Desrazão
Le sida parle! Como Deus aos argentinos (Bendita bola). A sida, a epidemia mais mediática de sempre, é universal e imprevisível. Toca a todos, sem avisar. Como o beijo da morte. Depois de tanto alarido, o silêncio. Mas a magia tem limites. Não é porque a ignoramos que a sida desaparece. Je suis là! Nous sommes là, se calhar, menos prevenidos do que há alguns anos atrás. Um anúncio oportuno, que inspira a seguinte pergunta: quais são os critérios e os enredos da publicidade de sensibilização? O que justifica o apagão em torno dos riscos da sida? O que justifica, em contrapartida, que num único maço de cigarros se repitam dois anúncios de morte: de um lado, “Fumar mata” e, do outro, “Os fumadores morrem prematuramente”? Uns andam sobreavisados, os outros andam como andam. “ Morra Marta, morra farta”! Desrazoável. Estas linhas trazem-me à memória o cantor Klaus Nomi (1944-1983), uma das primeiras vítimas da sida. Seguem duas interpretações ao vivo. A primeira, Total Eclipse, foi retomada por vários grupos e cantores; a segunda, The Cold Song, a partir de King Arthur, de Purcell, é uma obra-prima, comovedora, tanto mais que nesta interpretação, em Dezembro de 1982, em Munique, Klaus Nomi já se sabia infectado pelo vírus da sida. Faleceu poucos meses depois, em Agosto de 1983. Sinto a falta de pessoas como o Klaus Nomi. Aparadores de relva há muitos.
Anunciante: AIDES. Título: Je suis là. Agência: WNP. França, Junho 2015.
Klaus Nomi. Total Eclipse. 1981.
Klaus Nomi. The Cold Song. Munique. 1982.
Cidades Inteligentes
Smart cities, creative industries and entrepreneurship, they seem to be the musketeers of her majesty Europe. Nos logotipos e nas representações de cidades inteligentes, a lâmpada sobressai como motivo central. Multiplicam-se como gafanhotos as imagens a louvar as cidades inteligentes. Escasseiam, porém, as imagens dedicadas aos cidadãos inteligentes.
A figura do caracol lâmpada, ao jeito dos híbridos medievais, assevera-se aliciante: SSS – Slow Smart Snail. O passo de caracol presta-se à observação e à memória. Melhor que hoje só anteontem; e anteontem não existiu. Até as novas palavras se dão ares de superioridade: cidades inteligentes, indústrias criativas, empreendedorismo. Não resultam da evolução da língua. São criadas em laboratório. Cheiram a provetas, pipetas e bicos de bunsen.
Marca: IBM. Título: Smart Cities. Agência: Ogilvy & Mather Paris. França, 2023.
Com a cabeça entre as pernas
É difícil, porventura incerto, corrigir um perfil. Pior ainda quando se ajusta sempre o mesmo, do mesmo modo, no mesmo sítio.
Amassa-se a miséria, embala-se e empurra-se para baixo.
Como no monstro da Figura 1, a cabeça desce quase até aos pés. De tempos em tempos, talvez dê para bater as asas e pôr um ovo (Figura 2).
Mas, equacionados todos os pontos e todos os ângulos, equilíbrio redondo, provavelmente, só ao volante de um crossover Honda HR V.
Marca: Honda. Título: Give and Take. Agência: RPA. USA, Junho 2015.
Imagine-se um desfile de monstros acompanhado pelo “Coro das Velhas”, de Sérgio Godinho, “a caminho de Caminha”.
Sérgio Godinho. Coro das Velhas. Era uma vez um rapaz. 1985.
Sociologia sem palavras 21. A massificação e o homem-máquina
“The mediator between head and hands must be the Heart” (Metropolis).
Há palavras bipolares. A esquerda romântica do século XX encarava a massificação como uma doença social desumanizadora. Nos últimos anos, o argumento migrou, sendo adoptado pelo poder. Arrebanha-se, normaliza-se e disciplina-se a pretexto de se estar a lidar com realidades massificadas: os hospitais, os tribunais, as casernas, as escolas, as universidades, os concursos… Estamos confrontados com uma massificação de segundo grau, uma massificação da massificação. Uma hipermassificação temperada pelo fantasma do homem-máquina. Max Weber alerta para a seguinte propensão: quando ocorre um problema numa burocracia, a solução consiste em acrescentar mais burocracia, criar, por exemplo, uma nova comissão, que, por sua vez, comporta novos problemas para a burocracia. Algo como o milagre da multiplicação das comissões com peritos responsáveis inimputáveis.
