Objectos que falam
Costumo abordar Os Embaixadores (1533), de Hans Holbein, nas aulas de Sociologia da Arte. Por vários motivos:
– Trata-se de uma pintura com segredo, à semelhança de O Casal Arnolfini (1434; Figura 2), de Jan van Eyck, e de As Meninas (1656: Figura 3), de Diego Velasquez;
– É um exemplo de uma obra teórica: Hans Holbein, ao pintar, propõe uma arte da pintura;
– Inclui uma das anamorfoses mais bem conseguidas e mais célebres da história da arte;
– Ilustra quão despropositada pode ser uma sociologia de uma obra de arte que não cuide da respectiva interpretação. Por extensão, a sociologia da arte pressupõe o conhecimento da arte.
Este texto apoia-se na análise de Os Embaixadores proposta por Omar Calabrese (“A intertextualidade em pintura. Uma leitura dos Embaixadores de Holbein”, in Como se lê uma obra de arte, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 35-68). Limitamo-nos a resumir partes do artigo de Omar Calabrese. Este resumo não contempla nem a gama de intertextualidade desenvolvida por Calabrese, a partir de Gérard Genette (intertexto, paratexto, metatexto, arquitexto e hipertexto), nem a totalidade dos nove estádios considerados por Omar Calabrese (pode aceder-se ao livro no seguinte endereço: https://pt.scribd.com/doc/89695400/calabrase-omar-como-se-le-uma-obra-de-arte). Se algum contributo existe, reside nas imagens mais nítidas do que as reproduções do livro de Omar Calabrese.
Os Embaixadores é um quadro de grandes dimensões (207 cm X 209,5 cm) pintado em 1533, com extrema minúcia, por Hans Holbein. É uma das atracções da National Gallery, em Londres. Durante quatro séculos, a identidade das figuras retratadas permaneceu desconhecida, suscitando inúmeras interpretações e polémicas. Foi preciso aguardar pela alvorada do século XX para reconhecer os franceses Jean de Dinteville (1504-1555; à esquerda) e Georges de Selve (1508-1541; à direita). Ironicamente, a descoberta acabou por revelar que o quadro continha as pistas ou chaves suficientes para a resolução do enigma.
Edward T. Hall escreve que o espaço, tal como o tempo, fala. Pois, os objectos, nas telas de Hans Holbein, também falam. Comecemos com o contexto. Uma sala solene, com cortinados de seda e o chão a lembrar o da Abadia de Westminster, lugar de encontro das elites. Para completar, um tapete oriental, símbolo de luxo e grandeza (Holbein incluiu o tapete em vários retratos, incluindo O Retrato do Mercador Georg Gisze, 1532 – Figura 04).
As figuras retratadas ostentam sinais de estatuto elevado: a pele de arminho, a medalha e o punhal de Jean de Dintville (Figura 05); o traje e as luvas, de Georges de Selve (Figura 06). As luvas eram, naquele tempo, um símbolo de estatuto. Atente-se, por exemplo, nos retratos com as luvas calçadas, de Albrecht Dürer (Figura 07), com as luvas realçadas na mão, de Jan Gossaert (Figura 08), ou com penas uma luva calçada, de Ticiano (Figura 09).
Estamos, portanto, perante dois membros da alta sociedade, um nobre e um eclesiástico. Neste momento, desconhece-se a respectiva identidade. Holbein esconde e mostra as pistas pelo quadro. No punhal do personagem da esquerda, está gravado “AET SVAE 29”: a sua idade é 29 (Figura 10). No livro em que a figura da direita se apoia, está escrito “AETA IS SVAE 25” (Figura 11). Pode inferir-se que têm 29 e 25 anos de idade. De facto, Jean de Dinteville e Georges de Selve tinham essa idade em 1533. E ambos residiram em Londres nesse ano. O medalhão que Jean de Dinteville traz ao pescoço pertence à ordem de São Miguel, uma condecoração concedida pelo rei de França, Francisco I. Por sua vez, uma posição de relevo na Igreja assumida por uma pessoa tão jovem representava algo de excepcional. George de Selve foi nomeado bispo de Lavour com dezoito anos e era um embaixador papal influente.
