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Tempo para tudo

Ter todo o tempo do mundo pode ser bom!

Rui Veloso. Todo o tempo do mundo. Avenidas. 1998

Ter tempo para tudo talvez não seja pior! Até para tentar tempos alheios. Se os Slow Show lembram Roger Waters, os Elbow lembram Peter Gabriel.

Elbow. Starlings. The Seldom Seen Kid. 2008
Elbow. Grounds for Divorce. The Seldom Seen Kid. 2008. Live at British Summer Time in Hyde Park, London on 8th July 2017
Elbow. One Day Like This. The Seldom Seen Kid. 2008. Live at British Summer Time in Hyde Park, London on 8th July 2017

Rendimentos marginais. The Slow Show

A virtude da errância, de errar perdidamente, reside em poder acertar no imprevisto, acrescentar, por ventura, um pouco de prazer ao prazer. Os Slow Show lembram-me, com ou sem razão, Roger Waters.

The Slow Show. Low (with Hallé Youth Choir). Lust and Learn. 2019
The Slow Show. Dresden. White Water. 2015. Live at Hallé St. Peter’s, Manchester, 2014
The Slow Show. Break Today. Dream Darling. 2016. Live at Haldern Pop Festival, 2015
The Slow Show. Rare Bird. STILL LIFE. 2022
The Slow Show. Blinking. STILL LIFE. 2022

O fóssil e a acendalha

Túmulo Borlando. Cemitério Monumental de Staglieno. Génova. 1920

Eros e Thanatos. Instintos de vida e morte. O amor é vida. Que a vida não o esqueça.
Norte-americana, com formação em canto operático, Minnie Riperton iniciou a sua carreira em soul, rythm e rock, aos 15 anos. A canção “Lovin’You”, do álbum Perfect Angel, foi um dos grandes sucessos da década de setenta. Morreu de cancro da mama, em 1979, com apenas trinta e um anos.
Os fósseis podem funcionar como acendalhas?

Minnie Riperton. Inside my love. Adventures in Paradise. 1975
Minnie Riperton. Lovin’You. Perfect Angel. 1974
Minnie Riperton. Light my fire (com José Feliciano). Minnie. 1979

Neil Young. Old Man

Mais música, outro “dinossauro”: Neil Young. Resulta estimulante vê-lo a interpretar “Ohio”, com 73 anos, no concerto Farm Aid de 2018. Não menos impressionante a performance a solo, sem qualquer acompanhamento, oito anos antes, no Farm Aid de 2010. Para concluir, um recuo a 1971: “Old man”, ao vivo na BBC, com 26 anos.

Neil Young. Ohio. 1984. Solo Trans. Ao vivo no Farm Aid 2018
Neil Young. Ohio. Solo Trans. 1984. Ao vivo no Farm Aid 2010
Neil Young. Old man. Harvest. 1972. Ao vivo na BBC, em 1971

Desigualdade de género nos videojogos

Women in Games Argentina. Novembro 2022

As mulheres são discriminadas negativamente quando participam em videojogos partilhados? É provável. Assim o sugere o teste promovido pela associação Women in Games Argentina apresentado no anúncio Switch Voices.

“La acción constó de un experimento en el cual tres gamers profesionales jugaron con un modulador de voz femenino para vivir en primera persona lo que sienten las mujeres cada vez que intentan jugar. / En el mundo del gaming, las mujeres son víctimas de insultos, menosprecios y hasta complots para eliminarlas del juego. / Esto afecta a las jugadoras que quieren divertirse y principalmente a las que buscan profesionalizarse, porque en esas condiciones su rendimiento y sus posibilidades de ascender en los rankings se torna mucho más complicado. / Para generar conciencia sobre esto, BBDO Argentina y Women in Games Argentina realizaron un experimentó en el cual tres gamers profesionales jugaron con un modulador de voz femenino para vivir en primera persona lo que sienten las mujeres cada vez que intentan jugar. El resultado fue el esperado: los jugadores bajaron notablemente su promedio de victorias y declararon como “imposible” jugar bajo esas condiciones” (https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-switch-voices-bbdo-argentina-women-in-games-y-la-violencia-de-genero-en-el-gaming; consultado em 05.11.2022).

