Archive | Dezembro 2019

Vício

Segue o fruto do vício: o último artigo do Tendências do Imaginário do ano 2019.

Dragon Ball Z: Kakarot LIVE ACTION Trailer (RealTrailer). Dec. 2019

Foi lançado, recentemente, um novo videojogo do Dragon Ball Z: Kakarot. No trailer, um jovem adulto recorda a sua relação com o Dragon Ball. Aproxima-se de um otaku, um fã obstinado. O trailer realça esse perfil. O protagonista imita os heróis e os seus gestos. Expõe-se, absorve e “reproduz”. O fenómeno é bom ou mau consoante as perspetivas. Para quem concebeu o trailer, parece desejável. Pessoalmente, não sei. Quando era pequeno, adorava os filmes, os livros e as brincadeiras de cowboys. Comprava livros usados, com ou sem quadradinhos, numa tabacaria do Largo dos Penedos, em Braga. Trocávamos livros de cowboys como quem troca cromos. A imersão não era menor do que face a um ecrã. Percorria quilómetros para ver uma série na televisão espanhola ou portuguesa: Bonanza, Jim West, Daniel Boone… Um western esgotava a geral do cinema Pelicano. Brincávamos aos cowboys, uma espécie de escondidas em que dois grupos se caçavam mutuamente e o toque era substituído pela visão: “mãos ao ar, vi-te primeiro”. No quintal, acertava com flechas feitas com varetas de guarda-chuva nas laranjas metamorfoseadas em índios. Cheguei a lutar com o travesseiro. Boa parte dos meus desenhos retratava cowboys. Tive pistolas de plástico e uma máscara de índio. Até falava com o sotaque dos atores norte-americanos. O cavalo era o meu animal de sonho. Um dia, o meu padrinho diz-me: – Vamos comprar um cavalo. Partimos para a Póvoa de Varzim. Deu as suas voltas e, a um dado momento, entrámos num edifício amplo que tinha cavalos. Falou com as pessoas do local. Regressou: – Só vendem os cavalos com as carroças. Respondi-lhe: – Assim não quero! É assim que se jardinam os sonhos das crianças. Em suma, tal como agora existe o otaku dos anime e dos mangá, eu era um otaku da coboiada. Teve efeitos? Naturalmente. A focagem é, por mais fantástica que seja, um estreitamento e um enviesamento do mundo. Se Armand Mattelard analisasse os livros, as séries e os filmes de cowboys, descobriria, como nas revistas da Walt Disney, falácias e perversidades. Existem eras, os anos cinquenta e sessenta foram a era dos cowboys; seguiu-se a era dos espiões e, um pouco mais tarde, a era dos anime e dos mangá. Há eras e eras, a dos cowboys coincidiu com a guerra fria. Ficaram-me marcas negativas? Tenho o corpo todo torto de andar a cavalo e quando aponto o dedo saem balas. Por acréscimo, fumo como os cowboys da Marlboro.

Série Jim West. 104 episódios, de 17 de Setembro de 1965 a 4 de Abril de 1969.

Vou festejar. Bom Ano!

MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço. Prémio

MDOC-Cartaz da edição de 2019

“Deixem escorrer o crepitar do pensamento” (Álvaro Domingues, Viste aquela galinha gigante?, Público, 29 de Dezembro de 2019.

Mencionei, repetidamente, no Tendências do Imaginário, o festival Filmes do Homem, entretanto, rebatizado, por censura feminista, MDOC – Melgaço International Documentary Film Festival. Procuro fazer o que me apetece e discorrer sobre aquilo que me interessa. Designação à parte, gosto do MDOC. A plataforma UM-Cidades concede, anualmente, por concurso, prémios aos municípios que se destacam pelas boas práticas. Este ano, “na Categoria Município Projeto da região Norte, com menos de 20 mil habitantes, o vencedor foi Melgaço, com o MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço” (Agência Lusa, 15 de Novembro de 2019).

Felicito a Associação Ao Norte e a Câmara Municipal de Melgaço. Para festejar, o Prelúdio do Te Deum (c. 1690) de Marc-Antoine Charpentier, que foi tema das emissões da Eurovisão. Condiz com a vocação internacional do Festival. Charpentier não constava entre os músicos favoritos de Louis XIV. Não obstante, o Te Deum era capaz de fazer marchar os cavalos de bronze das estátuas equestres do Rei Sol.

