucinante de um ser humanodesde o ventre materno até à sepultura. Enquanto se desloca, envelhece.

Vídeo 1. Marca: Xbox. Título: Champagne. Agência: BBH. Direcção: Daniel Kleinman. Reino Unido, 2002.

Os objectos falam (https://tendimag.com/2015/03/21/objetos-que-falam/). Deixar os objectos falar foi um desafio na publicidade dos anos setenta. Recorde-se o controverso anúncio “Bouteille Phalique”, da Perrier, estreado em 1976: uma mão feminina afaga uma garrafa que cresce lentamente até sair um jorro de água gazificada (https://tendimag.com/2011/10/19/a-mulher-o-homem-e-o-objecto/). Anos antes, em 1970, a Guinness lança o anúncio Ages of Man. Num tapete rolante, desfilam, primeiro, um biberão, em seguida, uma garrafa com leite, uma garrafa de refrigerante, uma caneca e, por último, um copo com cerveja Guinness. A cada recipiente corresponde um grupo etário com acompanhamento sonoro a condizer. No último recipiente, surge a mão de um jovem adulto. As “idades do homem” do anúncio da Guinness resumem-se à primeira metade do percurso da vida: o lado solar. Não há sinal nem de velhice nem de último brinde.

Vídeo 2. Marca: Guinness. Título: Ages of man. Reino Unido, 1970.

No anúncio Evolution (2006), da Renault, uma criança gatinha para a rua. Cresce à medida que muda de cenário. Na parte final, após uma espécie de Parkour, transforma-se, quase adulto, num automóvel. O percurso de vida é, mais uma vez, suspenso a meio, longe da velhice.

Vídeo 3. Marca: Renault Clio. Título: Evolution. Agência: Publicis Brussels. Direcção: Style War. Bélgica, Março 2006.

Em meados de Outubro de 2017, saíram dois anúncios que versam sobre as idades da vida.

O anúncio português Como lavar roupa com melhores resultados, da Ariel, inicia com uma criança a gatinhar, depois a andar, culminando com uma mulher que corre e dá lugar a uma atleta equipada com as cores nacionais. Energia, eficácia, progresso e performance. Uma ascensão sem queda num guião assoberbado pelo amanhecer da vida.

Vídeo 4. Marca: Ariel. Título: Ariel apresenta A+. Agência: Carat Portugal. Portugal, Outubro 2017.

No anúncio Good Things Come to Those Who Don’t Wait, do Wall Street Journal, a referência às idades da vida é evidente. Começa com um nascimento, “antes do tempo”, num táxi. O bebé cresce, por etapas, a um ritmo vertiginoso. A cada etapa é associada uma actividade: mamar, andar, explorar, jogar, namorar, estudar, trabalhar, investir… A curva termina na juventude adulta. O anúncio desenha a sua própria teoria: uma escada que só sobe até ficar sem degraus. Configura um elogio da aceleração, da conquista, da pró-actividade e da juventude empreendedora. Um anúncio que sabe o que pretende: Don’t wait for opportunity. Create it. Get the news, tools and insight you need to get ahead—because good things come to those who don’t wait (Wall Street Journal).

Vídeo 5. Marca: Wall Street Journal. Título: Good Things Come to Those Who Don’t Wait. Agência: The&Partnership.USA, Direcção: Ellen Kuras. Outubro 2017.

Vídeo 6. Marca: Guinness. Título: Surfers – Good Things Come to Those Who Wait. Agência: Abbott Mead Vickers. Direcção: Jonathan Glazer. Reino Unido, 1999.

O mundo é uma Hidra e um Janus. Muitas cabeças com muitas faces. O anúncio Good Things Come to Those Who Don’t Wait dialoga com o anúncio Surfers – Good Things Come to Those Who Wait, da Guinness, considerado um dos melhores anúncios britânicos de sempre. A pressa de futuro e a espera do momento.A maioria destes anúncios tende a suspender ou eclipsar o  envelhecimento. As figuras 14 e 15 ilustram este jogo de sombras. Na imensidão da Internet, mal surgiu a primeira imagem com as idades da vida (Figura 14), logo outra a recompõe (Figura 15). A cada segmento etário a sua luz: solar na juventude, lunar na velhice.

Karthik – Goolgle +. Idades da Vida

14. Karthik – Goolgle +. Idades da Vida

Idades da Vida

15. Idades da Vida

Não sabemos que envelhecemos? Que a morte nos aguarda? Saber, sabemos, mas o que sabemos nem sempre é o que nos orienta. Saber que nos espera a morte não nos impede de viver segundo outras verdades. O fumador conhece os malefícios do tabaco, nem por isso deixa de fumar. Na vida, o saber vale muito; o desejo e a vontade, também.

Valoriza-se a alvorada; desvaloriza-se o crepúsculo. O homem contemporâneo não se quer “ser para a morte” (Martin Heidegger, Ser e tempo, 1927) mas filho da madrugada. Importa “agarrar a vida”, não a deixar fugir. “Viva a viva” é nome de filme, de canção, de barco, de hotel… É lema de uma visão do mundo. Viva a vida, morra a morte! O ser humano é um animal que se ilude. Nenhuma sociedade anterior se empenhou tanto no afastamento e no encobrimento da morte. Cavou-se a “separação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos” (Philippe Ariès, 1975. Essais sur l’histoire de la mort en Occident, Paris, Seuil). Isolam-se os cemitérios, aumenta “a solidão dos moribundos” (Elias, Norbert, A solidão dos moribundos,1972). Reduzem-se ou eliminam-se os sinais de luto. Da morte, conhecemos cada vez mais uma máscara, a máscara do carnaval dos vivos, como o Halloween, e a máscara dos media, como a saga Twilight. A máscara faz ecrã, encobre como um véu (Balandier, Georges, Le pouvoir sur scènes, 1980). Mesmo quando sentimos a foice a passar rente, insistimos em acreditar na lonjura da morte. O homem é propenso a acções não lógicas (Pareto, Vilfredo, 1916, Tratado de Sociologia). Reduzir a luz que incide sobre as últimas etapas da vida humana parece ser um vício das sociedades contemporâneas. Apagar a luz não adormece a morte. Desperta os fantasmas ( (Thomas, Louis-Vincent, 1979, Civilisation et divagations. Mort, fantasmes, science-fiction, Payot).

