Desporto redentor
Caro Eduardo!
“A religião na publicidade” é um tema promissor. Desafia-nos a saber o que aprendemos. Sem âncoras, navegamos de revelação em revelação. Aspiramos à salvação e guiamo-nos pela fé. A publicidade promove revelação e salvação pela fé. No anúncio brasileiro Sport unites all, da XXL, cintila a chama da religião? O “chamamento”? Repito-me, mas não desgosto da repetição. Se tudo pode ser dito, pouco merece ser repetido.
Este anúncio abre num registo diabólico (de discórdia). Somos confrontados com uma provação (a carteira), um possível eleito (o menino) e uma separação (o menino, a polícia e o motociclista). No momento da epifania, Ronaldinho, motociclista e dono da carteira, dá-se a ver, revela-se. O ritmo do filme abranda e os rostos iluminam-se. A postura de Ronaldinho Gaúcho, de braços abertos, replica a imagem inicial do Cristo Rei. Não há acaso na boa publicidade. Ronaldinho aparece como salvador e unificador. O novo registo simbólico (de união) culmina com a celebração de um golo de futebol, comunhão de vencedores, na glória, e vencidos, no purgatório.
O anúncio não é nada disto. Mas os anúncios valem cada vez mais por aquilo que não são.
Como vês, há leituras sem sombra de proveito. Um abraço.
P.S. É possível que na publicidade seja menos importante o que lá está do que o que lá se encontra. Gosto do português!
Marca: XXL All Sports United. Título: Sport unites all. Direcção: Mans Marlind & Stein Bjorn. Brasil, Julho de 2016.
Pokémon GO e São Cristóvão

Pawel Kuczynski.
A realidade é traiçoeira, não pertence a nenhum dos lados (a partir de André Gorz, Le Traître, 1957).
Tomei conhecimento deste cartoon do Pawel Kuczynski através do Abel Coentrão. Lembra São Cristóvão com o menino Jesus, e o mundo, aos ombros.
O jogo Pokémon GO não é um acontecimento menor. Representa um marco na história dos videojogos e da realidade aumentada. Menos pelo pioneirismo e mais pelo modo e pelo alcance.

Pawel Kuczynski
O fenómeno Pokémon GO requer que se repense a relação entre o mundo real e o mundo virtual. Teorias outrora avançadas resultam, agora, insuficientes. Arrisquemos alguns apontamentos:
- O mundo virtual realiza-se. Esta asserção peca por defeito. No mundo virtual, o mundo real não vem em segundo lugar. Tao pouco antecede, sucede, complementa, sobrepõe ou articula. O mundo virtual e o mundo real não só interagem como se interpenetram, o que extravasa as atividades listadas. Continuaram a ser úteis as noções de simulação, simulacro e hiper-realidade do Jean Baudrillard e do Umberto Eco?
- O mundo real virtualiza-se. Esta asserção também peca por defeito. O mundo virtual é constitutivo do mundo real. Não paramos de retocar o passado, de alucinar o presente e adivinhar o futuro.
- Na realidade aumentada, uma pessoa evolui em vários tabuleiros. Acede, anda, explora, escolhe, adquire, colabora, disputa, convive, lança bolas de fogo, acumula, perde e ganha. Os acidentes por inatenção, a “invasão” à base aérea canadiana, as inconveniências no museu de holocausto em Washington ou a proibição do governo da China são contingências que pouco ou nada têm a ver com efeitos perversos ou predições criadoras. São situações e acções possíveis e prováveis no entrelaçamento dos mundos virtual e real.
São Cristóvão é uma figura que não destoava num manga ou num videojogo. Filho de um rei pagão, eventualmente de Canaã, morreu, na Anatólia, martirizado, em 251. É, por vezes, retratado com cabeça de cão (ver, neste blogue, o artigo Santo Cão: https://tendimag.com/2014/03/15/santo-cao/). Até à conversão ao cristianismo chamava-se Auferus (bandoleiro) ou Reprobus (maldito). O “nome de baptismo” será Cristóvão (aquele que transporta Cristo). Gigante aprazível, com força colossal, assume como vocação servir os mais fortes. Em dada altura, serviu um rei poderoso. Mas, quando constata que este se assusta com o diabo, passa a servir o diabo até que comprova que este teme a cruz. Decide servir Cristo, que procurou durante muito tempo.

Mandyn Flanders. Saint-Christopher and the Christ child, ca 1550.
