A cerveja e o monstro
“Desejamos a verdade e apenas encontramos incerteza” (Blaise Pascal, Pensées, 401-437). “Todos erram tanto mais perigosamente que cada um segue uma verdade; a sua falta não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir uma outra verdade” (Blaise Pascal, Pensées, 443-863).
Há quem abuse do verbo lembrar. Lembrar é convocar e, porventura, comparar, sem pagar portagem à verdade. O pensamento respira; não possui a verdade, nem a verdade o possui.
Que lembra o anúncio Face the darkness, da Einstök? Ao meu rapaz acodem-lhe os videojogos. E ilustra com uma cena do Final Fantasy XV (ver vídeo 2). Anúncio e videojogo, ambos lembram um exorcismo. No anúncio, o título, a postura, o monstro, a convulsão cósmica, a garrafa/crucifixo e, por último, a domesticação/humilhação da besta. No videojogo, embora menos evidente, a ameaça e a derrota do monstro mediante uma espada/crucifixo.
Que tem o exorcismo a ver com o nosso tempo? A sua existência não é menosprezável. Pratica-se na substância e exporta-se na forma.
Entretanto, aguarda-se uma nova linha de cerveja: com ou sem baba de monstro.
Marca: Einstök. Título : Face the darkness. Agência : Filakademie Baden-Wurttember. Direcção: Andreas Bruns. Islândia, Setembro 2016.
Final Fantasy XV. Stand together. Novembro 2016.
Triumvirat
É hora de dar folga aos olhos. Os Triumvirat são um grupo alemão de rock progressivo activo entre 1969 e 1980. Publicaram sete álbuns, mas passaram algo despercebidos num tempo em que a concorrência era dura. Poucos jovens dos anos setenta os conheceram, muito menos dos anos 2010. Encontrar alguém que goste dos Triumvirat é como fotografar um extraterrestre na praia de Copacabana. Não conhecer e, eventualmente, não gostar é recomendável. Gostar é apegar-se. E apegar-se é abdicar de liberdade líquida. Apegar-se? É melhor escorregar! Aprecio o modo como os Triumvirat combinam ritmo e melodia. Seguem um pequeno excerto (Dawning), do álbum Illusion On A Double Dimple, de 1974 (ouvir álbum em: https://www.youtube.com/watch?v=gWOY4uLpxgI), e a canção The Deadly Dream Of Freedom, do álbum Spartacus, de 1975 (ouvir álbum em: https://www.youtube.com/watch?v=SNY8JqtYmcU).
Triumvirat. Dawning. Illusion On a Double Dimple. 1974.
Triumvirat. The Deadly Dream Of Freedom. Spartacus. 1975.
Nanotecnologia do conhecimento
Em França, nos anos setenta, a televisão passava um programa chamado “Histoires sans paroles”, dedicado a curtas-metragens mudas e cómicas. Não falhava uma! Aprecio coisas breves com impacto. Aflige-me a perspectiva de escrever um livro, que começa e acaba com a mesma ideia, abraçando uma a uma todas as páginas. Incomoda-me propor pastilhas elásticas a cérebros alheios. Escrever não é soprar balões! Ainda há quem acredite que os livros pequenos contêm ideias curtas e os livros enormes, grandes ideias. É um sonho escrever numa dezena de linhas um assunto que justificaria uma dúzia de páginas. Também nisso sou um tosco herdeiro de Pascal. Eis porque me entretenho com anúncios publicitários e artigos de blogue. Ambos minúsculos, mas densos. Uma nanotecnologia do conhecimento.
O anúncio Old friends, da Amazon, é de uma originalidade bem destilada. Lembra os Reis Magos: ajoelha-te, reza e oferece. Oferece ao outro aquilo que desejas para ti. Por exemplo, umas joelheiras. De preferência, ecuménicas como as multinacionais.
Marca: Amazon. Título: Old friends. Agência: Joint London. Reino Unido, Novembro 2016.
The Special One

Edgar Degas. Arabesque. Modeled 1885-90.
