Uma regra rígida e uma prática mole (Alexis de Tocqueville)
O artigo O Triunfo das Salsichas abre com uma citação de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Atendendo às frases seguintes, sabe a pouco. Tocqueville é um dos grandes autores da sociologia e da ciência política. Século e meio depois, a sua obra permanece actual. Neste excerto de O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville desmonta as formas de governo do Antigo Regime e dos países da Europa do Sul.
“Vê-se que a história é uma galeria de quadros com poucas obras originais e muitas cópias.
Aliás é preciso admitir que na França o governo central jamais imita os governos do sul da Europa, que dão a impressão de só se terem apoderado de tudo para deixar tudo estéril. Aqui demonstra muitas vezes uma grande inteligência na execução de sua tarefa e sempre uma grande atividade. Mas esta actividade pode tornar-se improdutiva e até nociva porque quer às vezes realizar coisas que ultrapassam suas forças ou então faz coisas que ninguém controla.
Poucas coisas inovam e chegam a abandonar as reformas as mais necessárias, cujo êxito exigiria uma energia perseverante, e muda sem cessar algum regulamento ou alguma lei. Nada permanece por algum tempo como está na esfera em que manda. Novas regras sucedem-se com uma rapidez tão singular que os agentes obrigados a obedecer a tantas ordens sucessivas muitas vezes não conseguem descobrir de que maneira é possível fazê-lo. Funcionários municipais queixam-se ao controlador geral da extrema mobilidade da legislação secundária. Dizem que “a variação dos decretos sobre as finanças é tamanha que não dá tempo a um funcionário municipal, mesmo inamovível, de se dedicar a outra coisa que ao estudo dos novos decretos à medida que surgem e que tanto o ocupam que tem de descuidar de todo o resto”.
Mesmo quando uma lei não mudava, a maneira de aplicá-la variava. Quem não teve a oportunidade de observar o funcionamento da administração do antigo regime através da leitura dos documentos secretos que deixou não pode ter uma idéia do desprezo que a lei acaba despertando até mesmo no espírito daqueles que a aplicam, quando não existem mais nem assembléias políticas, nem jornais para freiar a atividade caprichosa e o humor arbitrário e volúvel dos ministros e de seus assessores.
Raras são as decisões do Conselho que não se referem a leis anteriores, às vezes recentes, que foram decretadas mas jamais executadas. Não existem editais ou declarações do rei nem cartas patentes solenemente registradas que não tenham sofrido mil alterações na prática. As cartas dos controladores gerais e dos intendentes mostram que o governo sempre permite exceções. Raramente desobedece à lei, mas dobra-a em todos os sentidos conforme casos particulares e para a maior facilidade dos negócios.
O intendente escreve ao ministro sobre o caso de um direito de outorga ao qual um adjudicador das obras públicas queria esquivar-se: “É evidente que a estrita obediência aos editais e decretos que acabo de citar não permite que isentemos pessoa alguma destes direitos. Mas quem conhece bem os negócios sabe que existem meios de tratar estes dispositivos imperiosos da mesma maneira que as penas que impõem e que, apesar de encontrá-los em quase todos os decretos, declarações e editais referentes à criação de impostos, isto jamais impediu que houvesse exceções.”
Eis todo o antigo regime e toda sua caracterização: uma regra rígida e uma prática mole” (Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 1856; Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997, pp. 97-98).
Toda a regra rígida promove “prática mole”? Parece-me, na base das salsichas, o contrário, a prática mole, promove regras rígidas!