Um dia, encontra um eremita que o inicia à religião cristã. Como Cristóvão não se prestou a jejuar nem a rezar, o eremita propôs-lhe que a ajudasse as pessoas a passar um rio perigoso. Mais cedo ou mais tarde, Cristo lhe apareceria. Passados muitos dias, ouviu a voz de uma criança que lhe pede para a passar para a outra margem. Cristóvão coloca o menino no ombro e, munido com o bastão, faz-se ao rio.
Aumentavam, a cada passo, a agitação das águas e o peso do menino. Cristóvão parecia carregar o mundo inteiro. Acabada a travessia, já na outra margem, o menino diz a Cristóvão que é o seu rei, Jesus Cristo. Pede-lhe que enterre junto à casa o bordão, que se transforma, dia seguinte, numa magnífica palmeira carregada de tâmaras. São Cristóvão dedica o resto da sua vida à divulgação da palavra de Deus. Consta entre os santos que mais pagãos converteram. Segundo Santo Ambrósio, “conseguiu arrancar ao erro do paganismo quarenta e oito mil homens e levá‐los ao culto da fé cristã”.
Morre na Anatólia. no dia 25 de Julho do ano 251, reinava Décio, imperador romano. Foi cruelmente martirizado. Foi açoitado. Bateram-lhe com vergas de metal. Colocaram-lhe um elmo de ferro em brasa na cabeça. Acorrentaram-no num estrado de ferro, besuntaram-no com pez e pegaram-lhe fogo, mas o estrado desfez-se.

Jusepe di Ribera, St. Christopher, 1637.
Amarrado a uma estaca, foi alvo de setas disparadas por quatrocentos soldados. Mas, espantosamente, nenhuma lhe acertou, paravam no ar. Uma seta inverteu o sentido e acertou no olho do rei responsável pela martírio do Santo. São Cristóvão adverte o rei : “amanhã, vou morrer, mas tu, tirano, deves fazer lama com o meu sangue e untar com ela o teu olho para seres curado”. São Cristóvão foi decapitado. O rei misturou um pouco de sangue com terra e colocou-o no olho. Ficou curado e convertido! Este relato do martírio de São Cristóvão encerra uma notável densidade simbólica.
O capital apostólico
No que respeita à publicidade, a Coca-Cola costuma esmerar-se. A campanha da Coca-Cola Middle East não desmerece. Somos filhos de Maio e herdeiros dos profetas. Abraçamos causas. Para a Coca-Cola, é ponto assente. Os anúncios de consciência e salvação estão em voga. Tecnicamente apurados e subtilmente pedagógicos, ensinam-nos, por exemplo, que a visão é o sentido decisivo na discriminação. Apagam-se as luzes e logo se apagam o racismo, a xenofobia e o preconceito. Há quem discorde. Georg Simmel advoga que é o cheiro, e não a visão, “o sentido desagregador ou anti-social por excelência” (Georg Simmel, Sociologie des sens, 1912). Este anúncio da Coca-Cola é um filme. Um simulacro de uma performance, de uma experiência ou de um “apanhado”. “Labels and designs are only for cans not for people”. Dado o mote, estamos confrontados com um novo tipo de capital: o capital apostólico. Este tipo de anúncio é mais fácil de comentar do que de criticar. A empresa faz o que lhe interessa com os recursos de que dispõe. O anúncio surpreende, envolve e agrada. Não é sobranceiro, categórico, acusador, descompensador, nem previsível, como é o caso de parte da publicidade de sensibilização paga pelos contribuintes.
Marca: Coca-Cola Middle East. Título: Remove Labels this Ramadan. Agência: Memac Ogilvy Dubai. Middle East, Julho 2016.
Aproveito para adicionar um anúncio que a Amnistia Internacional lançou há dias. Denuncia a violência policial no Brasil por altura dos Jogos Olímpicos.
Marca: Amnesty International. Título: The police are breaking records in Rio. Agência: Ogilvy & Matter (Amsterdam). Internacional, Julho de 2016.
A jangada

Carlos Saura. Cría Cuervos. 1976.
Temos uma percepção selectiva do mundo. O nosso “mapa mental” está distorcido: temos regiões hipertrofiadas e outras hipotrofiadas. Não somos míopes. Vemos bem ao longe e mal ao perto. Caricaturando, tudo o que é latino grita em bicos de pé e tudo que é anglo-saxónico entra pelos sentidos sem bater à porta. É o círculo da nossa quadratura cultural. Quem descura a humana diversidade empobrece. A Itália tem especificidades, a França e a Espanha, também. Não as considerar é não as ter. Não é uma honra, mas uma falha. “Vira costas a Castela” quem se habituou a viver dobrado, com a devida vénia. Face aos outros e face a si próprio. A Espanha tem um modo de musicar os sentimentos (e.g., Júlio Iglesias, Nino Bravo ou Luz Casal). Possuímos, ao nível da dança e da música, raízes comuns. Por exemplo, as influências celta e mourisca. Estas duas canções são espanholas, de meados dos anos setenta: Camilo Sesto, Quieres ser mi amante? (Camilo, 1974), e Jeanette, Porque te vas (da banda sonora do filme Cría Cuervos, de Carlos Saura, 1976). Bafejou-as a sina da popularidade? Sem dúvida. Não é estigma. Estiveram semanas a fio no primeiro lugar das tabelas. Tiveram sucesso em vários países, incluindo Portugal. Agora, soam um pouco a ferro velho.
