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Não esqueças onde vais: Memória e idade

Yuichi Ikehata. Fragment of LTM6. Série Long Term Memory. 2015

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (Ortega y Gasset, José, Meditaciones del Quijote, Madrid, Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1914, pp. 43-44).

Em Moledo, dá-me para escrever textos como este. Como sugere Ortega Y Gasset, convém atender às circunstâncias mais ínfimas e mais íntimas. Com escassa mobilidade, debato-me com um computador ultrapassado com som e imagem péssimos. Dedico-me, assim, a escrevinhar textos de média reflexão como este sobre “A memória e a idade” ou, há duas semanas, as “Canções de luto por vivos” (https://tendimag.com/2022/06/05/cancoes-de-luto-por-vivos/). Uma escapatória. Uma tábua de salvação.

Tornou-se proverbial associar a memória à idade. As pessoas maiores são, por excelência, os arquivos vivos. Com o tempo, acumula-se e destila-se o vivido. Será? Não me atardo sobre a degenerescência da memória. Limito-me à memória como actividade e produto social. A vida e a memória não são coisas. Nem a primeira é um conjunto de segmentos, nem a segunda o respectivo repositório. Não tinha completa razão Sherlock Holmes ao apoquentar-se com a selecção das recordações; na sua opinião, a memória é assimilável a uma caixa que depressa se enche; a cada recordação que entra, outro sai. Não, a memória não é um depósito de elementos, antes uma teia, uma agência, de virtualidades, “cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 1670. Artigo XVII).  A vida é acção, experiência e abertura e a memória presentificação e criação. Um simples momento pode inspirar um oceano e a eternidade reduzir-se a uma gota A memória não condiz com a extensão do calendário. Quando muito, pode comportar episódios mais antigos. Não se pode assumir que longevidade seja sinal ou sinónimo de maior biografia ou memória.

POTÊNCIA E SONHO. Marca: TC Bank. Título: Dream Rangers. Agência: Ogilvy Taiwan. Direcção: Thanonchai. Taiwan, Março 2011. Legendado em inglês.

A memória remete para o passado mas actualiza-o e reforma-o no presente. É potência, emergência e protensão. Apresenta-se debruçada para o futuro. Dependente das condições, os encontros e os diálogos tendem a facilitá-la. A interacção social propicia a comunhão e a partilha de memórias. Não cessa de nos mergulhar no passado para nadar no presente e no futuro. Chamemos a esta comunhão e partilha de memórias comemoração (recordar em conjunto). Quem tem mais probabilidades de comemorar? De desfrutar de encontros? A idade aumenta as hipóteses de isolamento e diminui as oportunidades de intercâmbio e comemoração. O anúncio Come Home propõe uma ilustração extrema: um idoso simula a própria morte para forçar a visita dos filhos.

AUSÊNCIA E COMEMORAÇÃO. Marca: Edeka. Título: Come Home. Agência: Jung von Matt (Hamburg). Direcção: Alex Feil. Alemanha, Novembro 2015. Legendas em português.

“Toda a gente sabe” que as pessoas maiores “vivem mais do/no passado”. Para trás, uma vida inteira, para a frente, uma promessa incerta. Voltamos a cair na tentação de geometrizar o vivido.

Com o avançar da idade o presente tende a ser cada vez mais pautado por rotinas, que, apesar dos preconceitos, comportam uma inestimável espessura vivencial. Com os anos, mirra o restolho do passado, desbota o mapa do futuro e aumenta a repetição cíclica. Conjugar rotina e memória aproxima-nos de um oxímero, de uma espécie de memória automática do presente.

A orientação temporal da mente é variável. A bússola aponta para horizontes ora para o passado ora para o futuro. Por exemplo, em algumas comunidades, à memória outonal do verão, sucede o alheamento do inverno e a esperança da primavera. Uma pessoa pode recordar a última visita dos emigrantes como um cão que rilha um osso e acalentar a próxima como um pássaro que faz o ninho (Gonçalves, Albertino, “O Presente Ausente: O Emigrante na Sociedade de Origem”, Cadernos do Noroeste, vol. I – nº1, 1987, pp. 7-30; e Gonçalves, Albertino & Gonçalves, Conceição, “Uma vida entre parênteses. Tempos e ritmos dos emigrantes portugueses em Paris”, Cadernos do Noroeste, vol. 4 – nº6-7, 1991, pp. 147-158). Não se pode, portanto, afiançar que na vida das pessoas, mesmo as maiores, predomina o passado. Nem a minha experiência nem a alheia me permitem decifrar este enigma. Arrisco, em contrapartida, que com a idade cresce o sentimento e a experiência da ausência, e com esta, a memória dos ausentes, daqueles que “estão fora” e daqueles que “partiram para não mais voltar”, inclusivamente para o Além. Esta presença da ausência e dos ausentes torna-se obsessiva. Trata-se de um tipo de memória que afeta, naturalmente, mais as pessoas maiores.

