Archive | Junho 2015

A morte saiu à rua

Triunfo e Dança da Morte. Clusone. Dornai. Séc. XV.

Triunfo e Dança da Morte. Clusone. Dornai. Séc. XV.

Os gatos têm sete vidas, mas os homens têm mais mortes. A publicidade aposta no tópico da morte. Regressa o espantalho esquelético que a todos abraça sem pudor. Uma morte louca, sinistra, próxima, digital, embalsamada no tempo.

António Sampaio. Espantalho crucificado.

António Sampaio. Espantalho crucificado.

A morte é o nosso fantasma de estimação. Somos uma sociedade mortífera, não porque se mate ou morra mais, mas porque andamos com a sombra da morte na ponta do nariz. É certo que a Idade Moderna esconjurou a morte do quotidiano, mas ela nem por isso deixa de nos dar a mão e de nos guiar como nos frisos das igrejas medievais. Na vida como no ecrã, a morte, essa assombrosa sedutora, dança, dança nos videojogos, nos anime, nos filmes, nas séries televisivas, nos telejornais, nos nossos muitos medos.

George Grosz. Exequias. Dedicado a Oskar Panizza, 1918.

George Grosz. Exequias. Dedicado a Oskar Panizza, 1918.

O anúncio The man who died the most on movies surpreende com uma avalanche de sequências de mortes. Espera-se que, graças ao cómico, a catarse aconteça: rir da morte. Mas quem costuma rir não é o homem, mas a morte, a “morte risonha”. O nosso riso desbota até ficar amarelo. A morte sai à rua, como nos quadros de James Ensor, Otto Dix ou George Grosz. A morte adora um pé de dança. Dêmos-lhe música: “A morte saiu à rua”, de José Afonso (1972) e “The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).

Anunciante: French Health Department AD. Título: The man who died the most on movies. Agência: DDB, Paris. Direcção: Alexandre Hervé. França, Junho 2015.

José Afonso. A morte saiu à rua. 1972.

“The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).

Arcanjos e anjos da guarda

cspi-change-the-tuneArcanjos, anjos da guarda, anjos caídos e anjos papudos… Não gosto de nenhuns, especialmente dos arcanjos e dos anjos da guarda, tão empenhados em nos salvar. Na publicidade, os arcanjos estão em voga: fundações e institutos públicos zelam por nós.
Neste prenúncio de um suposto novo Apocalipse, à Peste, à Guerra, à Fome e à Morte, acrescentam-se a soda, o álcool, o tabaco, o sexo, a circulação rodoviária e a obesidade. Os arcanjos e os anjos da guarda reforçam-se com a multiplicação de estudos e campanhas. Pretendem salvar-nos de nós próprios (expressão funesta na história da humanidade). Mas a batalha é incerta e as vitórias, frouxas.Não faltam, porém, recursos e argumentos:
– hinos e cânticos
– Imagens chocantes;
– intrusão na intimidade alheia;
– discriminação, estigmatização e culpabilização;
– exibição de monstruosidades;
– banalização da censura;
– suporte da lei e da ordem;
– profecia (vai ter uma morte lenta e dolorosa);
– ciência, medicina e estatísticas;
– pragas e ameaças (se continuar, vai ter várias mortes).
Em suma, a arte da lixívia na qualidade de vida e na limpeza civilizacional.

Anunciante: Center for Science in The Public Interest TV. Título: Change de Tune. Agência: Lumenati. USA, Junho 2015.

the_muppets_28058O anúncio Change the Tune, do CSPI TV (Center for Science in the Public Interest TV) foi publicado a semana passada. No que respeita às bebidas com soda, parece ter chegado a hora de mudar o disco. Este anúncio assemelha-se ao anúncio Unsweetened Truth, da American Legacy Foundation / Truth, de 2011. Ambos os anúncios são muito bons, no género, e recorrem a testemunhos presenciais de vítimas, demarcando-se de anúncios de sensibilização que optam pela alegoria ou pela animação (eg, as campanhas de prevenção da sida). A espetacularização das vítimas (desfile, coro), corre o risco de transformar pessoas reais em bonecos imaginados. Georg Simmel e György Lukacs chamam reificação a este fenómeno. Numa sociedade de espectáculo global, também se podia chamar, com alguma irreverência, muppetsation.