Os objectos dispostos entre os dois personagens são significativos: em cima, predominam instrumentos ligados à astronomia (Figura 12). Em baixo (Figura 13), um alaúde, flautas, um livro de cânticos, um compasso, um livro de aritmética (Figura 14) e um mapa-mundo. Estes objectos convocam a astronomia, a geometria, a aritmética e a música, áreas que compunham o quadrívio, modalidade de ensino alternativa ao trívio (retórica, dialéctica e gramática). Estes objectos sugerem um elevado apreço pela ciência. Jean de Dinteville estudou quadrívio. Alguns instrumentos científicos foram, provavelmente, emprestados por Nikolau Kratzer, matemático, astrónomo e horologista, amigo de Hans Holbein e Thomas More. Parte dos instrumentos integra o retrato de Nikolau Kratzer, pintado por Hans Holbein cinco anos antes, em 1528 (Figura 15).
Revelados pelos objetos, estes segredos são suficientes para identificar as pessoas retratadas. Mas Hans Holbein não regateia indícios. Em cima, no globo celeste, um galo luta contra outra ave (Figura 16). Uma alusão à proveniência francesa. Em baixo, no mapa-mundo, os barcos seguem a rota da circum-navegação de Fernão de Magalhães (Figura 17). Mais uma alusão à ciência. No mesmo mapa-mundo surge a pista mais subtil. São nomeados apenas os países e as regiões, com a excepção de Polisy, terra natal de Jean de Dinteville (Figura 18). Por último, o livro de cânticos contém dois coros de Lutero (Figura 19). George de Selve, embora católico, era admirador de Lutero, recriminando-o, contudo, por causa do cisma.
Segredo a segredo, caracterizam-se o contexto e os personagens. Falta a acção. Jean de Dinteville, embaixador do rei de França, e George de Selve, embaixador papal, estavam em Londres com a missão de propiciar uma aliança com a Inglaterra contra a Espanha. Uma corda do alaúde está quebrada (Figura 19) e o estojo está voltado para baixo (Figura 20). Desafinação, silêncio.
A enorme mancha na parte inferior do quadro é, afinal, uma anamorfose. Focada de um ponto à direita do quadro (Figura 21) ou, de frente, através de um copo com água (Figura 22), a mancha transforma-se numa caveira: uma vanitas (Figura 23). Os embaixadores não morreram, mas fracassaram. Não cumpriram a missão. Refira que o tema da morte é recorrente na obra de Hans Holbein: recorde-se, por exemplo, a Dança da Morte, publicada em 1538 (Figura 24).
Numa sociedade rendida ao Código da Vinci e a livros, filmes e videojogos similares, o quadro Os Embaixadores, de Hans Holbein, persiste como uma obra-prima mestre no segredo e na aparência.
- 01. Hans Holbein. The Ambassadores. 1533.
- 02. Jan van Eyck. Casal Arnolfini. 1434.
- 03. Diego Velasquez. Las niñas. 1656.
- 04. Hans Holbein. Retrato do mercador Georg Gisze. 1532
- 05. Hans Holbein. Dinteville. Punhal e medalha
- 06. Holbein. The Ambassadors. As luvas de Georges de Selve
- 07. Albrecht Dürer . Autoretrato com luvas. 1498
- 08. Jan Gossaert-Mabuse. Gentlman. Ca. 1530
- 09. Ticiano. Homem com uma luva, c. 1520.
- 10. Hans Holbein. The Ambassadors. Punhal. Idade
- 11. Holbein. The Ambassadors. Selve Age. Book
- 12. Holbein. The Ambassadors. Centro alto. Astronomia e Geometria
- 13. Holbein. The Ambassadors. Centro baixo. Aritmética, Geografia e Música.
- 14. Holbein. The Ambassadores. Arithmetic Book.
- 15. Hans Holbein. Nikolau Kratzer. 1528
- 16. Holbein. The Ambassadores. Globo celeste. Galo.
- 17. Holbein. The Ambassadors. Mapa com rota da circum-navegação
- 18. Holbein. The Ambassadors. Globo. Polisy.
- 19. Holbein. The Ambassadors. Alaúde e livro de cânticos
- 20. Holbein. The Ambassadors. Estojo do alaúde
- 21. Holbein. The Ambassadors. Anamorfose.
- 22. Holbein. The ambassadors. Anamorfose com copo.
- 23. Holbein. The Ambassadors. Vanitas. Anamorfose. Vanitas
- 24. Hans Holbein. Dança da Morte. 35 – Recém-casada. 1538
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