Assim como, com a idade, tende a definhar a socialização, também tende a encolher o espaço vital. Cada vez se restringe mais a um espaço fixo exíguo, porventura a uma mera divisão da habitação. Diminuem a expansão, exploração e deambulação, em suma, a exposição a estímulos e rastilhos da memória. A dança do passado tende a evoluir num circuito fechado solitário, com sobre investimento nos marcadores disponíveis, por exemplo, as fotografias e as lembranças. Corresponderá este cenário a um acréscimo da memória e do seu exercício? Talvez da sua importância vivencial. Quando tudo tende a desaparecer, restam, como alternativa, os fósseis de uma vida. Por uma vez, concordo com os médicos e os cientistas: uma das principais ameaças à memória das pessoas maiores reside não no excesso mas na falta de exercício.

Subsiste, enfim, uma derradeira dimensão, propensa, aliás, a ser parceira da memória da ausência. Para além dos testemunhos, das pessoas e dos acontecimentos, a vida também acolhe a imaginação. É real. Fabrica-se, abraça-se, sente-se. “É virtual nos seus fundamentos e real nas suas consequências”. Refém do isolamento, o novo eremita entrega-se a sonhos e pesadelos. Cria mundos, interpreta personagens e inventa histórias. Experiencia-os. Salta de uns para outros. Pelo caminho, ficam as carícias e as cicatrizes do imaginado, tão familiares e sensíveis como as do vivido.

“Se sonhássemos todas as noites a mesma coisa, ela nos afectaria tanto quanto os objectos que vemos todos os dias; e, se um artesão estivesse certo de sonhar, todas as noites, durante doze horas, que é rei, creio que ele seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse, todas as noites, durante doze horas, que era artesão” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 1670. Artigo XIII).

The Piano. Animação: Aidan Gibbons. Música: Yann Tiersen. Junho 2005.

Duvido que com a idade aumente a memória ou o seu exercício. Acredito que a passagem do tempo tende a diferenciá-los: propende a cavar a ausência e a beber no imaginário.

Como sociólogo e como pessoa, encaro os relatos de vida como a mais compensadora das fontes. Gosto de remexer no passado e partilhar experiências. No tempo em que costumava passar as férias e os fins de semana em Melgaço, comprazia-me a registar “testemunhos e confidências” de pessoas maiores, individualmente ou em grupo. Assentava-me bem o papel de regenerador, provocador e esquentador de memórias. E de vidas…

Pequeno almoço

Paul Cézanne. Nature morte. Pots, bouteille, tasse et fruits. Alte Nationalgalerie, Berlin.

De mansinho, com uma música a querer conduzir a algum lugar.

Robert Schumann. Kinderszenen, Op. 15: No. 7, Träumerei (Arr. T. Frost for Orchestra) · Eugene Ormandy · The Philadelphia Orchestra. Originally released 1966.

O mundo a duas cores

A tentação do Cristo pelo diabo (1ª e 2ª tentações). Detalhe do teto em madeira pintada, c. 1130.40. Zillis Grisons, Suisse, Igreja de Saint-Martin.

O maniqueísmo é uma opção frequente na publicidade que aposta em apresentar um mundo a duas cores. No caso dos anúncios filipinos Cream e Watch, da empresa alimentar Jollibee, exorciza-se, ridicularizando, a ambição desmedida, ilusão, o dispendioso e o egoísmo fatores de uma felicidade. Oposta, a marca Jollibee “endorciza” a sensatez, o acessível e a família, garantes de uma felicidade verdadeira. O creme da juventude e o relógio do futuro contra a satisfação no presente.

A pandemia pode proporcionar-se como tema oportuno para uma publicidade omnívora. O anúncio singapuriano A message from the future, também da Jollibee, coloca-nos perante dois cenários que nos tocam, dentro e fora da pandemia: um mundo cinzento, claustrofóbico, solitário e doloroso versus um mundo colorido, aberto, feliz e familiar que ultrapassa a pandemia, que a Jollibee afasta e aproxima, respetivamente.

Marca: Jollibee. Título: Cream. Agência: GIGIL Philippines. Direção: Marius Talampas. Filipinas, janeiro 2022.
Marca: Jollibee. Título: Watch. Agência: GIGIL Philippines. Direção: Marius Talampas. Filipinas, janeiro 2022.
Marca: Jollibee. Título: A Message from the Future. Agência: BBH Singapore. Direção: Law Chen. Singapura, maio 2021.

Memória e presença

René Magritte. The Fickleness of the Heart.1950.

“É a memória que faz toda a profundidade do homem” (Charles Péguy. Clio. Dialogue sur l’histoire et l’âme païenne. La Pléiade. Œuvres en prose complètes, III, p. 1175. Paris, Gallimard, 1987-1992).

Memória não é passado. É comunhão e presente. Raízes do tronco da vida. Subviver durante muito tempo não é apenas um modo de estar, torna-se um modo de ser, em que a memória adquire um papel decisivo. Afirma-se como uma garantia de sobrevivência. Um esteio e uma alavanca, cujo potencial de resgate do ser diminuído se revela inestimável. Uma contra identificação pela crise: a biografia contra a ruina.

Sobreviver obriga a erguer-se e a superar-se, mas também a resistir aos demais, aos “outros significativos”, que acabam por incorporar, assimilando, o nosso novo modo de ser num seu novo modo de viver, vetor de maior proteção mas também fonte de maior protagonismo. O cuidado ambiente pode atingir um ponto de inflexão em que o resguardo reverte em escolho, o abraço em aperto e a dedicação em duplo vínculo. Para ressurgir, “renamorar” a existência, talvez importe arejar os agasalhos virtuosos, mas amortecedores, e ousar pisar os riscos que, a seu tempo, foram de salvação. Com a ajuda da memória.