Anunciante: America Legacy Foundation/Truth. Título: Unsweetened Truth, Agência: Arnold, Boston. Direcção: Baker Smith. USA, Março 2011.

Teimoso e despistado

Em 1567 artigos do Tendências do Imaginário, pouco falei de mim. A quem interessa? Sabe-se que sou sociólogo, professor universitário, fumador e pouco mais. O meu rapaz mais novo, o Fernando, descobriu, há dois ou três dias, uma página que me é dedicada e que, no meu alheamento crónico, desconhecia. Trata-se de um trabalho realizado por Filipa Magalhães e Ricardo Grilo, ambos licenciados em ciências da comunicação. Os textos e os vídeos incidem sobre o meu tempo de estudante em Braga e em Paris. O período mais turbulento e mais suculento da minha vida. Salpicos biográficos. A Filipa e o Ricardo desencantaram, ainda, o meu rapaz mais velho, o João, bem como o Álvaro Domingues, amigo de infância, e a Ana Moreira, minha aluna. Gosto do resultado. A não ser mais, constata-se que, no meu caso, a escrita é muito mais fresca do que o autor.

Para aceder à página carregue na imagem ou no seguinte endereço: http://ensinopij1314.weebly.com/vocaccedilatildeo.html.

Teimoso e despistado

Uma regra rígida e uma prática mole (Alexis de Tocqueville)

Alexis de Tocqueville

Alexis de Tocqueville

O artigo O Triunfo das Salsichas abre com uma citação de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Atendendo às frases seguintes, sabe a pouco. Tocqueville é um dos grandes autores da sociologia e da ciência política. Século e meio depois, a sua obra permanece actual. Neste excerto de O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville desmonta as formas de governo do Antigo Regime e dos países da Europa do Sul.

“Vê-se que a história é uma galeria de quadros com poucas obras originais e muitas cópias.

Aliás é preciso admitir que na França o governo central jamais imita os governos do sul da Europa, que dão a impressão de só se terem apoderado de tudo para deixar tudo estéril. Aqui demonstra muitas vezes uma grande inteligência na execução de sua tarefa e sempre uma grande atividade. Mas esta actividade pode tornar­-se improdutiva e até nociva porque quer às vezes realizar coisas que ultrapassam suas forças ou então faz coisas que ninguém controla.

Poucas coisas inovam e chegam a abandonar as reformas as mais necessárias, cujo êxito exigiria uma energia perseverante, e muda sem cessar algum regulamento ou alguma lei. Nada permanece por algum tempo como está na esfera em que manda. Novas regras sucedem-se com uma rapidez tão singular que os agentes obrigados a obedecer a tantas ordens sucessivas muitas vezes não conseguem descobrir de que maneira é possível fazê-lo. Funcionários municipais queixam-se ao controlador geral da extrema mobilidade da legislação secundária. Dizem que “a variação dos decretos sobre as finanças é tamanha que não dá tempo a um funcionário municipal, mesmo inamovível, de se dedicar a outra coisa que ao estudo dos novos decretos à medida que surgem e que tanto o ocupam que tem de descuidar de todo o resto”.

Mesmo quando uma lei não mudava, a maneira de aplicá-la variava. Quem não teve a oportunidade de observar o funcionamento da administração do antigo regime através da leitura dos documentos secretos que deixou não pode ter uma idéia do desprezo que a lei acaba despertando até mesmo no espírito daqueles que a aplicam, quando não existem mais nem assembléias políticas, nem jornais para freiar a atividade caprichosa e o humor arbitrário e volúvel dos ministros e de seus assessores.