Abordámos, no artigo anterior, o tópico do excluído menosprezado que consegue ascender a uma posição de topo, mediante a superação de uma prova, fantástica ou natural. Cinderela, humilhada pela família e ajudada pelas fadas, dança, calça o sapatinho e casa com o príncipe. Se há arquétipos, este é um arquétipo. Impregna o imaginário, os media e a vida quotidiana. A predestinação ou o chamamento implicam uma travessia, de mau a bom porto, sobressaltada por provas mais ou menos homéricas. A Cinderela e o Patinho Feio trazem à memória a glória dos santos mártires e o exemplo do self made man. The special one and the choosen one legends. O anúncio Ingrid Silva, da Activia, navega nestas águas. “Born in a poor Rio neighborhood, Ingrid Silva became a professional ballerina in New York. She is regarded as one of the world’s best emerging dancers”.
Marca: Activia. Título: Ingrid Silva. Agência: Wunderman Paris. França, Junho 2016.
O lindo patinho feio
O anúncio Ginger Deer, da Lowe’s, é uma revisitação do conto “o patinho feio” (1843), de Hans Christian Andersen. O tópico é banal, mas pungente. Toca numa das feridas mais simbólicas da humanidade: a exclusão. O excluído acede às chaves da comunidade. Acontece com o conto Cinderela (1697), de Charles Perrault, ou com o anúncio Frankie da Apple (O monstro e a Boneca). A inversão (excluído/incluído) pode ser extrema: a Gata Borralheira ascende de vítima a princesa; o patinho feio descobre-se cisne majestoso. No anúncio da Lowe’s, uma bolacha singulariza-se por ter chifres. É rejeitada pela comunidade dos objectos animados. Entretanto, vence uma prova: o humano não consegue mergulhá-la no copo de leite por causa dos chifres, um defeito que se revela uma virtude. A comunidade dos objectos animados aceita-a de braços abertos. O estigma transforma-se em símbolo de status (Erving Goffman, Estigma, 1963). Bem-aventurados os patinhos feios que deles será o reino dos cisnes!
Marca: Lowe’s. Título: Ginger Deer. Agência BBDO (New York). USA, Novembro 2016.
Em verdade vos digo
“Nós conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração” (Blaise Pascal, Pensées).

House of Fabergé. Gatchina Palace. 1901.
Existem as verdades comprovadas pela ciência e pelos tribunais. Mas também existem verdades assentes, não na prova, mas na fé. Ambas são reais nas suas consequências (William I. Thomas). Quando uma criança assume uma fantasia em que acredita, não mente, partilha. “If you believe is real”. Nestes casos, os polígrafos resultam inúteis. A fé e a crença não se esgotam nos arabescos mecânicos. Quando acredito na mentira, não minto, quando muito estou iludido. “O coração tem razões que a razão desconhece” (Blaise Pascal, Pensées).
Há anúncios que são geniais. Pela ideia e pelo modo. O Polígrafo, da Unicenter, é um ovo de Colombo russo, um ovo de Fabergé.
Marca: Unicenter. Título: Polygraph. Agência: TBWA (Buenos Aires). Direcção: Javier Nir, Pablo Fisherman. Argentina, Novembro 2016.
Nota de rodapé
O ser humano é um “nada perante o infinito, um tudo perante o nada, um meio-termo entre o nada e o tudo” (Blaise Pascal, Pensées)
Do australopiteco ao pós-moderno, o animal humano pouco mudou: o mesmo cérebro, o mesmo corpo, o mesmo ADN. Variaram, é verdade, a técnica e a cultura. Os autores clássicos da Antropologia Cultural advertem-nos que não existem culturas melhores que outras. A cultura é, porventura, a mais relativa das realidades relativas. O corolário do relativismo cultural é a diversidade cultural. Em todas as culturas, o mesmo animal. Chama-se Homo Sapiens e vive na Terra há mais de 200 000 anos.
O homem pós-moderno é uma nota de rodapé no livro da humanidade. Para sair do rodapé, importa ler o livro da humanidade. Uma história de violência, perseguição e intolerância. Não só, naturalmente! O nosso tempo também é de violência, perseguição e intolerância. Corremos o risco de não nos dar conta porque, umbilicais, deixámos de ter a humanidade como espelho. Passa-nos ao lado quão humanos somos. O homem aprende com o homem. Somos “um nada perante o infinito, um tudo perante o nada”. Entre o nada e o tudo, algo sobrará. É postura avisada olhar para o outro e ver o outro em nós. Importa abrir o livro. O homem deve ser do tamanho do homem. Não é impossível. Atente-se, por exemplo, em Montesquieu, Max Weber, Marcel Mauss, Norbert Elias ou Mikhail Bakhtin.