(Quando comecei este artigo esperava escrever algo de jeito e não um fraseado obtuso e intragável. O sol deve ter inflamado as celulazinhas cinzentas. Acontece!)

Andrew Lloyd Webber. Cats. Musical. 1981. Elaine Page performs from the 1998 production of Cats.
Barbara Streisand. Memory. Memories. 1981. Vídeo oficial.
Maroon 5. Memories. Emote Pa More. 2020. Vídeo oficial.

O Anjo da Conexão e o Velho do Restelo

Acredita em anjos? Então este artigo é para si.

Edward Hopper. Office in a small city. 1953.

Não é por um comportamento se manifestar “ferido de interesse” que está fadado a prejudicar o bem comum (Bernard Mandeville, A Fábula das Abelhas: ou, Vícios privados, benefícios públicos, 1714). Inspirando-me em Pierre Ansart (Idéologies, Conflits et Pouvoir, 1977), também não é por uma ideia ser interessada que resulta necessariamente falsa. Como corolário, por muito estranho que pareça, não é a generosidade de um gesto ou de uma ideia que garantem a sua verdade ou bondade. Pode não ser um erro confiar em quem é movido por interesses, nem tão pouco duvidar de quem nos quer bem. Vem este arrazoado a propósito da publicidade, domínio que os missionários da beatitude tendem a associar à quintessência do mal, à perversão ideológica no purgatório da mercadoria. Acresce que não existe instância que detenha o monopólio do acesso à sabedoria. Nem sequer a ciência ou a religião. Aprende-se como e com quem se aprende, independentemente da forma e do conteúdo, da embalagem e do miolo. Daqui a afirmar que tenho vindo a adquirir mais conhecimento com a publicidade do que com a ciência quase vai um passo. Confesso, porém, que, nos últimos tempos, tenho consumido mais anúncios publicitários do que artigos científicos com impacto. Em termos de conhecimento, um anúncio publicitário costuma valer menos pelo que comporta e mais pelo que suscita, pelo que induz a sentir e a pensar. Trata-se, sobretudo, de uma interpelação que nos cumpre assimilar, no sentido piagetiano do termo. Um anúncio não se limita a alcançar-nos, desafia-nos, mobiliza o nosso “acervo de conhecimentos disponíveis” (Alfred Schütz, Collected Papers I: The Problem of Social Reality, 1962). Munido com estas barbaridades, afigura-se-me que o anúncio indiano Joy of Homecoming, da Vivo, constitui uma excelente ilustração das potencialidades da publicidade.

Um idoso vive, just him and his loneliness, numa mansão, em aparente desafogo económico. Os seus três filhos residem longe, onde têm o seu trabalho e os seus compromissos. Falta-lhes meios e tempo, até para prolongar os breves momentos de videoconferência. Para mitigar a solidão, o pai optou por alugar um quarto. Apenas um, o reservado aos hóspedes. Nos outros, intactos, dorme a memória dos filhos, sua energia vital. A ação inicia com a chegada de um novo inquilino. A música, fundamental, canta o destino; e o jovem inquilino veste o papel de um anjo, que recorda As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders. O jovem faz companhia ao “tio adotivo”, anima-o e tira-lhe fotografias, que envia aos filhos. Inesperadamente, o “sobrinho” parte antes do termo: sente saudades da mãe. Ouve-se a campainha. Será, de novo, a solidão? Não, a solidão não bate assim. São s três filhos que, dispersos pelo mundo, se juntam, como por milagre, para o Diwali, festividade indiana, homóloga do Natal, que celebra a reunião e a vitória do bem sobre o mal: “invoca o retorno da deusa Rama para a cidade de Ayodhya, após um longo período de ausência” e “festeja a vitória do Deus Krishna sobre as forças do mal”. O anúncio termina sem se saber se o “anjo da conexão” foi enviado por Deus ou pela Vivo. Talvez o milagre, um pouco mais prosaico, reverta para o “poder das imagens” em que a Vivo acredita.

José Malhoa. O emigrante. 1918.

O anúncio indiano Joy of Homecoming, apesar da distância geográfica e cultural, assenta-nos como um espelho. Sucede o mesmo em Portugal, País que se tornou tão pequenino num mundo tão vasto. O princípio dos vasos comunicantes funciona na sociedade ao contrário: os fluxos passam do mais pequeno para o maior até ao desequilíbrio final. As migrações já não são o que eram: para além das famílias mais pobres, recrutam entre as mais abastadas e as mais diplomadas. Distinguem-se, contudo, das antigas deslocações dos nobres e dos burgueses. Não as move o luxo, mas a necessidade. A figura do pai remediado separado dos filhos expande-se e multiplica-se com um vírus. Nestes tempos em que o distante se aproxima e o movimento se acelera, a alienação, a separação, pode ser brutal. Não por falta de amor ou de desejo, mas por falta de… disponibilidade! As nossas sociedades estão entre as que mais comunicam e menos comungam. São as mais ricas da História, mas também as mais pobres da humanidade. Sociedades obcecadas pelo crescimento, criam mais necessidades do que possibilidades. É essa a riqueza, é essa a penúria. Como escreve o antropólogo Marshall Sahlins: “idade de pedra é a idade da abundância”; “a sociedade moderna é a sociedade da insatisfação” (Stone Age Economics, 1974). Os pigmeus perfilhavam uma sabedoria que nos é estranha: recusavam as ofertas dos colonos que introduziam.  novas necessidades, logo mais esforço. Mendigamos existência. Antes da pandemia, uma criança pergunta à professora de história: “e nós, o que vamos contar aos netos?”. Preocupação sem fundamento, mas sentida. Mendigamos afetos. Pais sem filhos, mães sem pais, avós sem netos e amigos sem abraços, desencontramo-nos.

