Inflação, poder de compra e desigualdades sociais

O Xerfi Canal (https://www.xerficanal.com/) é uma “revista online sobre o mundo da economia, a estratégia e a gestão das empresas”. Publica diariamente um comentário temático conciso e claro, hoje, 19.01.2023, dedicado à evolução recente da relação entre a inflação, o poder de compra e os rendimentos. O foco é a França, mas estou em crer que a análise é extensível aos demais países da União Europeia, incluindo Portugal. Partilho o vídeo, em francês, seguido por uma tradução livre e algo apressada.
“Sondagem após sondagem, o poder de compra ocupa o primeiro lugar nas preocupações dos franceses. Isso não tem nada de surpreendente uma vez que há meses que os agregados domésticos evidenciam uma degradação clara da sua situação financeira e não aguardam nenhuma melhoria a curto prazo. Os dados do INSEE [equivalente francês do INE] comprovam-no. É verdade que o rendimento real dos franceses embora ameaçado não sofre uma quebra expressiva. Convém equacioná-lo por unidade de consumo de modo a contemplar o fato de, por um lado, se repartir por um número crescente de habitantes e, por outro, de a vida em comum permitir, graças a economias de escala, reduzir determinadas despesas tais como as do alojamento. A evolução da dimensão dos agregados domésticos possui também alguma importância.
Sob esta luz, a tendência resulta menos favorável: o poder de compra baixou 0,6% no ano passado, o que não é muito. Recuando um pouco no tempo, o poder de compra por unidade de consumo mantém-se acima do nível anterior à crise e, recuando ainda mais, o refluxo de 2022 não tem comparação com o registado entre 2011 e 2013. A estatística é, mais uma vez, posta à prova pela experiência da vida quotidiana e surge desfasada da realidade vivida por muitos cidadãos.
Para explicar este hiato, importa reconsiderar o fator atual que mais pesa sobre o rendimento: a descolagem dos preços no consumo. Trata-se de uma inflação geradora de desigualdades profundas. A progressão dos preços não é homogénea e incide, nos dois últimos anos, num núcleo principal, a energia, e num núcleo secundário, a alimentação. Por seu turno, os aumentos dos preços dos produtos manufaturados e dos serviços têm revelado maior contenção. Acontece que a exposição dos agregados domésticos, bastante elevada e muito concentrada, varia significativamente consoante o respetivo nível de vida, devido à estrutura do consumo acentuadamente diferenciada.
A fatura energética é um dos elementos inerentes ao alojamento. Para os mais desfavorecidos representa acima de 6% das suas despesas totais contra menos de 4% no topo da escala. O mesmo sucede no que respeita à despesa alimentar cujo peso diminui à medida que o nível de vida aumenta. A situação pode resumir-se da seguinte forma: a baixo nível de vida, preços altos; a nível de vida alto, preços baixos. Acresce uma amplificação conforme se seja rural ou urbano, por causa da progressão dos preços dos carburantes. Não existe, portanto, apenas um mas vários poderes de compra consoante o grau de exposição ao lote dos consumos mais inflacionistas.
Mas este não é o único fator de desigualdade. Subsiste outro mais importante associado à parte do rendimento consagrada ao consumo, logo diretamente impactada pela subida dos preços: 20% dos agregados domésticos mais modestos gastam mais de 97% dos seus rendimentos contra menos de 72% dos mais favorecidos, uma diferença de 26 pontos. Dito de outro modo, a quase integralidade do rendimento dos mais pobres é alocada às despesas quotidianas; em contrapartida, os mais favorecidos conseguem poupar cerca de 30%. O impacto é duplo. Primeiro, os franceses do topo conseguem manter o seu nível de despesas modificando a sua dosagem entre consumo e poupança; segundo, uma proporção dos seus rendimentos é parcialmente preservada pela evolução da remuneração das suas poupanças. Ocorre o contrário quando nos posicionamos no baixo da escala: quando os rendimentos não acompanham até à vírgula, ou quase, a evolução dos preços do respetivo cabaz, torna-se então necessário efetuar cortes claros nas despesas quotidianas porque não existe, ou existe muito pouca, gordura para ajustamento. Apenas um euro em cada três de despesas comprimíveis para estes; um euro em dois para os outros.