Camilo Sesto. Quieres ser mi amante. Camilo. 1974.
Jeanette. Porque te vas. Cría Cuervos, de Carlos Saura. 1976.
Os cabelos do verdadeiro amor
Férias! Nada como mudar de disco! Há grandes músicas que antecedem grandes mudanças… Nas ciências sociais, interpretam-se as grandes e as pequenas mudanças, mas raramente se anunciam. Há uma pequena diferença entre um precursor e um leitor.
Nina Simone. Black is the color of my true love’s hair. 1959. Ao vivo, com Emil Latimer, c. 1969.
A música do silêncio
As palavras são um milagre e uma poluição. Como o plástico e o monóxido de carbono. O silêncio apraz-se nos países nórdicos. Não sei se é verdade, mas, aqui, a verdade não é critério. Quero também acreditar que a música embala o silêncio. É o caso do trio norueguês Building Instrument (https://tendimag.com/2014/03/28/a-musica-que-veio-do-frio/). Os pastores de rebanhos recorrema aos números para avaliar o desempenho das ovelhas. No que respeita a visualizações na Internet, a notoriedade dos Building Instrument ínfima.
Building Instrument. Bergen Jazzforum. 08 Fevereiro 2013.
Building Instrument. Fall. Kem Som Kan å Leve (2016).
Sociologia sem palavras 23. Rituais.
Os rituais são fenómenos sociais de extrema importância. Objectiva e subjectivamente (cf., por exemplo, James George Frazer, The Golden Bough, 1911-1915: Marcel Mauss, Oeuvres, 1968-1969; Mary Douglas, Pure and Danger, 1966; Victor Turner, The Forest of Symbols, 1967; ou Jean Cazeneuve, Sociologie du Rite, 1971). Uma mão cheia de referências, sem valor acrescentado… Lamentavelmente, no que respeita às referências, quantas mais, menos! Esqueci Van Gennep, Evans-Pritchard, Malinowski, Ruth Benedict, Margareth Mead, Gregory Bateson, Edward T. Hall, Georges Condominas, Erving Goffman, Pierre Bourdieu… Esqueci, no mínimo, dezenas de bibliotecas. Paradoxalmente, quantas menos refiro, menos esqueço. Como é belo e tentador não referir. A “vertigem das listas” bibliográficas é um risco. Confessionário e penitências à parte, quem não quero esquecer é o tão esquecido Claude Lévi-Strauss.
Ritos e Mitos. A opinião de Claude Lévi-Stauss. Terre Humaine. RTBF. 07.03.1969. Excerto.
A parte final do filme Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovski, alonga-se sobre um ritual. Promessa sacrificial, incerteza e purificação. A travessia de uma piscina vazia com uma vela acesa na mão. Apagada a vela, recomeça o percurso, solitário, de devoção e purificação. A missão, a fé e a entrega não são meramente individuais. A prova está carregada de símbolos. O simbólico religa. O ritual está ancorado no colectivo, mobiliza o colectivo e destina-se ao colectivo. A purificação e a redenção relevam da comunhão, eventualmente uma solidão comunitária (ver https://wordpress.com/stats/day/tendimag.com). Cada passo na piscina é uma incógnita. Tanto pode aproximar do fim como do início. Cada passo representa um nada necessário ao todo. A vela é uma chama, um chamamento. Sem chama, não há destino, nem caminho. Como diria Lucien Goldmann (Dieu Caché, 1955), os deuses permanecem mudos. Não falam, e nós não os sabemos ouvir. Uma tragédia em sentido duplo.