Anunciante: Women in Games Argentina. Título: Switch Voices. Agência: BBDO Argentina. Direção: Christian Rosli y Joaquín Campins. Argentina, novembro 2022

Harmonium: Histórias sem palavras | Como um tolo

Harmonium (1972-1978)

Tenho uma memória instantânea de grilo ou, se se preferir, de galinha. Em contrapartida, não me queixo da memória que apelido subterrânea, arqueológica. Os fantasmas do mais recôndito purgatório do passado acodem-me à consciência como pirilampos, emergindo sem convite nem cerimónia.

Acaba de acontecer com os Harmonium, um grupo francófono do Québec (Canadá), criado em 1972 e ativo até 1978. Publicaram três álbuns de estúdio: Harmonium (1974); Si on avait besoin d’une cinquième saison (1975); e L’Heptade (1976). O rock progressivo dos Harmonium aproxima-os de bandas tais como os Camel ou os Renaissance, mas com muito menos reconhecimento. À semelhança de outras bandas, reuniram-se cerca de quarenta anos depois, já mais amadurecidos, para reeditar álbuns e tocar em concertos ao vivo. Seguem: 1) um pequeno excerto do concerto sinfónico Harmonium Symphonique, publicado em 2021; 2) a interpretação integral ao vivo, em 2017, da música Histoires sans paroles (original de 1975); e 3) a canção Comme un fou, remasterizada, do álbum L’Heptade (1976).

Muito poucos conhecerão a música dos Harmonium. Passados tantos anos, reconheço-me nela. Acredito que nos identificamos menos pelo que comungamos e mais pelo que nos distingue.

Histoires sans paroles (excerto). Harmonium Symphonique / Histoire sans paroles, 2 CD, 2021.
Harmonium. Histoires sans paroles. Si on avait besoin d’une cinquième saison. 1975. Ao vivo em St. Hilaire, 2017.
Harmonium. Comme un fou (remasterisé). L’Heptade. 1976.

Neotango. Reciprocidade.

Bajofondo.

Há dias coloquei uma canção, If tomorrow never comes, porque outra pessoa a escutava. Coloco, agora, Pa’ Bailar, um neotango, dos argentinos Bajofondo, com a esperança que os ecos alcancem a mesma pessoa, admiradora de Astor Piazzolla. Reciprocidades.

Bajofondo é a banda de Gustavo Santaolalla, contemplado com dois prémios consecutivos da Academia pelas músicas dos filmes Brokeback Mountain (2005) e Babel (2006).

Bajofondo. Pa’ Bailar. Single. 2007.

Chorar veneno

Zeca Baleiro. Vô Imbola. 1999.

Zeca Baleiro, nascido em 1966, é um compositor e cantor brasileiro. Desde 1997, editou 14 álbuns. O último, Canções d’Além-mar, de 2020, contempla, exclusivamente, músicas de cantores portugueses, de Sérgio Godinho e Pedro Abrunhosa a Jorge Palma e José Cid, passando, por exemplo, por José Afonso, António Variações e Rui Veloso. Seguem quatro canções de Zeca Baleiro: Bandeira; Lenha; Meu amor meu bem me ame; e Tem que acontecer. A primeira do álbum Por Onde Andará Stephen Fry? (1997) e as três restantes do álbum Vô Imbola (1999). Todas interpretadas ao vivo (álbum Líricas Ao Vivo, 2020).

Zeca Baleiro. Bandeira. Por Onde Andará Stephen Fry?. 1997 / Líricas Ao Vivo. 2020.
Zeca Baleiro. Lenha. Vô Imbola. 1999. / Líricas Ao Vivo. 2020.
Zeca Baleiro. Meu amor meu bem me ame. Vô Imbola. 1999. / Líricas Ao Vivo. 2020.
Zeca Baleiro. Tem que acontecer. Vô Imbola. 1999. / Líricas Ao Vivo. 2020.

Gosto de gostar. A sinfonia da Audi

bauhouse

No enfiamento da apresentação de alguns anúncios publicitários com conteúdos que geram “efeitos musicais”, acrescento a Audi Sinfonie, criada pelos bauhouse, uma obra ousada e extraordinária. Das oito partes que compõem o concerto, selecionei a primeira e a terceira. Pode assistir ao conjunto da sinfonia no seguinte endereço: https://bauhouse.de/audi-sinfonie/. O anúncio Big Entrance, também da Audi, oferece-se como uma espécie de prolongamento da Audi Sinfonie. Foi filmado em Odessa, na Ucrânia.