Marc-Antoine Charpentier. Te Deum – Prelude (c. 1690).

No limite

Claude Monet. Twilight, Venice. 1908.

O extremo limite da sabedoria, eis o que o público batiza loucura (Jean Cocteau. L’Insolence. 2003).

A minha companheira anda a ler o Primo Levi (Se isto é um homem). Um livro duro que nos desafia a partilhar, na medida do possível, a intimidade dos campos de concentração. Encontrei uma música para complementar a leitura: Twilight, de Antony & The Johnsons.

Antony & The Johnsons ‘Twilight’ (live at Sixth & I Synagogue). 2009.

Despojamento

Tantas ondas, e nenhuma igual. Tantos pinheiros, e nenhum igual. Tantas pessoas tantas vezes tratadas como iguais.

A simplicidade assenta bem. A música Can’t Get You Out Of My Head (2001), composta por Cathy Dennis e Rob Davis, e interpretada por Kylie Minogue, conheceu muitas versões. Gosto da versão instrumental, a mais despojada. Não colheu grande sucesso. A simplicidade e o sucesso nem sempre dão as mãos.

Cathy Dennis e Rob Davis. Can’t Get You Out Of My Head. Por Martin Ermen. 2001.

Para descompensação, acrescento o vídeo musical da Kylie Minogue que convoca outro tipo de despojamento.

Kylie Minogue. Can’t Get Out Of My Head. Álbum Fever. Vídeo dirigido por Dawn Shadforth. Música composta por Cathy Dennis e Rob Davis. 2001.

Falsificação

Réplica de um elmo encontrado em Sutton Hoo, na sepultura de um líder anglo-saxão, datado provavelmente de 620.

Existem falsidades disfarçadas que representam tão bem a verdade que seria errado não se deixar enganar (La Rochefoucauld. Réflexions ou sentences et maximes morales. 1664).

A Falsificação de informação e de mercadorias revela-se preocupante, atendendo, sobretudo, às características da circulação actual de bens e notícias. Comporta consequências mais graves do que muitas gravidades em voga. Criada em 1985, em França, e sediada em Paris, Repórteres Sem Fronteiras é uma organização internacional estimável, num mundo “armadilhado” (Isabelle Mayereau).

Anunciante: Reporters Sans Frontières / RSF. Título: Fight Fake News. Agência: BETC (Paris). França, Maio 2018.
Isabelle Mayereau. Piège à rats. 1982.

Piège à rats
Quand on ne sait pas
Quand on ne veut pas
C’est qu’on n’ sait pas où l’on va
On regarde là
On regarde pas
Parce qu’on n’ sait pas où l’on va
On sait pas
Quand on ne dit pas
Quand on ne dit plus
C’est qu’on a perdu le droit
De placer sa voix
Solitaire et nue
Sur l’échiquier des grands rois
Des grands rois
On se dit qu’on a
Deux chances sur trois
De tomber dans l’ piège à rats
Tomber
Puis, on joue sa vie
À “bouffe pasn merci”
À quoi ça sert une vie?
Puisque les canons
Ont fait la chanson
Pourquoi parler de raison
De raison?
Quand on ne voit pas
Quand on ne voit plus
C’est qu’on a perdu le choix
Le choix de sa vie
Le choix de ses mots
Faut partir avant l’ennui
Partir
Partir
Quand on ne sait pas
Quand on ne veut pas
On regarde là
On regarde pas
Parce qu’on n’ sait pas où l’on va
Je n’ sais pas

A proposta

Isabel a Católica

Este anúncio é uma paródia, anacrónica, da aceitação da proposta de Colombo pela rainha Isabel a Católica, concebida nesta curta-metragem como uma empresária moderna. Quem não brilha na fotografia é Portugal:

“Depois de várias tentativas de vender o seu projecto a Portugal, Cristóvão Colombo decide procurar outro tipo de cliente, um mais aberto e inteligente, que seja capaz de ver a sua ideia”.

Anunciante: FIAP 2011. Título: Festival Iberoamericano de la Publicidad 2011. Produção: Coolshotfilms. Direcção: Santi Winer. Espanha, 2011.