Ars moriendi, 1470 ca.

Somos a primeira civilização que promove o morrer em solidão (Norbert Elias, La solitude des mourants, 1982). É verdade que em algumas sociedades os moribundos se afastavam dos vivos, respeitavam, no entanto, a norma, configurava um afastamento ritual que fazia sentido na respetiva condição e cultura. Agora, os moribundos não se isolam normativamente, mas na prática e pela prática, por fatalidade, como uma espécie de excrescência. À volta do leito, máquinas e peritos. Nem sombra de familiares, amigos, anjos ou demónios (ver O Galo e a morte: https://tendimag.com/2017/10/13/o-galo-e-a-morte-revisto/). Andamos descompensados, problema que apenas se agravou e evidenciou com os sucessivos confinamentos pandémicos. Entretanto, já andávamos à deriva. E não há vacina, nem anjo, nem imagem que nos acuda! Talvez nós, aliviando a carga que tanto ambicionamos e tanto nos esmaga. Talvez se deixássemos de nos armar em sísifos que só saber subir e subir, empurrar projetos encosta acima, até lhe faltar o ar. A vontade de superação é o nosso emblema. É também o nosso problema.

Sísifo empurrando uma pedra vigiado por Perséfone. Ânfora grega. Cerca de 560 a.c.

Não fui eu quem escreveu este texto. Foi o meu avatar reacionário e romântico, o Velho do Restelo. Um exercício, uma maneira como outra qualquer de fechar o ano.

Marca: Vivo. Título: Celebrate the #JoyOfHomecoming this Diwali. Agência: Dentsu Impact. Direção: Viveck Dasschaudhary. Índia, outubro de 2021.
Robbie Williams. Angels. Álbum: Life thru a Lens. 1997.
Manuel Freire – “Fala do Velho do Restelo ao astrónauta” poema de José Saramago. Álbum: Pedra Filosofal. 1973.

O arquiteto da ternura e as bolas de cristal

William-Adolphe Bouguereau. Compassion. 1897

Francisco de Assis, o “segundo Cristo”, abençoado com as cinco chagas, santo que abraçou a divindade na figura de um leproso e foi abraçado pela divindade despregada da cruz, reformador da devoção cristão, sobressai, não só pela ênfase na Paixão, mas também como o grande arquiteto da ternura: inventou o presépio. Vivemos tempos em que é particularmente oportuno evocar o franciscanismo. Faço votos que cada um possa abraçar, desta vez, o próximo na figura do menino Jesus.

Os anúncios Vive la magie des fêtes, da Air Canada, e The Biggest Gift, da Deutsche Telekom, convocam a figura da bola de cristal, uma variante do presépio. Encenam outros encantos que nos aguardam, do tamanho do nosso olhar e à escala das nossas mãos.

Distinguem-se, porém, num aspeto: no presépio, os nossos dedos podem percorrer os caminhos de serrim, molhar-se no lago e afagar as personagens de barro; nas bolas, o cristal materializa uma fronteira que impede a tangibilidade, os dedos embatem numa porta que não se abre. O presépio é marcado pelo toque e pela aproximação, a bola de cristal, pela visão e pelo confinamento. Trata-se de uma separação involuntária que cada anúncio, a seu modo, se propõe ultrapassar. Quer-me parecer que o motivo da bola de cristal se vai multiplicar nesta quadra natalícia como uma alegoria ou uma metáfora da nossa condição atual. Existe, todavia, um mundo em que as bolas de cristais, tantas e de tantos feitios, já não cabem. O mundo é o da comunicação social, e as bolas assumem, até à saturação, outra virtude: a previsão fantástica do futuro.

Marca: Air Canada. Título: Vive la magie des fêtes. Agência: FCB Toronto. Canadá, dezembro 2021.
Marca: Deutsche Telekom. Título: The Biggest Gift. Agência: DDB Budapest. Direção: Stina Lütz. Hungria, novembro 2021.

Y los niños volarán! (Crossing the purgatory bridge)

Masters of the Dark Eyes, Angels Releasing Souls from Purgatory. From a Book of Hour._The Hague, Koninklijk Bibliotheek_MS KB 76 G , fol. 171r. 1490.

El niño es bello
sólo miren sus grandes ojos marrones
podría ser Gardel
podría ser Márquez
sólo necesita un poco de ayuda para volar
Si el paisaje se cierra
otro cielo se abrirá
con sol o entre la niebla
los niños volarán

“The Child Will Fly” é uma canção de Roger Waters (com Gustavo Cerati, Shakira, Eric Clapton), gravada em 2014 para a Fundação Alas (Madrid) com o objetivo de ajudar as crianças da América Latina. O vídeo, dirigido por Diego Kaplan, foi filmado na Villa 31, na Argentina.