“‘Sinfonie’ teve a sua estreia no Le Grand Palais, em Paris. Seguiram-se mais concertos em Buenos Aires, Vilnius, Riga, São Paulo, Berlim, Xangai, Viena, Paris novamente, Estocolmo, Moscovo e Tóquio.

Colaborámos com diferentes orquestras, por exemplo, Orquesta Sinfónica Ciudad de Buenos Aires, Orquestra Sinfônica Nacional da Lituânia, Konzerthausorchester Berlin,  Orquestra da Ópera Nacional da Letônia, Orquestra Filarmônica da China, Orquestra Lamoureux, Orquestra Nacional Russa e Nova Filarmônica de Tóquio (…).

‘Sinfonie’ foi premiado com o Bronze na categoria ‘Melhor Composição Musical/Design de Som’ no Art Directors Club Awards 2009, Berlim” (da página dos bauhaus: https://bauhouse.de/audi-sinfonie/).

Os membros dos bauhouse são Fabian Grobe, Clemens Wittkowski, Arno Kraehahn, Max Renne.

bauhaus. Audi Sinfonie. 2012. Parte 1.
bauhaus. Audi Sinfonie. 2012. Part 3.
Marca: Audi Q8. Título: Big Entrance. Agência: BBH London. Direção: Sam Brown. Reino Unido, 2018.

Portugal: Competitividade e custos de contexto das empresas, do trabalho e do país.

Rafael Bordalo Pinheiro. Entre a Cruz e a Caldeirinha. O Mosquito, Rio de Janeiro, N. 356, 8 de abril de 1876.

«Um grande sacrifício é fácil, difíceis são os pequenos sacrifícios contínuos…» (Johann Wolfgang Goethe, adaptado de «As afinidades electivas»)

Em Portugal, o que interessa não é interessante. Prefere-se a poeira à clareza (AG).

O meu rapaz mais jovem, o Fernando, acaba de publicar um novo artigo numa revista com referee e com fator de impacto: “A Recursive Algorithm for the Forward Kinematic Analysis of Robotic Systems Using Euler Angle”, (Robotics 2022, 11(1), 15; https://doi.org/10.3390/robotics11010015 (registering DOI). O mesmo acontece com o meu rapaz menos jovem, o João que publicou o artigo “Common sense or censorship: How algorithmic moderators and message type influence perceptions of online content deletion” (New Media & Society, July 28, 2021: https://doi.org/10.1177/14614448211032310), igualmente numa revista com referee e fator de impacto. O Fernando é doutorando em Engenharia Mecânica e o João, doutor em Ciências da Comunicação, ambos pela Universidade do Minho, com bolsa da FCT. O João emigrou; é professor na Universidade Erasmus de Roterdão, na Holanda. O Fernando para lá caminha: atraído pelo Oriente, está a aprender japonês, o que, para mim, não é bom augúrio. Não se resignam à sorte que Portugal lhes destina nem receiam competir com os indígenas dos países de destino. O panorama nacional está longe de ser cativante. É o fado lusitano.

Repete-se que as empresas e os trabalhadores portugueses carecem de produtividade e competitividade. Não sei! Não disponho de informação suficiente, sobre umas e outros, para consolidar uma ponderação válida. Quero acreditar que se esforçam, que fazem por isso, que se empenham. É do seu interesse. Possuem virtudes e vícios, desconheço se maiores, melhores ou piores do que nos países estrangeiros. O que se me afigura é que se confrontam com custos de contexto incomparáveis e incomportáveis. Só por ser produzido em Portugal, um bem pode suportar custos comparativamente mais elevados. O que configura, na prática, uma espécie de “concorrência desleal” face aos adversários congéneres de outros países, por exemplo, da União Europeia. Um rosário de desgraças! Perdoem a imagem, mas lembra uma corrida em que uns calçam tamancos e outros, sapatilhas de desporto.