Tenho pouco apreço pelo conceito de massificação. Em Moledo, o nevoeiro parece espuma das ondas. Vê-se e sente-se. Já, ao lado, em Caminha. o nevoeiro não se vê nem se sente. Mas subindo à Serra de Arga, vê-se nevoeiro em Moledo e, embora menos, em Caminha. Vê-se mas não se sente. Muitos fenómenos naturais e culturais são assim: dependem da escala e da perspectiva, não estando isentos de ilusões. Os rios também são dados a ilusões: o nevoeiro é sempre maior na outra margem. A massificação é um conceito que requer distância sobranceira. Fabula-se de longe e em plano picado.
O realizador Fritz Lang e o filme Metropolis (1927) dispensam apresentação. Retive dois excertos dedicados aos temas da massificação e do homem-máquina.
Fritz Lang. Metropolis. 1927
Dissonâncias
“Neste limbo de indefinição tudo é possível, em particular recompor e contrabandear realidades. Resultam, assim, procedimentos correntes a aproximação de entidades distantes (por exemplo, humanos com cabeças de animais) ou a deslocação de objectos de uma ordem de realidade para outra, proporcionando, deste modo, combinações ou cotejos insólitos” (Albertino Gonçalves, O Delírio da Disformidade. O corpo no imaginário grotesco.pdf).
As dissonâncias provocam riso ou medo. Às vezes, riso e medo. São aberrações. Para ilustrar o modo como a parte (uma peça não genuína) pode alterar o todo, a Land Rover recorre a uma campanha baseada em dissonâncias óbvias e breves: um leão a cantar de galo, um crocodilo a latir e uma águia a balir.
Marca: Land Rover. Título: Genuine Parts – Lion. Agência: Y&R Johannesburg. África do Sul, Junho 2015.
Marca: Land Rover. Título: Genuine Parts – Croc. Agência: Y&R Johannesburg. África do Sul, Junho 2015.
Marca: Land Rover. Título: Genuine Parts – Eagle. Agência: Y&R Johannesburg. África do Sul, Junho 2015.
Cascata erótica
Consta que o homem médio pensa em sexo cada seis minutos. Bom sinal, sinal que pensa. Esta obsessão percorre o anúncio X da Coco de Mer. Ao nível dos conteúdos, o peito é a parte do corpo que se destaca, seguindo-se as nádegas, as pernas e a boca, acompanhados por cascatas vertiginosas de símbolos sexuais. Tantos, que parecem esgotar os livros de Carl Jung e Gilbert Durand. Vislumbra-se um toque pavloviano neste anúncio: uma cavalgada de maçãs que fazem salivar o animal antes de o deixar trincar. A lingerie e os sex toys não são corpo mas fazem corpo. Pixel a pixel, desenham o limiar da interioridade. Vagas de luxúria na pele do desejo.
Marca: Coco de Mer. Título: X. Agência: TBWA London. Direcção: RANKIN. UK, Maio 2015.
Deixa-me rir!
O que une uma dúzia de bebés risonhos e a Coca-Cola? Aproximar aquilo que tudo separa é uma arte. A arte, por exemplo, da alegoria. Uma coisa puxa outra. Quanto mais estranhas, maior o efeito. Para Gilles Deleuze, a alegoria é caracterizada por três elementos: o símbolo, o lema e o nome (ver Dobras e Fragmentos), Pois, no final do anúncio, lá aparecem em pose, como num retrato de família, o símbolo (a garrafa), o lema (choose happiness) e o nome (Coca-Cola).
Marca: Coca-Cola. Título: Choose to smile. Agência: Ogilvy & Mather Amsterdam. Direcção: Marleen Jonkman / Czar. Holanda, Maio 2015.
O avanço da inteligência
Anunciar o que não existe é obra de charlatão ou de génio? Com a Volkswagen nunca se esteve tão perto do que não existe. Uma ideia absurda mas performativa. Só a profecia tecnológica consegue dar vida ao nada. É a nossa síndrome do Prof. Pardal, a disparar mais rápido do que a sombra. Está na moda tudo ser inteligente: a lâmpada, a máquina, a casa, a cidade, o míssil… Até os parvos são inteligentes! E concluo à boa maneira francesa, citando Madame de Girardin: “Um homem inteligente a pé anda mais devagar do que um parvo de automóvel”.
Marca: Volkswagen. Título: Special Feature. Agência: DDB Argentina. Direcção: Rodrigo Garcia Saiz. Argentina, Maio 2015.
Campanha pedagógica
Os seguidores do Tendências do Imaginário são exigentes. Sustentam que a antevisão da “campanha de prevenção contra o ensino”, inspirada nas campanhas contra o consumo de tabaco, não está correta (http://tendimag.com/2015/05/31/futura-campanha-sanitaria/). Devia ser a cores, como no Canadá, desde 2001, ou em Portugal, a partir de 2016. Para me penitenciar, segue um protótipo bem colorido. com a Duquesa Feia, de Quentin Massys (1525-30). Acrescento um painel, em alta resolução, com imagens de embalagens brasileiras de tabaco.