Em suma, para uma parte crescente da população rematar o fim do mês acaba por ser impossível sem recurso ao crédito renovável, também chamado crédito permanente ou revolving, modalidade de pagamento, uma espécie de reserva, geralmente associada a um cartão de crédito, cada vez mais mobilizada pelos agrupamentos domésticos para as suas compras correntes, cujas pendências estão em forte crescimento, embora partam de uma base baixa. A outra solução consiste no recurso às contas a descoberto, tendência manifesta no aumento explosivo da curva das contas correntes de débitos que já ultrapassam os 10 bilhões de euros e representam mais de 5% do conjunto dos créditos ao consumo, alcançando o nível mais alto dos últimos 20 anos. Constituem, porém, práticas onerosas que comportam um peso acrescido no orçamento dos agregados domésticos mais modestos. O sobre endividamento, que não parou de recuar desde meados dos anos 2010, corre seriamente o risco, neste contexto, de regressar em força nos próximos meses, apesar de um poder de compra, em aparência, em estado de Resistência.” (Alexandre Mirlicourtois. Un pouvoir d’achat en chute libre? La réalité des chiffres. Xerfi Canal. 19.01.2023: https://wordpress.com/post/tendimag.com/55467. Consultado em 19.01.2023.
E as crianças?

As realidades abordadas nestes três anúncios da Save the Children não são inauditas. De vez em quando, os meios de comunicação social fazem-lhe alusão. Save the Children Fund é uma organização internacional não governamental de defesa dos direitos da criança, ativa desde 1919, com sede em Londres.
Anunciante: Save the Children. Título: Save the Survivors. Agência: POL. 2022.
Anunciante: Save the Children. Título: Save the Children. Agência: POL. Direção: Niels Windfeldt. 2022.
Pobreza: A importância das palavras
Junto o artigo “Pobreza: A importância das palavras”, publicado no jornal Diário do Minho (terça-feira, 20 de setembro de 2022, pág. 8) de que sou autor. Para escutar enquanto lê, a canção Ces gens-là, de Jacques Brel.
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A relação com a pobreza. Uma questão de palavras

“Conhece-se a ave pelo seu ninho. E pelas palavras o espírito” (Provérbio turco).
Sério e crítico, este texto desvia-se do meu estilo atual. Prefiro propor jovialmente a contrapor categoricamente. Pertenço, porém, a um fórum de cidadania pela erradicação da pobreza e as circunstâncias assim o ditaram. Não se trata, porém, de um olhar sobranceiro e distanciado. A crítica é autocrítica: a linguagem visada é também a minha. O argumento resume-se a uma meia verdade que aspira apenas a despertar alguma reflexão. [Para uma caraterização da figura do crítico, recomendo a leitura do capítulo “Vestir a personagem” do livro A construção da Personagem, de Constantin Stanilavski (1ª edição em 1949, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 35-48), autor que, embora da área do teatro, marcou profundamente a minha formação como sociólogo].
Na parte final do artigo, junto o pdf do referido capítulo, Vestir a Personagem, do livro A Construção da Personagem, de Constantin Stanislavski . Para compensar a austeridade do meu texto, acrescento o filme The Kid, de Charles Chaplin, estreado em 1921. Por último, assumindo o texto como de domínio público, com permissão para descarga e partilha, disponibilizo o respetivo pdf.
As palavras são importantes. Pedem atenção, sobretudo quando designam uma instituição ou um movimento. O valor de uma palavra não se resume à intenção inicial, abrange, também, as interpretações e os usos que suscita, as suas ressonâncias semânticas e práticas. As palavras não dizem apenas a posição de quem as assume, sugerem ou denunciam a sua disposição. E têm efeitos, alguns inesperados e indesejados. Convém cuidar das palavras. Uma simples palavra pode condensar toda uma postura, todo um programa. Recorde-se que as grandes querelas religiosas, políticas, filosóficas e estéticas da história da humanidade gravitaram em torno de “duas ou três” palavras.
Habituámo-nos a expressões tais como anti-pobreza, combate à pobreza e luta contra a pobreza. Quais são os pressupostos inerentes e as consequências plausíveis? O que dizemos quando as pronunciamos e o que fazemos quando as dizemos?