Comecemos pela energia, despesa apreciável e incontornável das empresas e das famílias:

“O custo da energia em Portugal continua a ser dos mais elevados da Europa, afetando as famílias e as empresas. Porquê? (…) Na gasolina 95 simples, a carga fiscal é de 63%, fazendo com que o país pague o sexto preço por litro mais elevado da União Europeia (EU). O preço praticado em Portugal é 0.55 euros mais caro que o preço mais baixo praticado na EU e fica a 0.17 euros do preço mais elevado. / No gasóleo, o preço por litro praticado em Portugal é o sétimo mais elevado da EU, sendo 0.38 euros superior ao preço mais baixo e fica a 0.21 euros do preço mais elevado. / Estes preços dos combustíveis são pouco competitivos à escala europeia. Panorama idêntico existe nos custos de eletricidade e do gás natural. / O Eurostat divulgou recentemente o seu boletim de preços e Portugal volta a ficar mal na fotografia. / A carga fiscal, apesar de não ser tão elevada como nos combustíveis, continua a ser acima do desejável: 40% na fatura da eletricidade e 32% na fatura do gás (faturas cobradas às famílias). / No segundo semestre de 2020, o país apresentou o quarto maior preço de eletricidade da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por MWH), apenas atrás da República Checa, Espanha e Alemanha (…) No que respeita ao gás natural, o país apresenta o segundo maior preço de gás da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por gigajoules) / Num período em que se discutiram e ainda discutem as prioridades económicas do país e se elaborou um plano de recuperação e resiliência com vista aos fundos estruturais da famosa e tardia “bazuca”, porque não se olhou ou começa a olhar para a questão dos preços da energia, que são elevados em Portugal e que afetam a competitividade das empresas e da economia em geral?” (Carlos Bastardo, Preços da energia em Portugal são elevados no contexto europeu, Jornal de Negócios: https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/carlos-bastardo/detalhe/precos-da-energia-em-portugal-sao-elevados-no-contexto-europeu).

Algumas propriedades do mercado de trabalho português prejudicam a produtividade e a competitividade nacionais. Por falta de informação adequada, algumas das afirmações seguintes reduzem-se a meras impressões e conjeturas.

A descoincidência, o desacerto, entre a oferta e a procura de trabalho manifesta-se com um dos mais graves obstáculos ao desenvolvimento da economia nacional, da competitividade das empresas e da produtividade do trabalho. As empresas conhecem dificuldades em encontrar trabalhadores ajustados às suas necessidades e especificidades, mesmo quando o desemprego é apreciável; por seu turno, os trabalhadores têm dificuldade em encontrar empregos adequados às suas capacidades e aspirações, mesmo quando a economia se aproxima do pleno emprego. Vários fatores contribuem para este desequilíbrio. Por exemplo, as migrações descontroladas, designadamente a emigração. Mas também a desfocagem da educação, da formação e da requalificação profissional, desfasadas das necessidades efetivas, presentes e futuras, dos sectores público e, sobretudo, privado. Acresce o desencontro da distribuição geográfica. Apesar das “correções espontâneas” e do acréscimo da mobilidade, persiste alguma tendência para as empresas se concentrarem em territórios onde as bolsas de trabalho escasseiam e desertarem das áreas onde a disponibilidade de trabalhadores é maior. As disparidades regionais e as dinâmicas demográficas, principalmente entre o litoral e o interior, concorrem para esta descoincidência. Esta realidade é manifesta. Fui convidado para estudar uma zona industrial a braços com uma crise anunciada: várias empresas com centenas de colaboradores ameaçavam deslocalizar-se devido à dificuldade em recrutar trabalhadores localmente. O desenvolvimento do turismo e do comércio transfronteiriço multiplicou os estabelecimentos hoteleiros e os comércios no norte interior. A maioria dos trabalhadores provêm da área metropolitana do Porto, com o compromisso de lhes garantir alojamento. Existem empresas predadoras de salários baixos que erram de terra em terra, de trabalho esgotado em trabalho prometido.

Quer-me parecer que a imigração, em particular a brasileira, tem mitigado parte desta descoincidência do mercado de trabalho nacional. Mas o atual surto de emigração, com características únicas, agrava-a. Quando a educação e a formação logram acertar, a emigração distorce. A dificuldade no recrutamento de médicos e enfermeiros para o Serviço Nacional de Saúde constitui um exemplo. As famílias com que me relaciono, uma amostra não representativa, têm quase todas pelo menos um filho a trabalhar no estrangeiro. A geração mais qualificada de sempre, descendente da geração mais qualificada do passado, está a despedir-se do país. Portugal está a desperdiçar capital humano, ambição e energia. Grave, muito grave!