Raras são as decisões do Conselho que não se referem a leis anteriores, às vezes recentes, que foram decretadas mas jamais executadas. Não existem editais ou declarações do rei nem cartas patentes solenemente registradas que não tenham sofrido mil alterações na prática. As cartas dos controladores gerais e dos intendentes mostram que o governo sempre permite exceções. Raramente desobedece à lei, mas dobra-a em todos os sentidos conforme casos particulares e para a maior facilidade dos negócios.

O intendente escreve ao ministro sobre o caso de um direito de outorga ao qual um adjudicador das obras públicas queria esquivar-se: “É evidente que a estrita obediência aos editais e decretos que acabo de citar não permite que isentemos pessoa alguma destes direitos. Mas quem conhece bem os negócios sabe que existem meios de tratar estes dispositivos imperiosos da mesma maneira que as penas que impõem e que, apesar de encontrá-los em quase todos os decretos, declarações e editais referentes à criação de impostos, isto jamais impediu que houvesse exceções.”

Eis todo o antigo regime e toda sua caracterização: uma regra rígida e uma prática mole” (Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 1856; Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997, pp. 97-98).

Patinagem

rekorderlig-cidre-skaters

Este anúncio sueco é simplesmente fantástico. Aguardo os vossos comentários.

Marca: Rekorderlig. Título: Silver Skaters. Agência: Saatchi & Saatchi (London). Direcção: Andreas Nilsson. Suécia, Junho 2015.

O triunfo das salsichas

“Vê-se que a história é uma galeria de quadros com poucas obras originais e muitas cópias” (Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução. 1856)

SalsichaAs salsichas, se não estão a caminho de Hollywood, vingam, pelo menos, em Cannes. Moles e flexíveis, de animais marinhos a fãs de raves, as salsichas têm mil rostos.
Deparar com anúncios publicitários parecidos é uma surpresa corrente. No anúncio, surrealista, da BestDay (Sausage, 2015), uma salsicha gigante encalhada na praia é resgatada por um grupo de pessoas. Algumas sequências lembram, porém, o anúncio português Whale (Optimus, 2004): http://tendimag.com/2012/01/03/a-tribo-da-baleia/.

Marca: BestDay.com. Título: Sausage. Agência: McCann Mexico. Direcção: Gonzalo Oliveró. México, Junho 2015.

Os anúncios La Saucisse (Orangina, 2000) e Rave Party (Vizzavi, início dos anos 2000) parecem sósias. Os anúncios publicitários adoptam, assim, a citação sem aspas. De qualquer modo, um anúncio (Rave Party) que convoca a voz e a música dos filmes de Jacques Tati aproxima-se de uma citação que frisa a originalidade eterna.

Marca: Orangina. Título: La Saucisse. Direcção: Alain Lambert. França, 2000.

Marca: Vizzavi. Título: Rave Party. Produção: Wanda. Direcção: Pierre Coffin. França, início dos anos 2000.

Humanidade

O Salto 2

O papel da dor, das decepções e dos pensamentos sombrios não é de nos amargar, de nos fazer perder o nosso valor e a nossa dignidade, mas de nos amadurecer e de nos purificar (Hermann Hesse, Peter Camenzind, 1904).

Tendemos a associar o miserável e o doloroso ao desumano. Não é evidente! A emigração clandestina para França representou uma provação física e moral enorme, o que não impediu gestos de solidariedade e humanidade assinaláveis. Os primeiros tempos em terra alheia foram, frequentemente, marcados pelo desânimo. Nem por isso a humanidade desertou os contentores dos estaleiros (chantiers), os hotéis superlotados ou os bairros da lata (http://tendimag.com/2011/09/07/tina-a-menina-do-bairro-de-lata-de-paris/).

Emigrante a fazer a barba um estaleiro (chantier)

Emigrante a fazer a barba num estaleiro (chantier). Espaço Memória e Fronteira. Melgaço.

É, no entanto, nas ruas da cidade que mais paira a sombra do desencontro e da solidão O emigrante deambula por todo o lado, mas pouco ou nada reconhece; olha para toda a gente, ninguém o vê. Um estranhamento desamparado. Christian de Chalonge filma este sentimento de invisibilidade no filme O Salto (1967).

