Um ano novo cheio de ideias próprias!
Ano novo, cabeça nova. A gata não se engana: é tempo de cuidar das ideias. Coitada da gata! Alvo de violência simbólica! Estou a pensar enveredar pela carreira de artista. Já são 35 anos de carreira académica. Vou fazer instalações. Esta, com uma gata sábia com um rolo de papel higiénico na cabeça, chama-se: Upside down 3. Para compensar, dedico uma música à minha gata. Chama-se Dueto Para Gatos, atribuído a Rossini, mas que, de facto, resulta de uma compilação de excertos das suas óperas.
Discriminação in utero
Assim começa a discriminação.
“Já chegaram os resultados dos testes. O vosso bebé tem uma condição genética que pode suscitar vários desafios: preconceito, discriminação, violência física, psicológica, sexual, violação, sequestro, vinda forçada para o mercado (…) sexual. O vosso bebé é do sexo feminino. É uma rapariga”
Pressupõe-se que os bebés que nascem com outra “condição genética” não estão expostos a estes desafios? Negligenciáveis, não serão! É urgente enfrentar a violência independentemente da “condição” em que a vítima nasce.
Anunciante: AMVC – Associação de Mulheres Contra a Violência. Agência: FUEL LISBOA. Direcção: Fred Oliveira. Portugal, Dezembro de 2016.
Desenganos
O esquema adoptado por estes anúncios é corrente. Fabricam-se expectativas até à caricatura e remata-se com uma inversão de sentido bem humorada: os pais alheam-se da performance dos filhos; o avô, afinal, podia dispensar o inglês.
Estima-se em 95% os residentes do Reino Unido que falam inglês como primeira língua. Os restantes falam quase todos inglês como segunda língua. Existem, porém, minorias linguísticas. Por exemplo, as línguas da Ásia do Sul (2,7%) e outras línguas europeias tais como o italiano, o polaco, o grego e o turco (Fonte: http://www.bbc.co.uk/languages/european_languages/countries/uk.shtml). Se não me engano, para azar, ou sorte, do avô, os netos falam polaco como primeira língua. Ao aprender inglês, o avô não perdeu tempo (o anúncio é de uma escola de línguas). O inglês é a língua franca do planeta! No mundo, 942 milhões de pessoas falam inglês como primeira língua (339 milhões) ou como segunda língua (603 milhões). Menos, no entanto, que o mandarim, falado por 1 090 milhões de pessoas. O seguinte gráfico foi construído a partir da informação facultada pela Wikipedia, com base na edição 2015 do Ethnologue – SIL International (https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_languages_by_total_number_of_speakers).
Dois ou três apontamentos: cerca de 13% da população mundial fala inglês como primeira ou segunda língua; o português ainda é a sexta língua mais falada no mundo; cerca de 11% da população mundial fala uma língua ibérica (português ou espanhol). Em suma, fica a impressão de que o inglês não é a língua do mundo; é, outrossim, a língua do poder no mundo.
Marca: Canal +. Título: Dads. Agência: BETC. Direcção: Martin Werner. França, Abril 2016.
Marca: Allegro. Título: English. Agência: Bardzo Sp. z o.o. Warsaw. Direcção: Jesper Ericstam. Polónia, Novembro 2016.
Perfeição
Perfeito é aquilo que nunca precisará de ser refeito (André Gide. Oeuvres complètes. 1933).
Duvidava da perfeição até encontrar este anúncio. Perfeito é algo que se perfez. Perfazer significa “conduzir qualquer coisa até ao seu completo desenvolvimento” ou “completar uma soma até que não falte nada”. Pois este anúncio perfez-se: tem tudo e não lhe falta nada.