O envelhecimento demográfico acentua-se como uma variável de contexto que compromete a economia portuguesa. Em 2019, Portugal era, entre 37 países europeus, o terceiro com maior percentagem de população com 65 e mais anos de idade: 21.8%, a par da Finlândia e atrás da da Itália (22.8%) e da Grécia (22.0%). Entre 2009 e 2019, Portugal foi o sexto país em que este grupo etário mais aumentou (3,8 pontos percentuais contra 2.9 no conjunto da União Europeia – fonte: Eurostat). Este envelhecimento pesa, entre outras dimensões, na sustentabilidade da segurança social e na disponibilidade de força de trabalho. Nestas circunstâncias, importa expandir a disponibilidade laboral, reduzindo, eventualmente, a ocupação com tarefas, tais como a dedicação doméstica à primeira infância, através, por exemplo, da aposta na cobertura de creches. No caso da zona industrial acima referida, a abertura de uma creche propiciou uma maior “drenagem” de trabalhadores, sobretudo, do sexo feminino. Uma iniciativa positiva tanto para as empresas como para os trabalhadores.

Para combater estes e outros custos de contexto, os decisores parecem não vislumbrar outra solução a não ser o recurso à contenção dos salários, à precariedade e à compressão, ao encolhimento, das carreiras. Para o meu entendimento, suspeito, esta é a maior praga da economia portuguesa, o maior custo de contexto. Retomando o artigo “Lamento político 1: Os salários nos sectores público e privado em Portugal e na EU” (https://tendimag.com/2022/01/11/lamento-politico-1/), no ano 2000, entre os dez países europeus considerados, Portugal é aquele que tem o salário médio mais baixo, tanto no setor público como no setor privado. O salário médio da Irlanda é três vezes superior ao português. Portugal destaca-se com o maior diferencial de salário médio entre os setores público e privado: mais 36.6%. Os baixos salários e o diferencial entre setores privado e público, pouco recomendáveis, corroem a competitividade e a produtividade das empresas, dos trabalhadores e do país. Recentemente, as estatísticas revelaram que uma proporção significativa de pessoas com emprego vive abaixo do limiar de pobreza. Não há motivo para tanta surpresa. Em Portugal, existem multidões de trabalhadores que não ganham sequer para a sua reprodução antroponómica, para falar à maneira de Daniel Bertaux (Destins personnels et structure de classe: Pour une critique de l’anthroponomie politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1977), ou para a reprodução da sua força de trabalho, como diria Karl Marx. Esta enormidade não pode ser benéfica para a competitividade das empresas e a qualidade de vida dos cidadãos. Compostas por trabalhadores. a produtividade e a competitividade das empresas dependem da qualidade, mobilização e motivação do seu capital humano. Além de baixos, os salários comprimem-se em demasia: pouca amplitude, pouca variação e pouca dispersão. No ano 2000, o desvio-padrão da distribuição dos salários/hora no setor privado era o mais baixo do conjunto dos países da então União Europeia (1,6 contra, por exemplo, 4,1 em França). Não só se ganha menos como são menores as perspetivas de progressão. Nas últimas décadas, esta tendência para a compressão tem-se acentuado, sobretudo, no sector público. A categoria dos professores oferece-se como exemplo: os salários reais baixaram e a sua distribuição comprimiu-se; a carreira encolheu e a espera aumentou. Sobe-se menos, com mais dificuldade e mais devagar. Para cúmulo, o prestígio e a autoestima degradaram-se, fenómeno para que alguns governos contribuíram, sem que ninguém tenha lucrado. Uma das consequências está à vista: a profissão perdeu atratividade. Resulta, mais uma vez, uma descoincidência entre a procura e a oferta de emprego. Atendendo ao envelhecimento da classe e respetiva reforma, os governos vão-se debater, nos próximos anos, com sérias dificuldades em recrutar os professores exigidos pelo sistema de ensino. Aos médicos e aos enfermeiros, juntam-se os professores.

