Estar comigo é outra coisa

A “série bíblica” do Renault Clio lembra o filme Jesus Cristo Superstar (1973), uma ópera-rock com música de Andrew Lloyd Weber. Destaco a canção I Don’t Know How To Love Him, interpretada por Yvonne Elliman. Gosto de misturar memórias, num encadeamento estranho com voltas que recusam repetir-se. Yvonne Elliman lembra-me a canção Both Sides Now (1969), de Joni Mitchell. “Does anybody here remember Joni Mitchell?” Frequentemente, as obras são cobertas por várias camadas de sedimentos. Como invejo quem desenterrou, das cinzas, a cidade de Pompeia e, dos escombros acumulados, a Domus Aurea. Quando escavo o mundo, descubro-me; quando me descubro, escavo o mundo. Uma mútua arqueologia. Quando estou comigo, apraz-me acreditar que não estou em má companhia.
Superstar

Recorremos à linguagem religiosa para dizer o mundo e a vida. Confessada ou inconfessadamente, latente ou patente. No anúncio do artigo precedente (Receitas Milagrosas), o religioso permanecia latente, subentendido. Na “série bíblica”, da campanha da Renault Argentina, o religioso é patente, explícito.
No primeiro anúncio, um homem (Jesus) aborda uma prostituta, chamada Madalena. Ela lava-lhe os pés (Evangelho de Lucas) e ele perdoa-lhe os pecados (Evangelho de Marcos). Separam-se, Madalena como prostituta perdoada e penitente. O homem (Jesus) desloca-se num Renault Clio dourado (ver Maria Madalena: O Corpo e a Alma).
O segundo anúncio inicia com uma ceia, a “última ceia”. “Jesus” conduz um automóvel com dois ladrões (o bom e o mau?). Capturados pelas autoridades, os automóveis formam uma cruz. O responsável, ao jeito de Pôncio Pilatos, lava as mãos. “Jesus” ressurge ao volante de um Renault Clio. Se o primeiro anúncio foca Madalena, este centra-se na crucificação.
No terceiro anúncio, “Jesus” estaciona o Renault Clio e entra numa casa escura tumular. Encontra um idoso despedido da vida. “Jesus” ilumina e anima a casa e o idoso. O idoso chama-se Lázaro. Estamos, sem dúvida, perante uma ressurreição.
Não sei se estes anúncios relevam de uma catequese secularizada ou de uma publicidade evangélica. Alguma coisa será.
Receitas milagrosas

Em dias de tensa inutilidade, o anúncio C’est Magnifique, do Intermarché, é uma bênção. Desafia-nos a andar sobre as águas de um lago de montanha. Um homem desespera após a morte da companheira. Mortifica-se na lentidão indigente dos dias. Afasta-se das pessoas, dos amigos, da vida. Mas, às vezes, os milagres, que não existem, acontecem: a descoberta do livro de receitas da mulher. Entre a cozinha e o hipermercado, refaz-se a vida. Até os objetos se revitalizam, como num conto de E. T. A. Hoffmann. O compasso é de reconciliação e reparação. São raros os anúncios que conjugam tamanha qualidade e inspiração. Tudo ajuda. Por exemplo, o silêncio inicial e a canção C’est Magnifique, interpretada por Benjamin Biolay. Resultado: uma emoção funda e tranquila, como um murmúrio da alma. O anúncio frisa o religioso, uma religiosidade profana: o livro de receitas é uma mediação numinosa; e o percurso do protagonista, uma ressurreição.
Peixinhos pós-modernos

A publicidade é descaradamente intrusiva. Ubíqua e omnívora, ninguém lhe escapa. Interpela sem pedir licença. Até a consciência dispensa. E expande-se! Apoderou-se, num ápice, da Internet. Intromete-se. Chegamos ao cúmulo de pagar para a evitar. O YouTube é um exemplo. Ao abrir um vídeo, somos agraciados com um mínimo de cinco segundos publicitários. Até em casa, o “último reduto”, a publicidade se insinua. A publicidade é o nosso molho quotidiano. Com a agravante de nos conhecer bem, demasiado bem. Somos uns “peixinhos pós-modernos” (ver vídeo 1). Gansos e tansos. Os anúncios Les Oies e Le Tombeau, da France Televisions Publicité, ilustram, breves como cartoons, a omnipresença absurda da publicidade (ver vídeos 2 e 3).
Cheiro a Primavera