Roger Waters. The Child Will Fly (com Gustavo Cerati, Shakira, Eric Clapton), para a Fundação Alas. Direção do vídeo: Diego Kaplan. 2014.

Saudades das aulas

Geese Book. Nuremberga. Alemanha. Entre 1503 e 1510. Volume I – fol. 186r. Morgan Library.

Saudades das aulas? Comparativamente, as restantes experiências universitárias, a carreira, os cargos, a burocracia, os rituais e as rotinas, revelam-se irrisórias ou simplesmente substituíveis. De fraca ressonância, devoto-as ao alívio do recalcamento. Continuo a investigar, a intervir, a comunicar e a acarinhar amizades. Nos momentos aziagos, menos lúcidos, tenta-me reduzir os cerca de quarenta anos de profissão académica a uma extensa insignificância. Acontece nas quebras de polaridade mais negativa. Consola-me a memória de algumas iniciativas, fora de regras e além muros, das quais, não sendo puritano, em assumido pecado, me orgulho. Recordo, para minha própria sanidade, as mais gratas e marcantes, todas na qualidade de promotor, coordenador ou (co)organizador. Muitas nem sequer os meus colegas conhecem. Confesso que estou convencido que se não for eu a dizer o que fiz mais ninguém o fará. Agora que o presente e o futuro andam numa cadeira de rodas, tenho tempo e ensejo para ruminar o passado. Segue, carregado a amarelo, uma espécie de postit ou lembrete terapêutico que enumera vários retalhos da vida de um professor em idade avançada. Se saltar esta lista ou a ignorar, pouco ou nada perde, sem sombra de prejuízo para o tema deste artigo: as aulas.