A noção de “luta” implica um protagonista e um antagonista. Neste caso, o alvo é a pobreza. Como a definir e delimitar, dar-lhe corpo e sentido? Pobreza é um substantivo demasiado amplo. Originalmente, aludia à pobreza do solo. Hoje, pode até incluir a pobreza de espírito. Remete para uma privação. Do ponto de vista económico e político, para uma carência de bens (e.g. alimentação) e recursos (e.g. rendimentos) e, eventualmente, para a exclusão social. Embora exista uma aceção absoluta, a “pobreza” é normalmente assumida como uma situação relativa. É-se pobre em comparação com os demais, os ricos e os remediados, abaixo de um determinado patamar, o “limiar de pobreza”, que varia no tempo e de sociedade para sociedade. Se considerarmos, como o convenciona a União Europeia, que uma família pobre é aquela cujo rendimento é inferior a “60% da mediana do rendimento por adulto equivalente de cada país”, então nunca deixará de haver pobres, quando muito pode atenuar-se a “pobreza extrema”.
Segundo os dicionários, a pobreza é um estado e uma classe: um estado a que corresponde uma classe: os pobres. Embora associadas, a pobreza enquanto estado é distinta da pobreza enquanto classe. À semelhança da saúde, em que combater a doença não significa combater os doentes, lutar contra a pobreza não implica lutar contra os pobres. Na melhor das hipóteses, “lutar contra a pobreza” pode até presumir “lutar pelos pobres contra a pobreza”.
A pobreza como classe não constitui um grupo. Não possui textura nem espessura, tão pouco identidade, afinidades e comportamentos próprios. É uma categoria construída a partir de variáveis, indicadores e índices estatísticos. Só assim pode, por exemplo, sustentar-se que, em Portugal, “18,4% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2020, mais 2,2 pontos percentuais (p.p.) do que em 2019” (https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=473574196&DESTAQUESmodo=2). As pessoas são rotuladas e medidas, individual, abstrata e isoladamente. O conjunto é heterogéneo, fragmentado e descosido, compondo uma manta de condições, culturas e estilos de vida. O que há de comum entre uma pessoa nascida num bairro social e um novo pobre? Entre imigrantes provenientes de Cabo Verde, de Marrocos, da Ucrânia, da Roménia ou do Brasil? Entre um jovem desempregado urbano e um idoso isolado rural? Entre as diversas etnias? Apetece exagerar defendendo que, não obstante reduzirem-se a um quinto da população, não se desenham menos diferenças entre os pobres do que entre os remediados. Na gíria académica, a perceção da pobreza como uma massa consubstancia dialética a menos e reificação a mais. Este misto de atomização e confusão favorece o risco de desnorte e inadequação na compreensão e nas iniciativas referentes aos mundos da pobreza.

Até agora encaramos a construção da figura do antagonista da “luta”: a pobreza. Cumpre indagar como o recurso a expressões tais como anti pobreza, luta contra a pobreza ou combate à pobreza afeta a relação entre protagonistas (os sujeitos ou promotores da luta) e antagonistas (seus objetos ou destinatários). A noção de luta subentende uma separação das partes extremadas em dois lados opostos: uma “bipolaridade”. Propicia também a focalização no alvo, no segmento visado. Esta separação tende a ofuscar e a enviesar o olhar e a ação com consequências decisivas. Elenquemos alguns riscos:
a) Subestimar a interação existente entre a sociedade e os mundos da pobreza. Se é verdade que existem fatores endógenos, boa parte das causas, dos mecanismos e dos processos geradores, reprodutores e multiplicadores da pobreza residem fora dos seus próprios mundos. Pretender superar ou diminuir a pobreza sem os contemplar representa, no mínimo, uma falácia;
b) A pobreza e a sociedade envolvente não estão apenas interligadas, são interdependentes. Os mundos da pobreza contribuem para sociedade a vários títulos: demográficos, económicos, sociais, políticos, culturais e simbólicos. Menosprezar esta interdependência expõe o pensamento e a ação à parcialidade, à unidireccionalidade, à disfunção e, até, à injustiça;