Uma pausa no trabalho. Diário de um emigrante. Notícia no jornal regional. Painel do Espaço Memória e Fronteira. Melgaço.

Uma pausa no trabalho. Diário de um emigrante. Notícia de jornal regional. Painel do Espaço Memória e Fronteira. Melgaço.

Não se pense, porém, que a dignidade humana prefere os corredores atapetados do poder aos caminhos enlameados do bairro de lata. A humanidade é uma dádiva. Sem dono, nem lugar cativo, não se decreta, nem se negoceia, acontece.

Vale a pena visitar o Espaço Memória e Fronteira, museu da emigração e do contrabando, em Melgaço.

Besta radical

TomTom. King of the mountains

Vous m’offrez la cité… je préfère les bois, car je trouve, voyant les hommes que vous êtes, plus de coeur aux rochers, moins de bêtise aux bêtes (Victor Hugo).

Adoramos humanizar as bestas. Se calhar, fazemos mal: as bestas são menos bestas e mais bestiais do que os homens. Neste anúncio, o bode é curtido: radical até à ponta dos pelos, numa paisagem esplêndida.

Marca: TomTom. Título: King of the Mountain. Agência: DDB & Tribal Amsterdam. Holanda, Junho 2015.

Janus

Janus. Watercolour by Tony Grist. 2011.

Janus. Watercolour by Tony Grist. 2011.

O templo de Janus, deus romano dos destinos, das encruzilhadas, das passagens e das portas, permanecia aberto em tempo de guerra e fechado em tempo de paz. Janus tinha duas faces, uma voltada para o passado, a outra, para o futuro. Se Janus congrega passado e futuro, guerra e paz, passagem e porta, então os contrários interagem, não para se ultrapassar ou anular, mas para coexistir dialogicamente.  Sem pedir licença à razão categórica, a virtude emerge do vício, a ternura abraça o monstro, o desagradável agrada e o baixo um dia se elevará.

Bust of the Roman god Janus. 1569.

Bust of the Roman god Janus. 1569.

Vem esta lengalenga a propósito do anúncio Bratfast in bed, às salsichas Johnsonville. O pai, vítima de um pesadelo ou de um delírio, é assolado por imagens insólitas de salsichas. Nem por isso resiste a um bratwurst. Combinando humor e desconforto, espera-se que o próprio espectador, a seu tempo, não resista à tentação.

“Há anúncios que convocam maus sentimentos e péssimos valores (e.g, anúncios do Ford Sport Ka). Já se sabe! Há anúncios que em vez do produto mostram maus sentimentos e péssimos valores. Fica a saber-se! Mas contam uma história, entranham-se e vendem!” (http://tendimag.com/2012/05/17/amizade-sobre-rodas/).

Marca: Johnsonville. Título: Bratfast in bed. Agência: Droga5. Direcção: Ray Tintori. USA, Junho 2015.

Pirilampo

Greenpeace sunshineA história do homem-máquina baralha-me os fusíveis. Nos anúncios indianos da Happydent, os dentes funcionam com lâmpadas (Dentes brilhantes). Neste anúncio, de 2007, da Greenpeace, os cús são candeeiros, à semelhança do pirilampo, também conhecido por caga-lume ou luzecu. É o advento do Homo Luzecus. Gosto do anúncio. Está no topo da escala do grotesco.

The Doors Brodsky window

The Doors Brodsky window

No meio de tanto nu, custa compreender a mensagem. Para poupar energia, acenda o rabo? Quando dispensar a luz, instale uma ventoinha eólica para aproveitar os “ventos de baixo”? Não, não é essa a mensagem. A mensagem é clara e contundente: use lâmpadas económicas com eficiência energética, como aquelas que tornam as cidades mais inteligentes. Enfim, uma Greenpeace pró-activa. Depois de tanta luz, deixemos os The Doors acender o fogo, numa interpretação ao vivo de Light My Fire (1968).

Anunciante: Greenpeace. Título: Sunshine. Agência: Escape Partners. Direcção: Sven Harding. UK, 2007.

The Doors. Light My Fire. Live in Europe 1968.