  • – Seminário Portugal e os Portugueses – Raízes e Horizontes, em Braga, duas semanas de atividades com filhos de emigrantes provenientes de todo o mundo, para a Secretaria de Estado da Emigração, em junho de 1983 (a atividade mais coletiva);
  • XIII Congresso Europeu de Sociologia Rural, em Braga, em abril de 1986 (iniciativa que excedeu os meus limites);
  • – Mediação/organização local, nos anos oitenta, das filmagens de um documentário da BBC sobre a pastorícia e a vezeira na freguesia de Lamas de Mouro, para uma série de ensino de português no Reino Unido (a atividade mais exótica);
  • – Estudo das relações entre residentes e emigrantes, em Braga e Melgaço, 1989-1994 (a investigação mais consistente);
  • – Programa semanário da RTM (Radio e Televisão do Minho) Quarto por Quarto, aos sábados, das 10 às 12 horas, de outubro de 1995 a fevereiro de 1996 (a atividade mais mediática);
  • – Coordenação de estudos nos bairros sociais das Andorinhas, em Braga, e das Lameiras e de Lousado, em Vila Nova de Famalicão, para o IGAPHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado) e o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, de 1996 a 1999;
  • Inquérito aos Licenciados da Universidade do Minho (anos 1991 a 1997), para a AAEUM, Braga, 1998 (a atividade de utilidade mais imediata);
  • Conferências de Sociologia, Universidade do Minho, em1997 e 1998:
    • I – Histórias de Vida, Família e Mobilidade Social (11/12/97);
    • II – Jovens e Migrações / Ciência e Sociedade (05/01/98); I
    • II – Pós-Modernidade (09/01/98);
    • IV –  Fontes e Métodos da Demografia (21/05/98);
    • V – Contextos e efeitos sociais do futebol (14/12/98);
  • – Estudo da Romaria da Srª da Agonia, para o Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, de 1998 a 2000 (a atividade que mais se aproximou do lazer);
  • – Mediação/organização local, no início dos anos 2 000, das filmagens de um documentário de uma produtora belga sobre os jogos infantis tradicionais em Portugal;
  • –  Seminário Internacional Transição para o ensino superior, na Universidade do Minho, em 18 e 19 de maio de 2000.
  • – Criação do curso de Mestrado em Sociologia da Cultura e dos Estilos de Vida, na Universidade do Minho, em 2000.
  • Grupo de Missão para a Qualidade do Ensino/Aprendizagem, da Universidade do Minho, de 2000 a 2002;
  • – Criação da revista Sociedade e Cultura, seis publicações, de 2000 a 2004;
  • – Seminário Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo, na Universidade do Minho, em 24 e 25 de maio de 2001;
  • – Criação da série de publicações Apontamentos UM, iniciada em 2001;
  • – Criação do Núcleo de Estudos em Sociologia, em 2002;
  • – Implementação da Rede Social do concelho de Melgaço. e elaboração dos respetivos Diagnóstico Social e Plano de Desenvolvimento Social. de 2003 a 2005 (a atividade de maior intervenção social);
  • Inquérito aos idosos do concelho de Melgaço, para o CLAS e o Município de Melgaço, em 2003 e 2004 (o inquérito com maior impacto social);
  • – Inquérito às Associações Culturais do Concelho de Penafiel, para o Município de Penafiel, em 2003 e 2004
  • – Implementação da Rede Social do concelho de Vila Nova de Cerveira. e elaboração dos respetivos Diagnóstico Social e Plano de Desenvolvimento Social. de 2004 a 2006;
  • – Seminário O Trágico e o Grotesco no Mundo Contemporâneo, no Mosteiro de S. Martinho de Tibães, em 19 de abril de 2005;
  • Inquérito às empresas do concelho de Ribeira de Pena, para a Associação ADRIPÓIO, 2003 a 2005;
  • – Criação e acompanhamento do Espaço Memória e Fronteira (museu dedicado à emigração e ao contrabando), inaugurado no dia 27 de Abril de 2007, para o Município de Melgaço, desde 2005 (a atividade mais visível, mais grata e mais cara: cativado todo o orçamento, sobrou a despesa);
  • Inquérito aos trabalhadores da Zona Industrial de Campos, para o Município de Vila Nova de Cerveira, 2006;
  • – Avaliação do Projeto “Dar Vida às Letras”, para a Rede de Bibliotecas e a Comunidade Intermunicipal do Vale do Minho, 2006 e 2007 (a atividade que granjeou mais reconhecimento internacional e a segunda mais cara: cativados dois terços do orçamento, voltou a sobrar a despesa);
  • Inquérito às necessidades de formação profissional dos concelhos de Guimarães, Fafe e Vizela, para a Associação Sol do Ave, em 2006 e 2007;
  • Comissão Instaladora da Casa-Museu de Monção / Universidade do Minho, 2006 a 2017;
  • – Exposição Vertigens do Barroco: em Jerónimo Baía, e na actualidade, aberta ao público de 24 de março até 2 de Setembro de 2007, na Sala do Recibo do Mosteiro de S. Martinho de Tibães (a atividade mais ousada);
  • – Estudo das Perspetivas de Desenvolvimento do Concelho de Monção, para o Município de Monção e a Casa Museu de Monção / Universidade do Minho, de 2007 a 2009 (a atividade que mais se aproximou da intervenção política);
  • Avaliação do Impacto Social e Cultural de Guimarães 2012 – Capital Europeia de Cultural, para a Fundação Cidade de Guimarães, de 2010 a 2013 (de todas as atividades, aquela que me deu mais trabalho e canseira);
  • – Criação do curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, da Universidade do Minho, em 2011 (o meu maior contributo para a Universidade);
  • – Blogue Tendências do Imaginário, desde agosto 2011: https://wordpress.com/view/tendimag.com (a minha perdição);
  • – Blogue Comunicação, Arte e Cultura, desde outubro 2011: https://wordpress.com/view/comartecultura.wordpress.com (plataforma para os alunos e a maior iniciativa de marketing);
  • – Ciclo de Sessões Percursos Profissionais na Área da Cultura, para o curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, de 2011 a 2013 (a atividade com maior abertura pedagógica):
    • A Promoção da Cultura no Minho Interior, na Universidade do Minho, com Angelina Esteves, Catarina Afonso e Nuno Soares, em 8 de novembro de 2011;
    • Iniciativas Culturais do Mosteiro de Tibães, no Mosteiro de Tibães, com Aida Mata, Mário Brito e Miguel Bandeira, em 15 de novembro de 2011;
    • A Política e a Democracia Cultural, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, com José Bastos e Carlos Martins, em 6 de dezembro de 2011;
    • A Requalificação do Largo do Toural, na Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, com Maria Manuel Oliveira, António Amaro das Neves e Samuel Silva, em 28 de fevereiro de 2012;
    • Fotografia e Investigação, na Universidade do Minho, com Álvaro Domingues e Isabel Alves, em 2 de março de 2012;
    • A Lã e a Neve – Coreografia, na Caixa Negra da Fábrica Asa, em Guimarães, com Madalena Victorino, em 28 de novembro de 2012;
    • Mulheres da Raia – Sessão com a presença da realizadora, na Universidade do Minho, com Diana Gonçalves, em 9 de abril de 2013;
  • – Exposição Momentos Rurais, do fotógrafo Rui Pires, na Casa Museu de Monção / Universidade do Minho, em junho 2013;
  • – Estudos das festas e romarias de São Bartolomeu de Cavez, das Papas, de S. Tiago, de Santa Senhorinha, de Nossa Senhora dos Remédios e de S. Miguel, do concelho de Cabeceiras de Basto, para o Município de Cabeceiras de Basto, de 2011 a 2013;
  • Escola da Primavera, em Monção e Melgaço. Atividade destinada aos alunos dos cursos de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, Doutoramento em Ciências da Comunicação e dos três ciclos de ensino em Sociologia, da Universidade do Minho. Aberta à comunidade. Anual, desde 2013 (a atividade mais diplomática, agradável e oportuna);
  • – Comemoração dos 25 anos da Licenciatura em Sociologia, Universidade do Minho, 20 de outubro de 2015;
  • – Alteração do curso de Mestrado em Sociologia, em 2017 (conjunto de iniciativas que se destacam pelo diagnóstico e pelo sucesso);
  • Encontros de Sociologia, no Mosteiro São Martinho de Tibães, iniciados em 2018.
  • Encontros Minho-Galiza:
    • – II, Casa Museu da Universidade do Minho em Monção, em 2017;
    • – III, Auditório de Goyan, em 2018;
    • – IV, Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em 2019;
  • Quem somos os que aqui estamos? Programa de monografias, documentários, fotografia e eventos dedicado aos agrupamentos de freguesias do concelho de Melgaço, para a Associação Ao Norte e o Município de Melgaço. Concluídos os agrupamentos de Parada do Monte – Cubalhão e Prado – Remoães, está em curso o estudo do agrupamento de Castro Laboreiro – Lamas de Mouro. Programa iniciado em 2016 (a atividade mais reflexiva).