A educação e a saúde são serviços em que, comparativamente, Portugal não desmerece. O respetivo desempenho afirma-se aceitável, justificando, inclusivamente, num ou noutro aspeto, algum motivo de orgulho, por exemplo o sucesso no estrangeiro dos diplomados pelo ensino nacional. Esta avaliação vale para o presente, justifica-se, porém, alguma apreensão quanto ao futuro próximo, mormente no caso da saúde. A educação não para de se debater com um problema crónico: se é ponto assente que o país carece de reformas, a educação padece de reformismo permanente. A cada ano, quando não a cada mês, alteram-se as regras, os procedimentos, os objetivos e os projetos. A educação parece o laboratório do reformismo infantil do Estado. Poeira, que nunca assenta, com prejuízo da consolidação e da estabilidade desejadas para o sistema. Um excesso quase delirante de benchmarking, experimentalismos pedagógicos, sobreaquecimento administrativo, heteronomia e protagonismos políticos. Esta proliferação de minúsculos enxertos e inovações resulta desgastante. A educação parece a nossa folle du logis. Creio chegada a altura de proporcionar algum apaziguamento ao sistema de ensino, de dar repouso a este Sísifo pátrio. Na saúde, em particular no Sistema Nacional de Saúde, a escassez de recursos humanos, a saturação e a morosidade, objetivadas nas filas de espera, mais do que comprometer o presente, erguem-se como um presságio deveras inquietante para o nosso futuro comum.

A saúde e educação suscitam uma mesma reserva. Ao contrário do que estipula a Constituição, não têm sido, cada vez menos acessíveis e mais onerosas, “tendencialmente gratuitas”. O universalismo e a igualdade resumem-se a uma promessa sempre adiada. Quando iniciei a atividade profissional na Universidade, as propinas eram praticamente inexistentes. Hoje, estão bem longe de ser simbólicas. Uma família que dependa de um salário mínimo, mal se consegue restaurar, quanto mais financiar a frequência de um filho, provavelmente deslocado, num curso que cobra milhares de euros por ano. Também não é menos verdade que o direito à escolha do ato médico permanece uma quimera para a maioria dos portugueses.

À semelhança da saúde e da educação, o sistema de transportes, apesar da insuficiente e desequilibrada cobertura, não parece representar um obstáculo decisivo em termos de custos de contexto. A aposta exagerada na rede rodoviária compensa a fragilidade da rede ferroviária. Não obstante, o modelo português comporta alguns custos no futuro. Inscreve-se a contracorrente das opções da União Europeia (ver Livro Branco: Roteiro do espaço único europeu dos transportes, Comissão Europeia, 2011) e dificulta os compromissos de sustentabilidade ecológica entretanto assumidos. Em suma, não é amigo do ambiente. Por enquanto, este handicap não comporta custos de contexto para as empresas.

Se os sistemas de saúde, educação e transportes não se destacam pelos custos de contexto, o mesmo não se pode afiançar do sistema de justiça. Moroso e imprevisível, representa um desafio e uma ameaça para a vida, o funcionamento e a sobrevivência das famílias e, sobretudo, das empresas. O sistema de justiça ocasiona um dos mais graves custos de contexto do país. O recurso à justiça não é raro e pode ser crítico, especialmente em termos de custos de oportunidade. Muitas empresas contemplam serviços jurídicos. Morosa, hermética e imprevisível, a justiça é a tartaruga, o labirinto e a esfinge de Portugal. Não obstante, parece intocável. Sem questionar a dedicação e o empenho, estimo que, no que respeita à esfera pública, ganhava em ceder menos à mediatização e cuidar mais da autonomia que a Constituição lhe confere.

A burocracia é comumente invocada como um dos principais problemas da sociedade portuguesa. Embora o admita, reconheço que se distingue como um dos poucos domínios em que, nas últimas décadas, foram dados passos positivos. A informatização ajudou, bem como iniciativas tais como as lojas do cidadão e o cartão único. Alguns procedimentos simplificaram-se e a relação com o público parece ter melhorado. Mas há ainda caminho a percorrer. O acesso e a resolução dos problemas nem sempre brilham pela agilidade. Pode-se melhorar em termos de clareza das regras e dos procedimentos, acessibilidade, transparência, diminuição de informalidades, clientelas, mordomias, desvios e corrupção. Neste momento, não me parece que a burocracia seja o pior custo de contexto.

Chegou o momento de abordar a questão dos impostos e da carga fiscal. Ao contrário do que muitas vezes se sugere, a carga fiscal em Portugal, quando comparada com os países da União Europeia, não é muito elevada. De acordo com o Eurostat, a carga fiscal, constituída pela soma dos impostos e das contribuições sociais líquidas em percentagem do PIB, situou-se, em 2019, nos 36.8%, ocupando uma posição intermédia na série dos 27 países da União Europeia (ver gráfico 1), abaixo do valor do conjunto (UE27: 41.1%). A carga fiscal aumentou consideravelmente entre 1995 e 2015, passando de 31.4% para 36.8%, o quarto maior aumento nos países da UE27, apenas inferior à Grécia, à Bulgária e ao Chipre (ver Tabela 1). Honestamente, estes números não apontam para uma carga fiscal responsável, intrínseca e comparativamente, por um despropositado custo de contexto. O que merece, isso sim, uma avaliação criteriosa é o modo como a receita fiscal é repartida, distribuída e investida.