c) A separação dos intervenientes e a focalização nos mundos da pobreza dificultam a transversalidade, a cooperação, o diálogo e a partilha em todas as fases: diagnóstico, planeamento, mobilização, implementação, avaliação e partilha. Acentua a propensão para agir para e sobre os pobres em vez de agir com eles;
d) A abordagem tende a pautar-se e a ser formulada pela negativa: os pobres não são definidos pelo que são mas pelo que não são, preponderantemente, não têm. Na verdade, os mundos da pobreza encerram realidades consistentes, complexas, heterogéneas e específicas, que ganham em ser equacionadas por si mesmas, de um modo neutro ou positivo. Ilustram-no estudos de autores, tais como Oscar Lewis (Os Filhos de Sanchez, Moraes Editores, 1970) ou Richard Hoggart (As utilizações da cultura, Editorial Presença, 1973), sobre as “(sub)culturas da pobreza”. Basta, porém, um mínimo de interação e convívio com a realidade da pobreza para o comprovar. Assumindo o princípio do relativismo cultural, os padrões, os rituais, as normas e os valores caraterísticos das (sub)culturas da pobreza merecem o mesmo respeito que outras (sub)culturas, por exemplo de classe, étnicas, juvenis ou urbanas. Este lapso no entendimento concorre para o desfasamento e o desperdício de recursos, dinâmicas e potencialidades;
e) Expressões como “anti-pobreza” ou “luta contra a pobreza” enfermam de um efeito de depreciação simbólica da pobreza enquanto classe, cuja carga estigmatizante se acentua no caso da expressão “erradicação da pobreza”. Ousemos colocar o outro na nossa pele: qual seria o sentimento dos professores universitários confrontados com um movimento externo, composto, digamos, por políticos e tecnocratas, que se auto propõe combater e, inclusivamente, erradicar a academia para bem, para a promoção, dos académicos?
f) Lutar contra a pobreza adquire os contornos de uma nova cruzada, tendencialmente maniqueísta, do bem contra o mal. Por mais que esta “missão” transborde de motivação e interesse, para o desígnio específico da diminuição da pobreza assevera-se mais relevante e propositada a humildade do que o empolgamento, especialmente quando alimentado por um cortejo de metáforas bélicas ancoradas num determinado imaginário histórico. A humildade sobressai como uma atitude imprescindível que expressões como combate ou luta contra a pobreza não apadrinham nem estimulam.
“O que nós fazemos pelos pobres é uma gota de água no oceano: mas se o não fizéssemos, se não deitássemos no oceano essa gota, ao oceano faltaria algo, faltar-lhe-ia essa gota” (Madre Teresa de Calcutá).
Esta desconstrução de palavras de ordem tais como anti pobreza, luta contra a pobreza, combate à pobreza e erradicação da pobreza pode revelar-se, na prática, insensata, inconsequente e infundada, fruto de uma hipersensibilidade à receção e aos usos atribuídos às palavras e às denominações. Mesmo na hipótese de lhe assistir alguma razão, não se estará, mais uma vez, a bater com a cabeça contra a parede? Estas expressões são cunhadas e consagradas pelas instituições mais poderosas e influentes do planeta. Com certeza, mas os novelos costumam desfiar-se por uma ponta. E as palavras mestres têm pés de barro. Não faltam exemplos de designações “indiscutíveis” subitamente abandonadas e menosprezadas. Nas últimas décadas, quantos batismos não se sucederam a propósito, por exemplo, da velhice, dos países menos desenvolvidos, do trabalho social ou das orientações sexuais?

A consulta dos resumos de apresentação das “25 maiores organizações dedicadas à luta contra a pobreza” (ver: https://www.humanrightscareers.com/issues/organizations-dedicated-to-fight-poverty/) sugere que, a contracorrente de expressões “clássicas” tais como lutar, combater e erradicar (frequentemente circunscritas à “pobreza extrema”), emergem e consolidam-se formulações alternativas tais como superar (overcome), atenuar (attenuate), apoiar (support), capacitar (empower), melhorar a qualidade de vida (improve the standard of living) e incluir. Chegou, talvez, o momento de adotar expressões mais positivas e pró-ativas (por e não contra) inspiradas num arco semântico distinto: apoio, superação, capacitação, partilha, qualidade de vida, cidadania, dignidade e inclusão social.