O protagonista do filme avança com uma vela acesa numa piscina vazia. Pisa charcos de água. A piscina vazia forma um recipiente, uma cavidade. Quanto à água, sobressai como um dos principais símbolos da humanidade. Apenas um apontamento alheio: “As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Estes três temas encontram-se nas tradições mais antigas e formam as combinações mais variadas, ao mesmo tempo que as mais coerentes” (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, 1969). Em termos simbólicos, a vela e a água interligam-se. A piscina forma uma cavidade. Três lugares e elementos de fecundidade e regeneração… Acode-me uma súbita e passageira alergia à semiótica. A vela, a água e a piscina ainda acabam por me levar para além da Índia, e não quero. Não querem tomar conta do leme e prosseguir a navegação? Alguns autores podem soprar nas velas: Gaston Bachelard, L’Eau et les Rêves, 1941; Gilbert Durand, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, 1960; e Georges Vigarello, Le Propre et le Sale, 1987. Os filmes de Tarkovski são autênticos “bancos de símbolos”. Mas, por hoje, basta de escavação semiótica.
Andrei Tarkovski. Nostalgia. 1983. Excerto. Versão original.
Velas
Visitar relíquias faz bem à identidade. Andrei Tarkovski é um realizador de culto. Um Tarkovski é um Tarkovski. Mas há quem o desconheça e ainda menos o admire. Quem quer sentir a repetição lenta da tragédia da vida? Porquê convocar Tarkovski? Porquê ser um grande eco quando podemos ser um pequeno grito? Neste excerto final do filme Nostalgia (1983), um homem cumpre uma promessa: a travessia de uma piscina vazia com uma vela acesa. Um gesto sacrificial que lembra Sísifo. Um ritual de purificação contagiosa que a vela representa. Sobre a vela como símbolo de purificação, Paulo VI dizia:
“A vela simboliza a pura e primitiva fonte em que se devem iluminar as religiosas. Pela sua rectidão e doçura, ela é a imagem da inocência e da pureza (…) A vela é, enfim, destinada a consumir-se em silêncio, tal como a vossa vida se consume no drama, contanto inevitável do vosso coração consagrado” (Paulo VI, 2 de Fevereiro de 1973, in Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, 1969).

Lisa Gerrard.
A vela é um símbolo nuclear na obra de Tarkovski. Recordo o filme Espelho (1975): pousada sobre a mesa da cozinha, uma vela pontua o tempo e a vida.
Lisa Gerrard é Lisa Gerrard. Antes e depois dos Dead Can Dance, antes e depois do Gladiador (2000). Uma voz e um modo de cantar únicos. Alguém se lembrou de fazer bricolage. Extraiu o episódio da piscina e da vela, do filme Nostalgia, de Tarkovski, retirou o som original e substituiu-o pela canção Adrift de Lisa Gerrard (álbum Twilight Kingdom, 2014). O resultado é, no mínimo, interessante.
Antrei Tarkovski, Nostalgia (excerto), 1983 / Lisa Gerrard, Adrift, Twilight Kingdom, 2014.
Públicos da Arte
O anúncio Art Gallery, da Sportsbet Multi Builder, é uma paródia da arte, designadamente da recepção e da avaliação das obras de arte pelos públicos. Trata-se de um tema recorrente. Recordo Mr. Bean às voltas com o quadro Whistler’s mother, o ministro russo que, após visitar o Ocidente, regressa encantado com a arte de fazer arte com lixo (Rafael Pividal, Pays Sages, 1977). Humor à parte, destaque-se, também, a investigação de Pierre Bourdieu sobre os públicos da arte: L’Amour de l’Art (1966) e Un Art Moyen (1965).
Marca: Sporsbet. Título: Art Gallery. Agência: Sportsbet Creative Team supported by DPR&Co. Direcção: Dave Wood. Austrália, Julho 2016.
Elogio da confusão
O General de Gaulle gostava de contar a seguinte anedota:
“Um dia, fui convidado a assistir ao lançamento de um foguetão nos Estados-Unidos. Todos, cada um no seu posto, impecáveis e concentrados. Começa a contagem: 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0… E o foguetão não partiu!
Noutra ocasião, fui convidado a assistir ao lançamento de um foguetão na Rússia. Todos fora de lugar, a comer, a beber, a conversar… 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0… E o foguetão partiu!”
Um filósofo, creio que Giambattista Vico, contrapôs a outro filósofo, creio que René Descartes, que uma “cabeça cheia de ideias claras e distintas” era uma cabeça morta.
Diz-se que da confusão nasce a luz. Mas Blaise Pascal não resiste a complicar: “demasiada luz ofusca”.
Os tempos que correm são favoráveis àqueles que andam com a cabeça cheia de ideias claras e distintas. Os faróis. Para mal dos nossos pecados, nem sombra fazem!
Vêm estes apontamentos a propósito do anúncio Mexican Curious, da DHL. A confusão reina na sinalética das ruas da cidade de México. E, no entanto, aposto que funciona.
Marca: DHL. Título: Mexican Curious. Agência: Ogilvy Mexico. Direcção: Rodrigo Garcia / Luis Villalobos. México, 2005.