Diabos, diabas e diabinhos

Prenda de Natal. Diabo com diabinho ao ombro. Mistério. Barcelos.

Meia-noite feliz. Nesta freguesia, como em muitas outras, não há missa do galo. Apenas sinos e foguetes. O Natal está passado; agora é todos os dias. Convém dar tempo ao Pai Natal para descer e subir a chaminé. Coube-me um diabo com um diabinho ao ombro, da Mistério, de Barcelos. A minha cara! Há quem me ofereça prendas de que gostam; há, mais raro, quem me ofereça prendas de que gosto. Oferecer-me algo de que gostam e de que gosto é tão improvável como um eclipse solar. Um diabo com um diabinho ao ombro, há quem me conheça! Desertas as “catedrais do consumo” (Jean Baudrillard) e afrouxados os laços de amor (Zygmunt Bauman), regressam os infernos, com diabos e diabas com diabinhos ao colo (ver figuras 2 e 3). Ressurgem os malefícios e as tentações. O pecado.

Provocadora, a Madonna avançou no fio da navalha da moralidade. A primeira vez que a vi foi a cantar Like a Virgin. Vestida de noiva, simula, deitada no palco, algo como um orgasmo. Sustenta-se que a Madonna é polissémica. Mais ou menos polissemia, a Madonna esteve para ser presa no Canadá por causa da coreografia rasteira. Madonna, uma prenda! Segue uma interpretação, ao vivo, em 1984, de Like a Virgin, apresentada na MTV.

Madonna – Like A Virgin (Live MTV VMAs 1984).

Conto de Natal

Este é o meu artigo de Natal. Uma curta-metragem superpremiada. Creio que ainda vai a tempo. Boas festas!

“The Present” is a thesis short from the Institute of Animation, Visual Effects and Digital Postproduction at the Filmakademie Baden-Wuerttemberg in Ludwigsburg, Germany. 2014.

Prendas, abraços e elfos

Com duas palavras se escreve a expressão espírito de Natal: prendas e abraços. O anúncio Holiday, da Amazon, prescinde do Pai Natal. Encomendas animadas e efusão humana. O espírito de Natal pede magia. O Pai Natal foi preterido pela maioria das grandes marcas. Como substituto, o elfo. El Corte Inglés retoma a figura do elfo: em 2018, o anúncio chamava-se O pai do El Corte Inglés é um elfo, este ano o anúncio A magia do Natal muda tudo continua a apostar na figura do elfo. O Natal de 2019 ficará na história da publicidade como o Natal dos elfos.

Marca: Amazon. Título: Holiday 2019. Agência: Lucky Generals. Direcção: Henry-alex Rubin. Estados Unidos, Novembro 2019.
Marca: El Corte Inglés Portugal. Título: A magia do Natal muda tudo. Portugal, Dezembro 2019.
Marca: El Corte Inglés Portugal. Título: O pai do El Corte Inglés é um elfo. Portugal, Dezembro 2011

Agarrar o vento

Tenho duas dúzias de reis magos em casa. Dá para poucas escapadelas. Sou perito: deixo-me descair na cadeira e passo por baixo do tapete. Ninguém dá pela minha falta. A invisibilidade é crucial: o protagonismo é fatal às escapadelas. Sem tempo, resolvo escolher um álbum à sorte. Sai o Donovan’s Greatist Hits (1969). Donovan foi um compositor e cantor de sucesso, sobretudo, nos anos sessenta. Pertence à geração Bob Dylan, Velvet Underground e The Doors. Donovan foi amigo de um meu amigo, em Paris.

Um dos reis magos veio de Angola. Fomos fumar, à espera da estrela. Tive uma sensação de estranheza: o Marlboro dele não tinha cenas eventualmente chocantes. Em África, os profetas da desgraça devem ter outras preocupações. Segunda estranheza: o preço de um Marlboro em Angola é 1:20 euros. Em Portugal, ascende a 5 euros! Inspeccionei: a única diferença reside nas imagens eventualmente chocantes. Devem ser muito caras!

Donovan. Catch the wind (1966). Donovan’s Greatist Hits (1969).
Donovan. Season of the Witch (1966). Donovan’s Greatist Hits (1969).
Donovan. The Hurdy Gurdy Man (1968). Donovan’s Greatist Hits (1969).