Para analisar um texto ou uma imagem importa ver o que lá está e o que lá não está. Também importa levantar, de vez em quando, o olhar para não esquecer o mundo.

Acentuar a juventude e a vida em detrimento da velhice e da morte releva de um imaginário, de uma encenação e de uma pragmática bastante influentes na sociedade actual. Não deixa, contudo, de ser uma perspectiva entre outras.

Apesar das tendências em contrário, a maioria dos idosos ainda é acompanhada na vida e na morte. Cuidamos dos vivos e dos mortos e a interacção entre gerações é uma realidade. As pessoas vão ao cemitério cuidar das sepulturas, rezar pelos mortos e estar com os vivos. Em muitas freguesias, o cemitério afirma-se como um dos principais locais de encontro. A necrologia é a parte mais consultada nos jornais regionais. Há concelhos com menos de 10 000 habitantes em que morre uma pessoa dia sim, dia não. Resulta difícil ignorar a morte.

Associada à psicanálise, a noção de analisador diz respeito a uma fonte de informação que nos dá acesso à natureza do todo. Não precisa de ser geral, nem tão pouco notória. Há alguns anos, numa freguesia portuguesa, o jardim de infância e a morgue coexistiam paredes a meias. Este caso, excepcional, revela até onde pode ir a proximidade entre a “comunidade dos vivos” e a “comunidade dos mortos”. “Um caso particular do possível” (Gaston Bachelard, La formation de l’esprit scientifique, 1934).

 

 

Animais animados

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Mordillo.

Gosto da obra do realizador brasileiro Sérgio Amon. Uma obra imensa. Nos seus anúncios costumam aparecer animações com animais: tartaruga, avestruz, formiga… Animais adoráveis em situações surpreendentes. O humor faz bem, aquece!

Marca: Brahma Beer. Título : Avestruz. Agência : F/Nazca S&S. Direcção: Amon. Brasil, 2003.

Marca: Philco do Brasil. Título: Formigas I. Agência : F/Nazca S&S. Direcção: Amon. Brasil, 1995.

Deflorestação

sos-mata-atlanticaEstou constipado. Os franceses distinguem vários tipos de constipação, um deles é a constipação do cérebro (rhume de cerveau). Creio que me calhou essa! As ideias saem nasaladas. Por precaução, vou escrever o mínimo.

O Brasil é uma potência ao nível da publicidade. Gosto destes dois anúncios de sensibilização contra o abate de árvores. Dirigidos por Sérgio Amon, são minimalistas, inteligentes e incisivos. A propósito, ainda há árvores de Natal que são pinheiros?

Marca: Jovem Pan FM. Título: Tree. Agência: AlmapBBDO. Direcção: Sérgio Amon. Brasil, 1998.

Anunciante: Fundação SOS Mata Atlântica. Título: People. Agência: F Nazca S&S. Direcção: Sérgio Amon. Brasil, 2002

Sem legendas

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Primeira Guerra Mundial. Trincheiras. Repouso.

O anúncio War, da Berlitz, destina-se ao público canadiano. Visa converter os franco-canadianos às vantagens do inglês. Desconheço a situação das nacionalidades no Canadá, mas ainda há algumas décadas, o Québec reclamava a independência. Em 1967, em Montréal, num discurso célebre, Charles Degaulle  proclama “Vive le Québec libre”. O anúncio War subentende uma relação de poder. Dedicado aos franco-canadianos, percorre o mundo. As insignificâncias do poder costumam tornar-se virais. A língua é o âmago da cultura e da identidade. Ferdinand de Saussure já sublinhava que uma língua é uma visão do mundo. A língua constrói-nos e com a língua construímos o mundo. A língua é o que temos de mais precioso. O essencial da indústria cinematográfica é norte-americano. Importa aprender inglês para ver os filmes sem ler as legendas. O predomínio de Hollywood não é recente. Vem, pelo menos, desde a Segunda Guerra Mundial. No entanto, nos anos sessenta, os filmes norte-americanos não assoberbavam as salas de cinema nem os canais de televisão europeus. Entretanto, o que sucedeu? O mesmo que noutros sectores como, por exemplo, a música ou a ciência: o predomínio anglo-saxónico. Mas também é de admitir a perda de capacidade de resposta por parte dos países europeus. Assisti à crise, ou declínio, do cinema francês nos anos setenta. Um dos principais motivos radicava na alteração da distribuição, decisiva no sector. De qualquer modo, continua a cavar-se o fosso entre os países que fazem o que lhes interessa e os países que fazem o que podem. Se quiser ver filmes de Hollywood sem legendas, fale inglês. Se pretender ler Fernando Pessoa sem dicionário, fale português. A desvalorização das línguas do continente europeu é uma desvalorização da sua cultura e da sua identidade, uma perda de poder. Caminhamos para um mundo monolingue, uma aberração na história cultural da humanidade. Em suma, um anúncio bem concebido, criativo e eficaz, que toma o garantido como certo.

Marca: Berlitz. Título: Sous-titres War. Agência: Rethink. Direcção: Jean-Marc Piché – Quatre Zéro Un. Canadá, Dezembro 2016.