Este inventário configura uma espécie de testamento de uma fase da vida. Admito que fui um péssimo agricultor: semeei tanto e colhi tão pouco. Convém ressalvar as aulas e os alunos, pelo desafio e pela recompensa.
Subsiste a noção de que as aulas totalizam unidades coerentemente lecionadas, enquadradas, planeadas e sumariadas. Graças à lógica ou à dialética, o professor conduz o aluno pela mão, de argumento em contra argumento, até à verdade final, como quem peregrina um caminho de Santiago. Sondam-se horizontes, somam-se marcos, semeia-se o trigo, separa-se o joio, numa álgebra do pensamento.
Numa aula, proporciona-se expor ou compor, partilhar ou construir conhecimento. Metaforicamente, não deixa de ser romântico propor-se rasgar janelas em anfiteatros claustrofóbicos, esboçar sombras em salas soalheiras ou erguer pontes entre corredores paralelos. Comungar o possível, a dúvida e o paradoxo, o improviso e o imprevisto, a um ritmo de jazz pedagógico. Uma aula quer-se uma performance, em que quase tudo pode servir como “material didático”: teorias, métodos, técnicas e análises, mas também artes e letras, documentários, filmes, anúncios, pintura, escultura, música, objetos, documentos, testemunhos, anedotas, convites, visitas, entrevistas, eventos… O mundo da vida senta-se na mesma sala em que professor e alunos são partes participantes, sabendo que sem criatividade, interpretação e diálogo não existe recurso ou visita que acrescente valor. A monotonia e a monologia abrem-se à polifonia e à diversidade. Um dos principais desafios consiste em cruzar fontes e alinhavar realidades distintas. Por composição e recomposição, a aula oferece-se como um mosaico ou uma travessia em que cada um, professor ou aluno, desenha o seu próprio percurso. A aprendizagem é heterogénea. A assimilação, a compreensão e a retenção variam consoante as competências, os interesses e as disposições. O professor confronta-se com uma multiplicidade de registos, asseverando-se difícil agir em consonância. Trata-se de uma demanda de sintonia que releva praticamente do milagre.
Não é óbvio navegar nestas águas e ainda menos chegar a bom porto. Quando muito, aproximamo-nos. As aulas são particularmente exigentes e vulneráveis. Requerem esforço, adesão, concentração, flexibilidade e investimento pessoal. Não se prestam à passividade, à rotina e à atenção intermitente. Interligar informação díspar não é confortável nem sequer se apoia numa atitude natural. Pressupõe predisposição e preparação, qualidades nem sempre desenvolvidas durante a trajetória escolar. Os alunos tendem a vir calibrados por e para aulas clássicas. O risco de rutura da comunicação é, assim, elevado. Desligar é um risco, uma outra forma de estar: olhar para a janela e embarcar noutro comboio, entreter-se com o telemóvel, distrair os colegas ou, simplesmente, entregar-se à evasão interior. Os alunos não têm todos o mesmo capital, o mesmo passado e a mesma experiência, o que institui desigualdades e injustiças de problemática e incerta reparação. Estas aulas correm o risco de pedir aquilo que, à partida, não foi oferecido. Neste caso, podem encobrir um fundo e uma perversidade elitistas.
Aulas que exigem esforço, concentração e participação apostam na motivação. O investimento deve compensar, a vários títulos. Aprender com prazer não é uma quimera. Ensinar não é apenas, como dita a etimologia, marcar. É, também, envolver e entusiasmar. A razão não é a única hóspede da sala de aula. Para além do Homo sapiens, o professor também lida com o Homo aestheticus (Luc Ferry, Homo Aestheticus, 1990) e o Homo eroticus (Michel Maffesoli, Homo Eroticus, 1990). As aulas são um “fenómeno social total” (Marcel Mauss). Dar aulas, mais do que uma profissão e do que uma vocação, é uma arte. E a universidade, para além do saber intrínseco das disciplinas, deve prodigar cultura e, mais do que saber, sabedoria. É esse o seu batismo.
A interação na sala de aula é decisiva. Caracteriza-se pela abertura; e a abertura pelo imponderável. Nunca se está suficientemente seguro, dotado ou atualizado. Uma boa cultura geral só pode ajudar. Não há apontamentos nem apresentações que valham, que consigam antecipar e dominar os tópicos e os desvios não só previsíveis mas também potenciais. Auxilia possuir um bom acervo de recursos mobilizáveis, ao mesmo tempo adequados e oportunos. Alguns, se possível, da própria autoria do professor ou, inclusivamente, dos alunos. Convém, enfim, ser bom marinheiro. Quando se navega em águas dispersas, com vários mapas e bússolas, torna-se vital a gestão das âncoras. A abertura e eventual dispersão não dispensam a tensão da compressão, querem-se minimamente articuladas, encadeadas e regularmente sintetizadas. De outro modo, corre-se o risco de se perderem alunos e professores. Por mais originais que as aulas se desejem, cumpre-lhes respeitar os objetivos e os conteúdos programáticos da disciplina.
Este tipo de aula expõe-se a uma espécie de penalização indireta. Os procedimentos e os formulários da avaliação passam ao largo da sua especificidade e do seu valor. Com o professor Leandro de Almeida e demais colegas do Grupo de Missão para a Qualidade do Ensino-Aprendizagem, participei na elaboração do primeiro questionário de (auto)avaliação da Universidade do Minho. Tivemos a preocupação de contemplar várias dimensões consistentes, mediante análises fatoriais, testes e benchmarking. Um instrumento desta índole nunca é perfeito. Sofreu, desde então, alterações significativas. Tornou-se mais unidimensional, com itens mais abrangentes e menos incisivos, com ênfase na vertente administrativa e disciplinar em detrimento da formativa e pedagógica. O que ganhou, porventura, em operacionalidade perdeu em validade. Em suma, passa um pouco a leste da inovação pedagógica e do cabo da Boa Esperança.
Estas aulas são, sem dúvida, uma anomalia! Por isso, tenho tantas saudades delas. Eram a modos como o meu desporto favorito. O meu desporto atual é mais solitário, pouco interativo, menos exigente, menos desafiante e menos empolgante. Estou a falar deste blogue.