Kate e Peter estão talhados um para o outro, mas não se conhecem. O cão dela chama-se Robin; o cão dele, Hood. Os sapatos prediletos de Kate foram desenhados pelo bisavô de Peter. O verso tatuado no braço de Kate pertence à canção preferida de Peter. Ela está a ler “Growing fruits”, ele, “Preserving fruits”. Quando ela veste azul, ele azul veste… O próprio ambiente coincide. Os cães condizem com os donos, ou vice-versa. Os quadros encaixam uns nos outros e a realidade encaixa-se nos quadros. E as cores? Não cansam de se casar umas com as outras. Mas Peter e Kate, apesar de tão próximos, permanecem alheios um ao outro. Até que o milagre do amor acontece. Uma alcoviteira? Uma flecha de Cupido? Uma agência de encontros? O mensageiro foi um brinco da Tous. Kate e Peter viram-se e, como previsto, apaixonaram-se. O todo ficou composto. Não são daqueles casais que começam perfeitos e acabam desfeitos. A perfeição existe, vi-a com os meus olhos. É um anúncio publicitário, onde tudo se harmoniza sem vestígio de falha. Esta história, mais do que terna, é geométrica. Com a actriz Gwyneth Paltrow, vencedora de um Óscar em 1998.
Marca: Tous. Título: Tender Stories Nº5. Agência: SCPF Madrid. Direcção: Victor Carrey. Espanha, Novembro 2016.
Em companhia da morte
“Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar “aqui cheira a fôlego vivo”! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: “O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!” A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas. (Guimarães) (…)
Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, “para eles não virem comer as migalhas que ficaram na mesa”. No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou, e não se levanta a mesa que fica posta toda a noite” (Pedroso, Consiglieri, Tradições Populares Portuguesas, Braga, Edições Vercial, 2010-2012, p. 102-103).
A fronteira entre o mundo da vida e o mundo da morte constitui um dos temas mais complexos da relação com a morte. O que parece um abismo é, afinal, uma ponte, uma zona de contrabando macabro. A morte assombra os vivos e os mortos mantêm uma centelha de vida (fantasmas, almas penadas, mortos-vivos). Proliferam as crenças e os testemunhos sobre os prenúncios de morte, tais como os acompanhamentos ou as procissões de defuntos. Carmelo Lisón-Tolosana dedica uma parte da Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Akal, 1971) a este fenómeno conhecido na Galiza por “la santa compaña”. Muitas das lendas estudadas por Lisón-Tolosana também existiam na paróquia da minha infância.
Se bem me lembro, um acompanhamento é uma procissão de almas de mortos, eventualmente de vivos, que ocorre normalmente de noite. Confina-se ao território da paróquia, que delimita demarcando uma espécie de comunidade de vivos e de mortos. A procissão é encabeçada por um vivo que leva uma cruz e o caldeiro de água benta. Para o comum dos mortais, a procissão não é visível, mas pode ser sensível: aragem, frio, cheiro a velas, som de passos… Existe o risco de um vivo ser incorporado na procissão. Uma forma de o evitar consiste em traçar um círculo no chão e deitar-se com o rosto virado para baixo até a procissão passar. Os vivos que encabeçam as procissões carecem ser substituídos. De outro modo, empalidecem, definham e morrem. Embora o comum dos mortais não consiga ver o acompanhamento, existem excepções, pessoas que, vendo a procissão, se inteiram das próximas mortes. Não é raro as pessoas “sentirem” a passagem do acompanhamento. Muitos o admitem. Há relatos aterradores: um morto da procissão deu uma vela a uma pessoa; ao acordar, não tinha uma vela mas um osso do fémur. Na minha paróquia “sabia-se” quem tinha o fado de ver os acompanhamentos e a sina de antever os mortos. Não eram, precise-se, figuras fictícias: tinham rosto e nome. São crenças, mas para quem acredita são verdades.
Vêm estas curiosidades a propósito do documentário galego Em Companhia da Morte, de 2011 (também acessível em http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2014/11/as-gentes-de-castro-laboreiro-e-os.html), que, durante 29 minutos, dá voz ao saber e à experiência de mulheres de Castro Laboreiro no que diz respeito a acompanhamentos e outros anúncios da morte.
Em Companhia da Morte. filmado por Vanessa Vila Verde, João Aveledo e Eduardo Maragoto. Filmes de Bonaval. Galiza, 2011. Duração: 29 minutos.
Além do documentário, acrescento dois episódios do filme Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky: e Ave Maria, com música de Franz Schubert. Ambos lembram outros mundos.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Ave Maria, com música de Franz Schubert.
Reis Magos
De mago e de rei, todos temos um pouco
Assim como de sábio, de juiz e de louco
Adiantados, atrasados, parados ou sem alento
Guardamos sonhos maiores que o movimento (AG).