Mergulhei na atividade política em 1974. Fui responsável por um partido político no meu concelho de origem. Com outro concelho, foi o único do distrito em que o partido ganhou as eleições para a Assembleia Constituinte do dia 25 de Abril de 1975. Coincidindo com a minha partida para França, afastei-me da atividade política logo após o período conhecido como “verão quente”. Desde então, nem militante, nem sequer simpatizante explícito. Mas não existem vacinas nem imunidades absolutas. Atrevo-me a um ou outro despretensioso balanço.

O sector político (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, poder autárquico, partidos políticos) também influencia os custos de contexto. Dispenso comentar. Limito-me a um breve apontamento.

Entre as propostas da presente campanha eleitoral destacam-se aquelas que respeitam à política fiscal: redução do IRC versus aumento dos salários. Caracterizam-se por serem propostas que se podem implementar por decreto: totalmente, a redução do IRC; parcialmente, o aumento de salários, mais direto e linear no sector público do que no sector privado. Estas propostas justificam dois ou três reparos. Antes de mais, não acredito que “se consiga mudar a sociedade por decreto” (Michel Crozier, On ne change pas la société par décret, 1979). Por outro lado, estas medidas não produzem fatalmente os efeitos desejados. Podem provocar efeitos perversos. O aumento de salários pode alimentar o crescimento do consumo, da inflação, das importações e saldar-se numa quebra efetiva do salário real. Tão pouco se sabe se o bónus da descida do IRC vai estimular as virtudes ou os vícios, muitos e entranhados, do tecido empresarial português. Não sei, portanto, qual vai ser, à partida, o efeito dessas medidas. Invejo quem saiba. São, no entanto, fáceis de formular. Basta quatro palavras: “vou baixar o IRC” ou “vou aumentar os salários”. Outro género de propostas exige mais fraseado. Não basta dizer vou melhorar o ranking da educação, a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, agilizar a justiça ou diminuir o impacto da poluição. Tem que se completar a proposta, adiantando como. Certo é que a diminuição do IRC ou o aumento dos salários implicam, automaticamente, uma transferência ou um corte da riqueza de todos em proveito de uma parte, seja esta empresária ou assalariada. Significa, também, que esse dinheiro transferido ou preterido deixa de estar disponível para investir, digamos, na saúde, na educação, na solidariedade social ou na fatura energética.

Quase não vejo televisão. Não tenho nada contra, mas dedico-me e concentro-me em outras atividades. Só assisti a uma ou outra passagem dos debates pré-eleitorais. Nem sequer a um único segundo do debate “decisivo” entre António Costa e Rui Rio. Entretido, passou-me a hora. Não me entusiasma a voz dos políticos; ainda menos a dos comentadores. Mesmo assim, acabo por reter algumas impressões.

Pelos vistos, as velhas dicotomias da economia política e da política económica, tais como investimento/consumo, rendimento/inflação, público/privado continuam no vento. Quando frequentei na Sorbonne, no início dos anos oitenta, um curso de mestrado em Política Económica, as aulas convenceram-me que essas oposições se tinham esbatido e que keynesianos e friedmanianos tinham aprendido alguma coisa com a experiência e uns com os outros. Tudo indica que não.

Enfim, o pouco que observei foi o suficiente para entranhar uma impressão deveras estranha. Parece que os poderosos e abastados deste país têm inveja dos pobres e dos excluídos! Precise-se, de passagem, que os traficantes não costumam ser pobres; antes, endinheirados.

Em jeito de conclusão, três dúvidas formuladas sob a forma de perguntas:

– Serão as empresas portuguesas, por si mesmas, não competitivas? Noutros termos: colocadas em condições semelhantes às congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam não competitivas?

– Serão os assalariados portugueses menos produtivos? Noutros termos: colocados em condições semelhantes, como os nossos emigrantes, aos congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam pouco produtivos?

– Será Portugal um país, no seu conjunto, não competitivo?

Excetuando um breve período na década de 1960, há séculos que Portugal não é um país competitivo.