Liber ethicorum des Henricus de Alemannia. Scena – Henricus de Alemannia con i suoi studenti. Sec. XIV.

Loucura por conveniência

Retrato de Camille Claudel. Pormenor. Cerca de 1883.

“La familia la declaró loca y la metió en un manicomio.
Camille Claudel pasó allí, prisionera, los últimos treinta años de su vida.
Fue por su bien, dijeron.
En el manicomio, cárcel helada, se negó a dibujar y a esculpir.
La madre y la hermana jamás la visitaron.
Alguna que otra vez se dejó ver su hermano Paul, el virtuoso.
Cuando Camille, la pecadora, murió, nadie reclamó su cuerpo.
Años demoró el mundo en descubrir que Camille no sólo había sido la humillada amante de Auguste Rodin.
Casi medio siglo después de su muerte, sus obras renacieron y viajaron y asombraron: bronce que baila, mármol que llora, piedra que ama. En Tokio, los ciegos pidieron permiso para palpar las esculturas. Pudieron tocarlas. Dijeron que las esculturas respiraban.” (Eduardo Galeano. Resurrección de Camille. Espejos. 2008).

Galeria com esculturas de Camille Claudel.

A loucura de Camille Claudel.

“Claudel’s father approved of her career choice, and he tried to help and support her financially. But when he died on 2 March 1913, Claudel was not informed of his death. Instead, eight days later, on 10 March 1913, at the request of her younger brother Paul, she was admitted to the psychiatric hospital of Ville-Évrard in Neuilly-sur-Marne. (…)
Doctors tried to convince Paul and their mother that Claudel did not need to be in the institution, but they still kept her there. According to Cécile Bertran, a curator from the Musée Camille Claudel, the situation was not easy to judge, because modern experts who have looked at her records say she was indeed ill.(…)
For a while, the press accused her family of committing a sculptor of genius. Her mother forbade her to receive mail from anyone other than her brother. The hospital staff regularly proposed to her family that Claudel be released, but her mother adamantly refused each time.[50] On 1 June 1920, physician Dr. Brunet sent a letter advising her mother to try to reintegrate her daughter into the family environment. Nothing came of this.
Paul Claudel visited his confined older sister seven times in 30 years, in 1913, 1920, 1925, 1927, 1933, 1936, and 1943. He always referred to her in the past tense. Their sister Louise visited her just one time in 1929. Her mother, who died in June 1929, never visited Claudel” (Wikipedia. Camille Claudel: https://en.wikipedia.org/wiki/Camille_Claudel).

A separação do amor

Mordillo.

Aquando da inauguração do museu de Castro Laboreiro, um balanço inesperado inquietava os responsáveis: os donativos da população local manifestavam-se aquém das expetativas. Um problema de adesão?

Galeria: Núcleo Museológico de Castro Laboreiro. Melgaço.

Certo dia, a funcionária, de madrugada, ao abrir o museu depara-se com um embrulho plantado, no segredo da noite, na soleira da porta da entrada. Era uma peça digna de exposição, uma dádiva anónima, uma fatia discreta de uma identidade enraizada. O fenómeno repetiu-se. O motivo, afinal, não era o alheamento, mas a reserva e o recato tão caraterísticos dos castrejos.

Josefa de Óbidos.

Confinado em casa por doença durante os últimos onze meses, recebi durante todo o período uma escassa dúzia de visitas. Por causa da pandemia, as pessoas mais do que preservar-se entendiam preservar-me. Em contrapartida, surpreendeu-me esta nova prática que se tornou um hábito retomado por familiares e amigos.  Recebia uma chamada: “Deixei uma lembrança à tua porta, trá-la para dentro porque pode estragar-se ao sol”. Aguardava-me, na maioria dos casos, um belo cabaz com fruta e legumes. As pessoas depositavam, sorrateiramente, à minha porta um pouco de si. Em tempos de separação, o cabaz é um traço-de-união, um barco, o “barco do amor”.