Adoração dos magos. Sarcófago romano do séc. IV, proveniente do cemitério de Santa Inês. Museu Pio Christiano. Roma.
Journey of the Magi, álbum Barry & Beth Hall, A Feast of Songs: Holiday Music from the Middle Ages, 2002.
No friso de um sarcófago romano do séc. IV, figuram os três reis magos e respectivos camelos. Parecem clones. A estrela paira sobre a cabeça de Maria. Não há sinal do burro nem da vaquinha. O menino nasceu crescido. A música medieval, Journey of the Magi, é pequena mas encantadora.
Animais animados
Gosto da obra do realizador brasileiro Sérgio Amon. Uma obra imensa. Nos seus anúncios costumam aparecer animações com animais: tartaruga, avestruz, formiga… Animais adoráveis em situações surpreendentes. O humor faz bem, aquece!
Marca: Brahma Beer. Título : Avestruz. Agência : F/Nazca S&S. Direcção: Amon. Brasil, 2003.
Marca: Philco do Brasil. Título: Formigas I. Agência : F/Nazca S&S. Direcção: Amon. Brasil, 1995.
Deflorestação
Estou constipado. Os franceses distinguem vários tipos de constipação, um deles é a constipação do cérebro (rhume de cerveau). Creio que me calhou essa! As ideias saem nasaladas. Por precaução, vou escrever o mínimo.
O Brasil é uma potência ao nível da publicidade. Gosto destes dois anúncios de sensibilização contra o abate de árvores. Dirigidos por Sérgio Amon, são minimalistas, inteligentes e incisivos. A propósito, ainda há árvores de Natal que são pinheiros?
Marca: Jovem Pan FM. Título: Tree. Agência: AlmapBBDO. Direcção: Sérgio Amon. Brasil, 1998.
Anunciante: Fundação SOS Mata Atlântica. Título: People. Agência: F Nazca S&S. Direcção: Sérgio Amon. Brasil, 2002
Sem legendas
O anúncio War, da Berlitz, destina-se ao público canadiano. Visa converter os franco-canadianos às vantagens do inglês. Desconheço a situação das nacionalidades no Canadá, mas ainda há algumas décadas, o Québec reclamava a independência. Em 1967, em Montréal, num discurso célebre, Charles Degaulle proclama “Vive le Québec libre”. O anúncio War subentende uma relação de poder. Dedicado aos franco-canadianos, percorre o mundo. As insignificâncias do poder costumam tornar-se virais. A língua é o âmago da cultura e da identidade. Ferdinand de Saussure já sublinhava que uma língua é uma visão do mundo. A língua constrói-nos e com a língua construímos o mundo. A língua é o que temos de mais precioso. O essencial da indústria cinematográfica é norte-americano. Importa aprender inglês para ver os filmes sem ler as legendas. O predomínio de Hollywood não é recente. Vem, pelo menos, desde a Segunda Guerra Mundial. No entanto, nos anos sessenta, os filmes norte-americanos não assoberbavam as salas de cinema nem os canais de televisão europeus. Entretanto, o que sucedeu? O mesmo que noutros sectores como, por exemplo, a música ou a ciência: o predomínio anglo-saxónico. Mas também é de admitir a perda de capacidade de resposta por parte dos países europeus. Assisti à crise, ou declínio, do cinema francês nos anos setenta. Um dos principais motivos radicava na alteração da distribuição, decisiva no sector. De qualquer modo, continua a cavar-se o fosso entre os países que fazem o que lhes interessa e os países que fazem o que podem. Se quiser ver filmes de Hollywood sem legendas, fale inglês. Se pretender ler Fernando Pessoa sem dicionário, fale português. A desvalorização das línguas do continente europeu é uma desvalorização da sua cultura e da sua identidade, uma perda de poder. Caminhamos para um mundo monolingue, uma aberração na história cultural da humanidade. Em suma, um anúncio bem concebido, criativo e eficaz, que toma o garantido como certo.
Marca: Berlitz. Título: Sous-titres War. Agência: Rethink. Direcção: Jean-Marc Piché – Quatre Zéro Un. Canadá, Dezembro 2016.