Pensa um pouco menos na pós-modernidade e um pouco mais na humanidade e talvez te conheças com mais discernimento.
Os gatos e os automóveis
O que há de comum entre um gato e um automóvel? Ambos dão voltas. Segundo o anúncio russo Cats, o Smart fourfour dá voltas mais apertadas. É recordista na classe. Se o anúncio ao Smart pendura objectos nas caudas dos gatos, a Kotex cola-lhes fitas adesivas em diversas partes do corpo. O resultado é estranho (ver https://tendimag.com/2016/10/14/o-periodo/). Pobres gatos! E o pior ainda está para vir. No anúncio Funny Cat, o gato fica perdido de amores por um Toyota Corolla. Para andar no automóvel, repete acidente após acidente. Assim, desfruta do carro a caminho da clínica veterinária. As desventuras do gato fisgado provoca um misto de humor e compaixão. Que os gatos têm sete vidas atesta-o a parte final do anúncio: a pata do gato irrompe da sepultura.
Marca: Smart. Título : Cats. Agência : Decembrist. Direcção : Ivan Egorov. Rússia, Novembro 2016.
Marca: Toyota Corolla. Título: Cat. Agência: Saatchi & Saatchi New Zealand. Direcção: Hamish Rothwell. Nova Zelândia, Outubro 2012.
O ceptro e a consola
“O meu reino por um cavalo”
(William Shakespeare, Ricardo III)
Gonzalo Torrente Ballester escreveu, inspirado em Filipe IV de Espanha, a Crónica do Rei Pasmado (1989). Pois o rei do anúncio da Playstation 4 troca o prazer pasmado da corte pela violência gloriosa de um cavalo digital. “Follow the king in his journey to find his greatness”. Com a devida imersão, a emoção não é um espectáculo mas uma demanda e uma conquista. O tédio é o inimigo do homem electrónico; o poder e a adrenalina, o seu vício. O ceptro não é nada ao lado de uma consola. Quanto ao anúncio, pouco a dizer: como de costume, a Sony galopa a caminho da perfeição.
A música de fundo é uma adaptação, ao jeito dos videojogos, da canção Sweet Dreams (Are Made of This) dos Eurythmics (1983). Para além do vídeo oficial da canção original, acrescento a versão grotesca de Marylin Manson (1995). Estas interpretações são tão diferentes que não perdem em aparecer juntas.
Marca: Playstation 4. Título: The King. Agência: BBH (New York). Direcção: Martin de Thurah. Estados Unidos, Novembro 2016.
Eurythmics. Sweet Dreams (Are Made of This). Sweet Dreams. 1983.
Marylin Manson. Sweet Dreams (Are Made of This). Smells Like Children. 1995.
O monstro e a boneca
Por que motivo os humanos recorrem ao não humano para dizer o humano? Esta é uma pergunta repisada. Por quê convocar animais, bonecos, desenhos, marionetas, monstros, ciborgues? Na publicidade, no cinema, nos videojogos, nos vídeos musicais, na arte, na literatura… Será porque dão a ver, como diria o Principezinho, um esboço do essencial? Porque configuram uma alavanca para a imaginação? Estranha forma de olhar, estranha forma de espelho! Perante um monstro ou uma marioneta, somos compelidos, como diria McLuhan, a participar na comunicação. Passará o reconhecimento e a adesão pela ritualização fetichista da diferença? Qual seria o efeito emocional do anúncio da McDonald’s se a boneca fosse substituída por uma mulher? E se, no anúncio da Apple, Frankie fosse substituído por um modelo masculino?
Marca: McDonald’s. Título: Juliette the doll. Agência: Leo Burnett (London). Direcção: Gary Freedman. Reino Unido, Novembro 2016.
Marca: Apple. Título: Frankie’s Holiday. EUA, Novembro 2016.