A marca alemã Hornbach habituou-nos a anúncios tão originais quanto delirantes. How Spring Smells não foge à regra. Homens robustos entregam-se a uma jardinagem musculada. As suas roupas transpiradas, embaladas em vácuo, são disponibilizadas em máquinas de distribuição para gáudio dos consumidores estimulados pelo cheiro masculino primaveril. Este anúncio, polissémico, permite, naturalmente, outras leituras.
Anúncios do coração

O anúncio The Desert Cowboys, da Skoda, é uma paródia dos westerns de Sergio Leone. É deveras gratificante ver realizadores investir em pormenores em que poucas pessoas reparam: o anúncio foi rodado no Deserto de Almeria, em Espanha, à semelhança do filme Era Uma Vez no Oeste (1968). Parafraseando Shakespeare, um pormenor, um pormenor, o meu reino por um pormenor! O anúncio aborda o isolamento e a desertificação. Uma realidade premente. Pelos vistos, a Skoda pode ajudar a encurtar distâncias. Os “anúncios do coração” estão na moda. Nem sempre foi assim. Esta irmandade da salvação é recente. Empenhado e esmerado, o anúncio cumpre o que promete.
Quem diz Sergio Leone diz Ennio Morricone, retomado na música do anúncio. Segue uma versão orquestrada da música do filme Era uma vez no Oeste, dirigida pelo próprio compositor. Goste-se ou não. O gosto está em vias de libertação: da vanguarda ou da retaguarda? Das elites ou das massas? A presumida “indústria cultural” não se consubstanciou na desqualificação da criação cultural. Antes pelo contrário, a criação cultural de qualidade parece tender, ao arrepio das hierarquias e dos nichos, a ser inclusiva. O “inacesso” aos bens culturais já não é o que era. Sem barbarização do gosto, nem democratização da cultura. Uma falácia tangível.
Mudam-se as vontades, mudam-se os nomes

“Women want mediocre men, and men are working hard to become as mediocre as possible” (Margaret Mead).
As palavras andam numa autêntica roleta russa. Rotuladas e estigmatizadas, esfregam-se como quem lava o mundo. Participo num evento internacional que alterou o nome por suspeita de machismo. Continha a palavra “homem” (ser humano). O novo título é tão asséptico que nem um elefante o memoriza. Perde a realidade, vence a ideologia.
A palavra é performativa, muda montanhas e rasga oceanos. Uma palavra a mais ou a menos cava um abismo, mormente se for apontada com o dedo em riste, indexada. Entendo, porém, que não se muda uma língua palavra a palavra. Uma língua, dizia Ferdinand de Saussure (Curso de Linguística Geral, 1916), comporta uma visão do mundo. Várias visões do mundo, acrescenta Mikhail Bakhtin (Marxismo e a Filosofia da Linguagem, 1929). Embora “aconteçam coisas com palavras” (John L. Austin, Quando Dizer é Fazer, 1962), o essencial do efeito linguístico é estrutural. Não se combate a ideologia de uma língua a esconjurar palavras.
Tantas certezas têm a virtude de me converter no burro de Buridan, estacado no meio da ponte sem saber para onde se virar. Um burro, mas um burro velho avesso a cenouras, censuras e catequeses. Um asno que dispensa que lhe ensinem como escrever, dizer ou pensar. O anúncio, excelente, The Unbias Botton, da ElaN Languages, configura uma página de censura e tradução? Parece, mas provavelmente não.
Na verdade, o meu comentário é redutor e ligeiro. O que está em causa não é alfinetar esta ou aquela palavra mas lançar acendalhas na fogueira da luta contra a dominação de género. Sustentar o contrário não é apaziguar mas atear a fogueira com aguardente. Há situações como esta, simbolicamente densas, que nos conduzem a uma situação de duplo vínculo, a uma dilaceração sem saída.
Lamentação

Quando a lamentação é superlativa, não basta lamentar.
Alguma música arménia, especialmente acompanhada por duduk, oferece-se como um interminável lamento. Sorrow de Hans Zimmer & Lisa Gerrard assemelha-se a um lamento arménio e a voz a um duduk.
A valsa das flores

Cinquenta e cinco primaveras. Uma “Valsa da Primavera”, do Frédéric Chopin, vinha a propósito, mas a música é, afinal, de Paul de Senneville (Mariage d’Amour, 1979). Existem, porém, muitas páginas na Internet a apresentar a música como sendo de Chopin. Uma dessas páginas tem mais de 84 milhões de visualizações. A Internet também (se) engana!
Paul de Senneville compôs vários sucessos. Por exemplo, a Ballade pour Adeline (1977) e a Song of Ocarina (1991). Revisito uma música que brilhou e invernou: Dolannes Melodie (1975).